OS GÉMEOS - 9

.

 

(continuação)

 

A Missão Bandeira Negra era obra dele. E a bolinha preta, como se o soubesse, confirmou-o. Teve vinte e quatro horas para a desencadear, incluindo o aleatório escalamento dos operacionais, directiva que não conseguiu evitar, apesar de ser ele o mentor do golpe e de ser o único a dispor de um trunfo precioso: um irmão gémeo e, garantidamente, colaborante.

A bolinha preta — que viria a conservar com ele por muitos anos, não tanto como amuleto, antes como tangível emanador de desígnios do seu destino: em crente ritual, extraída à sorte de idêntico saquinho onde a juntou a quatro outras de cores diferentes, ratificava ou não as suas decisões em casos de arriscados intentos — deu-lhe confiança para se autorizar a si próprio a acrescentar ligeiros detalhes à rigorosa planificação superiormente aprovada: um improvisado recurso à beleza de Louise, a dispensa inconfessada da arma de protecção que lhe fora atribuída e quase todo o incomodativo disfarce fisionómico previsto. Louise, porque com os seus cativantes atractivos pessoais poderia, como de facto aconteceu, alargar em mais alguns minutos o seu tempo para executar a missão. A arma, porque, com sensatez, achava que seria estúpido usá-la em qualquer momento da sua intervenção, mesmo em caso de fracasso ou de risco para a sua integridade física. E o disfarce, porque o seu indistinguível duplo lhe asseguraria perfeito alibi e a transfiguração subsequente, rapando o cabelo e aplicando um bigode postiço, seria mais que eficaz, limitando-se por isso a empoar muito pouco o rosto, obtendo um tom pálido nas faces, e a alongar um pouco, a traço de lápis, o desenho das sobrancelhas e as comissuras dos olhos, sugerindo uma expressão de oriental ocidentalizado.

— Ai!... — O grito suspirado, quase soluço, e atónito, fez-lhe subir ao rosto a vermelhidão humilhante de um pensamento de rigorosa autocrítica: “— Pronto!... És um parvalhão! Era de prever que falhavas.”. E a irritação explodiu num esgar ameaçador, a acompanhar a atitude violenta de brandir a gazua com que estava a procurar conjugar as linguetas já da segunda chave que franquearia a fechadura do cofre-forte. Ridículo, porque a ferramenta mal se lhe via na mão... E ridículo o aspecto dele, estetoscópio a saltaricar com o movimento brusco da sua atarantação.

Em dois pulos ágeis, de animalesco instinto de sobrevivência, estava ao pé da empregada da limpeza e logo a agredia no queixo com um soco exagerado de força, impiedoso mesmo ante o trauma de espanto e medo que a paralisara, abatendo de imediato aquele corpo frágil mal enfiado na bata azul claro, só apertada em dois botões e deixando entrever o acetinado da combinação. “— Quase desumano.” — reflectiria ele mais tarde, quando revisitou mentalmente o instante mais crucial da operação, acossado de algum remorso por ter respondido com tamanha agressão ao profundo apelo de bondade, difícil de esquecer, que lera nos olhos dela.

Sabia bem que a rapariga pertencia ao turno suplente. Por precaução, até nunca tivera qualquer anterior contacto com ela. Calculara que poderia verificar-se uma substituição inesperada de alguma das suas amigas da limpeza, mas não lhe passara pela cabeça que esta fulana resolvesse cumprir o horário com escrupulosidade, tal como as outras não faziam. De todo em todo, conseguira perder apenas dois minutos na sua eliminação, e por sorte ela era tão frágil que o susto de o descobrir, incriminadoramente, a aterrorizara, tornando-a incapaz sequer de soltar mais outro grito. Quando lhe batera, furioso consigo próprio, a rapariga estava hirta. Tombara desamparada no chão, como se mal tivesse peso. E ficara descomposta, pernas compridas ao léu, braços desengonçados um para cada lado, obrigando-o a afastá-la da entrada da porta, rolando-a aos sacões, cabelo a voltear com ela, bata a arrepanhar-se mais e deixando-lhe a renda preta das calcinhas a contrastar com a brancura das coxas.

Por escasso momento também a ele parecera ter perdido a capacidade de raciocinar. O sangue-frio sobrepusera-se, ou imbecilizara-o, não sabia bem. Recolocara o estetoscópio nos ouvidos e, respirando fundo, voltara rápido à tarefa de abrir o cofre, acontecesse o que acontecesse.

Cinco minutos depois, precisos, controlados num relance ao relógio de pulso, tantas vezes repetido antes nos seus exaustivos ensaios preparatórios, terminava a contagem e arrecadação do vigésimo maço de notas. No cofre ainda restavam alguns mais, que deixou ficar amontoados tal como se encontravam.

