Era o que me faltava! - 4

.

 

4

 

(continuação)

 

A Berta hoje teve um ataque de nervos. Foi necessário as guardas intervirem num rixa entre ela e outra reclusa que eu sei que faz parte do gang dos passadores. Afligi-me, porque se ela é castigada indirectamente eu posso sofrer com isso. Se há momentos embaraçosos entre nós as duas, aos quais me vou habituando, a verdade é que me é útil a nossa relação íntima. Quase não sei fazer de parceiro, mas ela é bem experiente e sabe de carícias e de voluptuosidade. É excitante, embora às vezes algo imprudente. A primeira vez que me apalpou os seios, olhar suplicante, mãos tocando-me os bicos com delicadeza, até corei. O meu sorriso receoso valeu-me um abraço estremecido e um murmúrio que me emocionou: — Obrigada, Dora! Sê minha amiga, por favor... — Nunca mais poderei esquecer este rogo tão íntimo e alvoroçante.

Contudo não lhe disse que sim nem que não, deixando alguma incerteza a pairar-lhe no espírito. Por um lado atrai-me esta ambiguidade sensual mas por outro causa-me apreensão. Particularmente porque não quero suscitar-lhe exigências. Aqui há as que têm maridos que as visitam e com quem até podem estar em privado, e há as que descaradamente se amassam e se beijam aí pelos cantos e até já vi outras a emprestarem-se vibradores. No fundo, eu com ela mantemo-nos vivas... Mas arranjo-me com simplicidade, para não despertar interesses inconvenientes, e quando visto apenas uma bata sobre o corpo não é propositadamente para agradar à Berta. Provavelmente é o meu espírito, carente de desejo, que inventa calor para me facilitar a mim o acolhimento da blandícia dela. Que fascinante e singular aventura estou a viver!

Ao que já reparei a outra tipa também é sua protegida. Quedei-me afastada da zaragata, mas depois consolei-a carinhosamente. Convém-me, por tudo. Depois de um pedaço de luxúria a Berta segredou-me: — Isto está mau... Como é que se pode morrer com uma espetadela de agulha no pescoço! Já sabias? E logo na minha cozinha... Acho que aquele estupor esteve metido nisso. Toma cuidado!

Este ponto está esclarecido. Processos de seita... O meu dia correu sem incidentes e dá-me a ideia de que não sabem que eu sei.

Nos cosméticos fiz interessantes conhecimentos pessoais, além de me ter especializado em estética e beleza corporal, e, o que não foi de somenos, alcancei perfil de vendedora e larga desenvoltura. Daí mudei-me sem dificuldade para o ramo imobiliário. E então comecei a auferir bons proventos. Não nego que quis vencer depressa e por isso usei alguns ardis levianos, não muitos, uns que me souberam bem outros que me proporcionaram momentos complicados. Mostrar habitações vagas a sujeitos de quem não se consegue definir antecipadamente o tipo psicológico mais provável, exige cautela, para mais, quando eram o meu género de homens, e pior sendo matreiros. Nessa altura pensei seriamente em instruir-me também em artes marciais. Contudo, já o meu rol de artifícios femininos era grande e foi dando para me desenvencilhar, ainda que uma ocasião só à tangente tenha escapado de ser violada.

Por graça, e emulação à minha vaidade, um mês era loira, no seguinte morena. Gosto de apresentar-me bem, com charme, e de ser cordial. Possuía boa roupa, uma completa panóplia de perfumes e de produtos de maquilhagem, e com regularidade gastava tempo num ginásio para conservar-me elegante. Ainda tenho bons trunfos.

Por eficiência e circunstâncias casuais não demorou que obtivesse uma promoção, traduzida em carro da empresa e carteira de clientes seleccionados. E pouco mais tarde também a possibilidade de passar para o quadro do pessoal contratado, com um razoável ordenado fixo, mas isto já não me seduziu. Implicaria perder muita da liberdade que então usufruía.

E foi quando surgiu o meu terceiro marido. Chamava-se Henrique. Um construtor civil, alegre e bem-falante, bonito homem, com quarenta e cinco anos, aparentando abastança de capital e viver folgado. Rondou-me, conquistou-me e propôs-me um negócio social, sem subterfúgios: casamento apenas no papel, regime de separação de bens, um belo apartamento mobilado para me instalar, sob promessa de no futuro me ser doado, vidas tão independentes quanto eu quisesse. O que ganhava ele? Uma mulher bonita, prazeres assíduos, e o meu nome para eventualmente salvaguardar propriedades e realizar transacções onde não queria que o fisco metesse o bedelho. Confiava em mim.

 

(continua)

Qualquer coincidência
com factos e pessoas da vida real
é precisamente coincidência.

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

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Martes, Abril 23, 2013 - 11:12

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