A VIRTUDE LAUREADA - I

DRAMA PARA MUSICA, EM UM SÓ ACTO

Representado no theatro do Salitre, no anno de 1805

N a d a . . . . occurrit, per se pulcherrima, Virtus.
Cardos. Cant. de Tripol.

ACTORES

A SCIENCIA— A HOSPITALIDADE — A INDIGENCIA—A POLICIA
— A LIBERTINAGEM—O GENIO LUSITANO

Logar da scena : Praça magnifica sobre as margens do Tejo

SCENA I

A Sciencia por um lado e a Indigencia por outro
com a Hospitalidade

SCIENCIA

Eu, que elevo os mortaes, e os esclareço;
Que méço a lua, o sol, que o mundo abranjo:
Que da vetusta edade aclaro as sombras;
Que entro por seus arcanos, e revóco
D'entre o pó, d'entre a cinza, d'entre o Nada
Ao seculo vivente as éras mortas;
Que dócil fiz o indómito Oceano,
Abysmo de pavor, de bojo immenso,
Que só por alta lei não sorve a Terra;
Eu, do gran Jove, confidente e imagem,
Que do Fado os mysterios desarreigo
E co'a moral dos céos cultivo o globo;
Eu, a Sciencia, eu fonte, eu mãe das Artes,
Que sei desirmanar na intelligencia
Entes, na fórma eguaes, na especie os mesmos,
Tornando-os entre si tão desconformes,
Qual dista do selvagem bruto e fero,
Macio cidadão, que as leis puliram:
Ah! não posso impetrar, colher dos numes
Para os alumnos meus pavez sagrado
A teus golpes, Fortuna, inteiro, illeso !
Sem que benigna mão lhe adoce os fados,
Sem que escassa piedade o chame á vida,
De vigilias mirrado o sabio morre.
Almas corrompe do egoismo a peste;
Camões, Homens na penuria cantam:
Eil-os co'a gloria temperando a sorte:
Sôam prodigios de um, prodigios de outro;
Férrea caterva os ouve: admira, e foge.
Só quando o vate é cinza, o muito é nada,
Por elles se interessa o mundo ingrato;
Na gloria esteril de epitaphio triste
Sólidos bens o barbaro compensa:
Controdictoria humanidade insana !
No insensivel sepulchro os sabios honra,
E os sabios não remiu na desventura !
Quaes elles foram diz, não diz qual fôra:
Nas almas frias o remorso é mudo.
Ai dos alumnos meus! Soccorre-os, Fado,
Risca do livro eterno o duro artigo,
Que ao mérito, ao saber seus premios véda;
Aquece os corações no ardor da gloria,
Fraternisa os mortaes, onde suspiram,
Os poucos filhos meus co'a mãe prosperem;
E onde com seus innumeros sequazes
Colhe triumphos, a Ignorancia gema.

INDIGENCIA

Mãe veneravel, teu queixume ouvindo,
Amarga-me da vida o fel em dobro.
A filha tua, a misera Indigencia,
Que muda te escutou piedosas maguas,
Comtigo vem gemer, carpir comtigo
A moral corrupção, que empésta o globo.
Plagas e plagas entre as socias minhas,
Entre as mansas Virtudes hei vagado.
Pela voz da Pureza (a que é de todas
A mais formosa) deprequei o auxilio
De inchado cortezão, que um deus se cria.
Melindre, candidez, virginea graça
(Qual flôr, em que era orvalho o dôce pranto)
Aos olhos do soberbo expoz seus males.
De cesto accezo, ovante elle a contempla,
Nem um momento á dôr constrange o vicio:
Em vil proposição, que as furias dictam,
Profana da Innocencia o casto ouvido,
E em cambio da virtude exige o crime.

SCIENCIA

Céos ! Que infamia ! Que horror ! Prosegue, oh filha
Succumbiu a Innocencia á vil proposta?

