Mil anos de nada

No último olhar, naquele último adeus dito com a força de mil sóis que explodiam e faziam borbulhar as lágrimas no canto dos meus olhos, soube que era para sempre. Disseste-me para não olhar para trás quando largássemos as mãos e virássemos costas a nós mesmos (porque sabes que não existimos nunca um sem o outro, nunca completamente; eu fui eu contigo, e tu sem mim, não serias nunca), mas não o fiz. Tu sabias que não o faria.
Lembras-te de mim? Aquela que te implorou que agarrasses o momento com as duas mãos e mordesses o espanto. Quem te levantou do chão vezes sem conta quando o mundo girava anormalmente depressa e te fazia tropeçar nas dúvidas que te estalavam no cérebro. Aquela que soube quem tu eras no meio da multidão de rostos sem feições.
Aquela que ainda hoje se lembra de ti.
Lembro-te da manhã em que te vi sonhar com passagens bíblicas; de como aquelas lengalengas rodopiavam nos teus lábios que sopravam delírios dementes; de como te sentaste no meio da estrada e beijaste o asfalto quente com ternura de irmão; de como me sentei com um estranho perante os incrédulos e fechei os olhos: fui chão. A mim todos passos de uma humanidade que arrasta os pés!
Mas não fomos apenas feitos de momentos de poesia pois não? Fomos feitos de monotonia, rotina, tédios incertos. Fomos tardes sem nada para fazer. Fomos silêncios desconfortáveis em dias de estranha lucidez, em que desesperávamos por aquela gota de loucura que nos levava sempre para o lado de lá (o mundo dos loucos) e ressacávamos por teorias insanas sobre detalhes absurdos das vidas de pessoas que existiam apenas na nossa cabeça.
Lembro-me de atravessar paredes contigo. Lembro-me de quando saltamos para o abismo e acordamos de mãos dadas. Lembro-me de morrer e de nascer contigo, outra e outra vez.

«Outra e outra vez. Mil anos de ti.»

Mas quando, naquela madrugada, me levaste a molhar as mãos no mar e me olhaste com os olhos vazios, soube que era para sempre. Porque dentro desse peito já não eras tu, pois não? Não, bem sei que não eras tu. Quando me disseste para não olhar para trás e seguisse o meu caminho, foi o último instante em que exististe. Quando largámos as mãos já não eram as nossas mãos, pois não? Porque as minhas mãos são minhas quando as tuas mãos são minhas, e agora já nada de ti é meu. Mas mesmo assim olhei uma última vez, um último adeus: não a ti, mas mim própria.

Porque já nada de mim é teu, tornas-te do Mundo.
Porque já nada de ti é meu, sou de Ninguém.
Esgoto-me. Acabo. Chego ao fim.

E enfrento mil anos de nada.

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Viernes, Agosto 22, 2008 - 13:50

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Re: Mil anos de nada

Texto bem escrito em dom da palavra!

:-)

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