Pescar verdades com moscas

A ideologia dominante afirma que o primado é do indivíduo. O que é curioso é o facto de a mesma ideologia dizer que o mesmo indivíduo é mau, que é egoísta por natureza. Mas todos dizem: “Eu faria, eu aconteceria”… e assim por diante.
A mosca terá morrido, finalmente, no copo com água?
Curioso…
Se ao menos tivesse caído no outro copo (com vinho) ao menos desfrutaria…
…as suas últimas horas.
É impressionante! O facto de observá-la, ainda viva, longos períodos após a constatação da sua queda no líquido neutro e insípido. Deve ter-se passado aproximadamente uma hora desde que reparei no incidente. As patas ainda se movem…
A agonia dos outros (dos outros, por vezes, e certamente) é fértil. Como nascer, aliás.
Coloquei-me, assim, na posição de Deus, como na política:
- Salvo ou não salvo a mosca?
Deus perde tempo, neste momento, a escrever, e vai adiando a decisão de chamar o empregado para pedir outro copo. Um “conde” francês do século XIX (de “nome” Lautreamont) já havia testemunhado por escrito que Deus se embebedava…
Já tenho alguma experiência nesta matéria. E não estou, neste momento, a discutir sobre teologia, tão pouco sobre Lautreamont. Quando a minha preguiça burguesa me ordena para que vá comer fora, tenho o hábito de pedir água e vinho. A água cumpre aí o papel de elemento tântrico da embriaguez. Nesse contexto, e à semelhança de qualquer outra pessoa “civilizada”, costumo pedir dois copos, para cada um dos fluidos em jogo nesta inútil dissertação.
Numa das incontáveis repetições desta rotina enfadonha, eis que um dia uma mosca resolveu despenhar-se no copo com água. Por isso, a minha já fustigada inteligência negou-me a expressão do que ainda me resta da caridade.
Indispensável para a compreensão deste testemunho é o facto de o vinho me agradar mais do que a água. Assim, se a puta da mosca tivesse caído no vinho teria muito mais hipóteses, porque nesse caso teria logo chamado o empregado a reclamar outro copo, e assim, o que restava daquela garrafa, naquela tarde.
Chamado de pronto, chamado de pranto…
Assim, no meio da diligência do empregado – levar o copo inutilizado da esplanada ao lava loiças, despejar o copo e trazer-me outro, talvez a mosca se libertasse por entre os despojos da loiça suja e regressasse à Natureza possível.
O futuro poderia, de facto, sorrir para a mosca, dado muitos cientistas afirmarem que o tempo corre muito mais devagar para este tipo de criaturas, dada a brevidade do seu ciclo de vida. Em compensação, reproduzem-se profusamente.
Talvez a sabedoria que a mosca nos transmite seja tão efémera como a beleza da mais bela das borboletas.
Posto isto, a decisão da mosca (a de cair na água em vez do vinho) foi para mim um atentado – dela própria (da mosca) ou do acaso, ou de Deus (o outro Eu) – à minha saúde, ao meu fígado. Terá sido também um brinde à minha embriaguez, o único conforto que para mim existe por enquanto perante a ideia do fim.
Talvez esta estória venha a ter um final feliz porque entretanto o vinho acabou … e a mosca ainda se debate neste momento! E o que é verdade é que o meu saldo bancário ainda está bom e resolvi pedir mais qualquer coisa ao empregado:
- Já agora, substitua-me o copo com vinho. O copo tem uma mosca.
Se bem me lembro, nunca tinha assistido a uma morte lenta, nem mesmo à lenta morte de uma mosca.
Todas as que vi morrer morreram de morte violenta.

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Martes, Julio 8, 2008 - 20:58

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Phalovich

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Re: Pescar verdades com moscas

Texto bem escrito em dom da palavra!

:-)

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