OS GÉMEOS - 32

.

 

(continuação)

 

A personalidade de Madeleine já não se ajustava de todo à imagem que William guardara com muita precaução num dos cantinhos confidenciais da sua memória. Raro utilizava essa área secreta, mantida na obscuridade do semiesquecimento, quase vizinha do seu subconsciente, e quando o fazia era mais para lá arrumar qualquer nova referência interdita ao seu quotidiano, do que para rever alguma das que antes lá encerrara. Um desses cantinhos era reservado a conhecimentos perigosos, outro destinado a conceitos demasiado fantasiosos e num outro alojava os assuntos catalogados como absolutamente inconvenientes. Neste último, aprisionara a figura de Madeleine, com todas as recordações de factos, circunstâncias e vaticínios que lhe respeitavam.

A mulher subtil, doce, sentimental, conservara-se, mas a mulher frágil, de assumida tranquilidade, algo envergonhada do seu encanto pessoal, era visível que fora substituída, ou abafada, por uma outra, auto-estimada sem rebuço, enriquecida pela alegria, mundana e sofisticada, vaidosa da sua cuidada beleza.

— Conheço esse olhar, dos meus sonhos... — Gostaria ele de lhe ter dito. Mas não podia. E por isso limitou-se a pronunciar uma banalidade, corando pela demasia de simplicidade e de sinceridade da expressão: — Estás linda! Madeleine...

— Ora!... William, tu é que me vês sempre com uns olhos muito favorecedores! Não imaginas como estou feliz por teres vindo. Cheguei a pensar que teria eu de te ir buscar ao arrozal. Despachas-te com a bagagem enquanto eu vou buscar o carro? Espero-te na entrada principal, está bem?

Tinha ido esperá-lo ao aeroporto com mais de meia hora de antecedência, e esperara sempre irrequieta, consumida de íntimo prazer por finalmente ir tê-lo para si, capaz de confessar isto a si própria com inteira lealdade e com um frémito de alegria, imaginando se ele a abraçaria, ou como melhor deveria incitá-lo a isso, mordiscando os lábios para os manter bem rosados, que os queria apetitosos mas sem pintura porque desejava beijá-lo com calor e só a saber a si, beliscando a palma da mão para dominar a faceirice que lhe saltava da alma para o corpo por antecipada alegria, e agora fugia-lhe, insegura, pudica e infantil, afinal incapaz de se lhe oferecer para ser recebida em amor, sem receio de mácula, e sem freio. Apenas conseguindo olhá-lo, a dizer-lhe assim tudo... mas só assim...  até a ternura de o ver enrubescer e o deleite de ouvir a sua adoração: — Estás linda! Madeleine...

Prometeu-se de novo que não voltaria a abdicar de William, por si própria. Não importava o não saber explicar-se porque lhe tinha amor ou porque sentia desejo de lhe pertencer. Pois ele era atraente, pois ele era meigo, pois ele queria-a... E o que é que isso justificava? Talvez estivesse presa a ele por terem partilhado com idêntica sensibilidade o instante de mais verdadeiro sofrimento na sua vida... a violenta e inesquecível dor de alma, o vórtice, nas raias do suicídio irrevogável, que realizaria se por desgraça tivesse ficado invisual.

Num ano e tal mudara muito. Antes, existia por inércia, quase com acanhamento de ser bonita, sem esforço nenhum para sorver a vida. Simples. Com a combatividade e o arbítrio de agora em letargia.

Aos vinte e seis anos deixara-se convencer por Jimmy e casara com ele. Era um destino, como qualquer outro. Fora uma atitude impulsiva, o que era raro nela. Se não tivesse cedido, talvez que ainda fosse solteira. O que não queria dizer que agora estivesse malcasada. Antes pelo contrário. Ele respeitava-lhe a individualidade fosse em que situação fosse, era carinhoso, e ainda a amava. Assim parecia. Era bem-apessoado e inteligente. Já nessa altura tinha fama de ser abastado, e de ser estranho, porque era pouco visto em reuniões sociais. De convivência um tanto reservada, como ela, aliás, mas não por snobismo. Logo na noite em que o pai dela os apresentou, James declarou-se-lhe apaixonado. Ela riu-se mas ficou a pensar que devia ser verdade, porque ele logo a seguir propôs-lhe casamento, com visível sinceridade. E ficou também a suspeitar que teria mesmo de casar com ele. Porquê? Por intuição. Embora pudesse demorar anos a decidir-se. Não era tímida, mas apreciava tanto a sua existência calma e apagada, talvez por obra da sua regrada educação, que não tentava sequer pensar no futuro. Nunca discutira isso com ninguém. Conhecia algumas amigas que já tinham tido aventuras amorosas complicadas, e no seu dizer escaldantes, mas fazia por privar pouco com elas, intimidada pela sua pouca tendência para o romanesco, e ainda mais pela sua inexperiência.

Quando conheceu James-William Ryzwick estava a terminar a sua licenciatura em Línguas Modernas, e nunca um homem ou rapaz lhe despertara o mais pequeno sobressalto do coração, apesar de nos primeiros anos do curso, e porque ela se distinguia bem no meio das colegas em matéria de graciosidade e de predicados físicos, alguns se terem esforçado por cativá-la. Simplesmente, não a tinham entusiasmado.

Se se desse ao trabalho de reflectir sobre si própria, concluiria decerto que tinha um comportamento psíquico bloqueado. No mínimo seria defensivo, o seu desinteresse ou falta de afectividade pelo sexo oposto. Ou talvez concluísse que, não havendo razões fisiológicas determinantes para a sua omissão, ainda não chegara o momento de desabrochar.

Estudava línguas, por gosto, como por gosto despendia muitas horas a aperfeiçoar a sua inclinação de pianista, ou como por gosto se dedicava ao sério divertimento de cozinhar ou de jardinar ou de jogar ténis. E, com isso, também nunca se perguntara coisas como O Universo é finito ou infinito? A Teoria da Evolução é uma ficção científica? O que é pecado, hoje? O seu quotidiano era preenchido com solicitações suficientes e bem materiais. E não era o facto de ter uma personalidade intimista, que lhe infundia propensão, ou necessidade interior, de se entregar a reflexões incomuns.

Daí que, dois meses depois de olhar James pela primeira vez, tendo ele conseguido a frequente companhia dela com os mais ingénuos ou habilidosos pretextos, lhe tivesse vindo aquele impulso de lhe dizer que sim, que se casava com ele, quando ele quisesse, porque não podia negar isso a um homem que levara todo aquele tempo antes a mostrar-se ponderado, gentil, cuidadoso com a sua imagem de respeitabilidade social, sempre tão sereno, com uma maturidade exemplar, e de repente tinha mandado o formalismo para as urtigas e estava a ali a cantar balalaicas e a dançar com o desembaraço e a alma de um cossaco, para lhe agradar, sob o aplauso e a gritaria de meia dúzia de amigos, nem todos íntimos, contagiados de frenesim, ela também, um pouco alcoolizados, sem dúvida, numa espantosa cena tão picaresca quanto insólita.

Isso dera-lhe a certeza de que ele a amava e era confiável, e portanto poderia casar com ele. Mesmo sabendo muito pouco dele, como constatava naquele instante... E também não sabendo nada de amor... Salvo que, estava a acreditar ser capaz de viver com ele em indulgente harmonia física e mental e isso deveria ser bom para ambos.

 

 
(continua)

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

 

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Miércoles, Mayo 29, 2013 - 11:05

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