O SÓTÃO DE SOPHIA

(Uma homenagem a Sophia de Mello Breyner Andersen, a poetisa que guardo das minhas memórias de infância)

Há pensamentos a roer o chão do meu sótão:
Um imaginário de criança. Um tesouro de piratas
Há soltas lembranças a saltar à corda e ao elástico
A jogar à cabra-cega. Um Mundo Mágico Matilde*

Há bons momentos a roer o sótão da avó Lu
E se espreitar através da perra fechadura
Há sentimentos de ternura no patamar da loucura
E há coisas de mim que sei que há no teu sótão avó
Pois ainda as tenho em mente
Alzheimer…Adamastor.
A doença que te torna ausente na presença

-Avó Lu, onde estás tu?

À janela da lua e da tua sombra
Teias tacteiam as vigas da saudade
e há pó que repousa sobre os livros coloridos
que devorava em sonhos à cabeceira escondidos

Acordo com gripe que invade a estirpe
De um corpo dormente…que treme …
E tenho febre: Atchim!!! Atchim!!! Atchim!
Emerge, ao olfacto da memória, o leite creme …quente..
Feito ao lume, do fogão a lenha da minha avó Lu
E uma força divina ergue-me do leito em surdina
Subo ao sótão da memória, e desço à idade da esquina

E gaga galga ela frágil, de corpo trémulo, enfermo e inquieto
Amparada no corrimão a beijar o tecto na vertigem do chão
E no escuro redescobre o sótão da sua solidão senil
a inocência perdida naquele palco pueril
E eu abro Conto da Fada Oriana e deleito-me na leitura
E inebriada pela aventura, solta-se, das páginas palavras
em papel amarelecido que se evapora das folhas,
Pó, numa nuvem de espirro: Atchim!

Reina o delírio dela, a sete chaves fechado

- Avó Lu, onde estás tu?

Num tempo, a sós, em curtas imagens do passado
Há cheiros, cuidados, mimos-avós, de mãos de fada:
Na Páscoa o folar. A filhós no Natal, na Noite de Consoada
Hoje, nos olhos céu dela, despidos de estrelas, não há nada
Apenas um baço azul-desumano, à minha frente
perdido no tempo, no engano do espaço, da data, do ano

Alzheimer Adamastor. Vida por um fio Cabo das Tormentas

-Avó Lu, onde estás tu?

Ai! Como eu queria voltar a ver o que em criança nela via
A LUA descer em luz macramé de alegria
Um azul mar, ao nascer do dia, rompendo, a neblina, a caravela
E nas perdidas palavras da gramática, do obscuro mundo dela
Um SOL soletrar amor no mais belo poema de SOPHIA

Magda Graça
(2010/10/13)

* (A minha sobrinha de 3 anos)
(Uma homenagem também a todos os doentes que sofrem de Alzheimer e à minha avó materna que sofre da mesma doença)
 

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Saturday, May 14, 2011 - 02:36

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