INDIGENCIA

Não, que nos olhos meus velavam deuses.
Fautores da virtude: escuta, e fólga.
O celeste rubor, que tinge a Aurora
Sobe á face gentil, e as rosas brilham:
Mas subito tremor branquêa-o logo,
Eil-a, de olhos no céo, e geme;
Eu porém, que no effeito observo a causa,
Ao seductor pestifero arrebato
O objecto divinal, que o torna um monstro.

SCIENCIA

Olha o céo na Innocencia a imagem sua.

INDIGENCIA

Murchas no horror do abominavel caso,
Inda comtudo as esperanças minhas
Levei de lar em lar, devendo a poucos
Piedade accidental; bati cem vezes
Ás surdas portas de sumido avaro,
(Sumido em subterrano abysmo d'ouro).
Fallára o monstro, se fallasse a morte:
O silencio dos tumulos o abrange
Ante o metal (seu deus) que em ferreos cofres
Co'a vista famulenta o vil devora;
Servos d'elle (o poder é tal do exemplo !)
Depois de longo espaço, e vans instancias,
Co'um desabrido «Não» me affugentaram.

S CIENCIA

De tudo ha monstros mil na especie humana:
Mas todos vence da Avareza o monstro.

INDIGENCIA

Attende ao mais, e adoçarás teu pranto.
Do centro da Impiedade em fim retiro
Os fatigados pés, e os dirijo aos campos,
Absorta nas imagens carinhosas.
Com que afagaes a idéa, oh aureos tempos !

SCIENCIA

Se ali não ha virtude, onde é que existe ?

INDIGENCIA

Pobre choupana, que forravam colmos,
Humildes lares, que zelava um nume,
Attráem meus olhos, e meu passo animam.
Chego, e curvo ancião, que alli repousa,
Grande em seu nada, na indigencia rico,
Sorrindo-se me acolhe, amima, e nutre.
Sancta Hospitalidade ! Eras a deusa,
Que o rugoso varão, madura esposa
E imberbe prole sua abençoava !
Com milagrosas mãos os parcos fructos
Nas arvores fadadas avultando,
Para os errantes, pallidos, mesquinhos,
Que eterna Providencia lá dirige,
Leda colhías saboroso alento;
E qual outr'hora a um Deus, incluso no homem,
Muito do pouco a teu querer surgia.

HOSPITALIDADE

Conferiu-me esse dom quem té no insecto
Provê, do que lhe cumpre, á tenue vida.
Deixando influxos meus no casto alvergue
Onde Beneficencia, e Paz convivem,
Acompanhar-te quiz ao vasto emporio
De Lysia, do universo, á gran cidade,
Que espêlha os torreões no vítreo Tejo,
D'onde sagradas leis despede ao Ganges.
O globo é puro aqui, e aqui parece
Estar inda na infancia a Natureza,
Bella, serena, candida, innocente;
Principe amado, imitador dos numes,
Ao publico baixel menêa o leme:
Numéra os dias seus por dons, por graças,
E o merito sem susto encara o throno :
Se o gravâme do sceptro acaso inclina,
E' sobre os hombros de ministros puros,
Dignos do alto explendor, que sáe da escolha.
Um d'elles, cujo nome é cáro aos justos,
Que tem, que exerce o ministerio sancto
De velar sobre o publico repouso;
Que encarcéra, agrilhôa, opprime o vicio,
O contagio dos maus aos bons evilta,
E em piedoso recinto abriga, instrue
A puericia, que em flôr dispõe ao fructo:
Luceno, o zelador dos sãos costumes,
Páe do infortunio, da sciencia amigo,
Guarida vos promette: exponde, exponde
Ao ministro exemplar, meu claro alumno,
A vossa condição: vereis descer-lhe
Dos olhos paternaes amavel pranto,
Proveitoso, efficaz, não pranto esteril,
Que momentaneas sensações produzem,
E o merito infeliz, qual viram, deixam.
Em Luceno o favor segue a piedade;
Mortal, que os immortaes sem custo imita,
E o bem, só porque é bem, desenha, opéra.
Eia, vinde; eu vos guio aos bemfazejos
Lares seus, lares meus: sereis ditosos,
Oh Sciencia ! On Penuria ! — Os céos o ordenam.

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Sunday, October 25, 2009 - 16:39

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