Suspendeu a respiração. William precisava de tirar um curso... tinha de obter uma licenciatura. Por ele também...

Pegou na gazua e lesto abriu uma das pastas dos Caixas da agência bancária. Meteu a mão e retirou dois maços, mais pequenos, mas providencialmente cintados com carimbos de outro Banco. Guardou-os no bolso do blusão. Não eram para ele... não podia negar que gostava de não andar liso, o que era um sintoma pouco consentâneo com o seu proselitismo anticapitalista... mas aquela massa não era para ele.

Correu o fecho do saco de desporto, atirou-o para cima do ombro, levantou-se meio trôpego por ter estado ajoelhado e foi então ver o estado da palerma que lhe ia estragando a Missão Bandeira Negra.

  Mesmo sem lhe virar o corpo, torceu um dos panos que ela deixara cair, de limpar o pó, e amarrou-lho em volta da cabeça, à altura da boca, a servir de mordaça. Com outro prendeu-lhe os braços atrás das costas, e apressou-se para a saída daquela arrecadação que pretendia imitar uma casa-forte, e depois para o WC dos homens, para se erguer a pulso firme e passar pela apertada abertura que dava para a caixa de ventilação, por cima das casas de banho, dois metros adiante voltar a descer por idêntica passagem, deixando-se escorregar com suavidade até apoiar as sapatilhas na borda do bidé das senhoras, conspurcando-o de sujidade, que lá em cima no forro do telhado aquilo estava uma porcaria, mas agora já muito próximo do corredor que dava acesso à porta lateral da agência.

Exteriormente aquela porta sugeria a ideia de pertencer já à arquitectura do prédio vizinho, mas ainda pertencia à do Banco. Dava para um estreito corredor, ao fundo do qual se situavam os lavabos destinados a senhoras e logo a seguir ficava então a porta blindada que permitia a passagem para o interior da agência. Por ali entrava e saía o pessoal, fora de horas de funcionamento do balcão, e por ali entrara ele, e iria sair. A porta da rua estava protegida por alarme e tinha fechadura reforçada, havendo rigorosas instruções de segurança para sua utilização, mas toda a gente facilitava. O gerente, porque só ia comer qualquer coisita à pastelaria e como entretanto chegariam as empregadas da limpeza, que até tinham chaves da porta exterior, apenas usava o trinco, e elas faziam o mesmo para lhe não dar maçada. Espantou-se James quando viu a planta desenhada das instalações: não contando com a negligência complacente das pessoas ainda havia o vulnerável forro do telhado e as largas caixas de ventilação! A construção parecia feita para permitir um assalto limpinho. Mas no arquivo municipal encontrara pelo menos mais duas plantas topográficas, que seleccionara como locais alternativos para o golpe, ainda mais fáceis de violar. Numa delas, bastaria saltar uns quintais, entrar nas traseiras da casa ao lado, cortar uma vulgar rede de galinheiro e despregar uma franziníssima placa de telha de amianto para poder chegar ao interior da espécie de varanda coberta que escondia o pátio da agência. Aí poder-se-ia depois trabalhar com toda a calma e discrição, a retirar as gradezitas que decoravam dois janelos, e passar lá para dentro. Donde, a negligência provinha também da concepção arquitectónica, adaptada com ligeireza. Os arquitectos usavam confiar para tudo no alarme, que nem durante as horas de expediente tinha cabal serventia... Que empregados se atreveriam a colocar o pé em cima do botãozinho de accionamento e logo desencadearem um tiroteio? Entregavam o dinheiro aos mascarados, que não raras vezes eram pistoleiros de plástico, e ficavam quedos, com a esperança de poderem escapar à desgraça.

Ouviu bater o trinco da portaria, M. Marchinot a passar pelo corredor, murmurando qualquer coisa, e depois cerrando a porta blindada e rodando a chave, já no interior da Agência. Saiu então da casa de banho, às escuras, e, pé ante pé, não deixando que a borracha dos ténis chiasse no vidrado da tijoleira do chão, cavou dali para fora. Tudo certinho. Alguém havia de estar à esquina do quarteirão, a trinta e oito metros dali, para receber o saco. Eram seis e vinte.

E estava. Quando passou a encomenda, com um ar algo emproado, e sem dizer palavra, esfregou as mãos, ao jeito de “— Eu bem dizia. Está feito!”, e abalou. Como sentia tanta necessidade de dormir!
 


 
(continua)

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

 


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Friday, April 5, 2013 - 20:54

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