O homem que deflagrou a Revolução Federalista
Paulo Monteiro
Francisco de Assis Cintra foi um professor dos tempos em que os professores escreviam para serem entendidos. Fazia do magistério um ministério. Seus livros têm o sabor das obras clássicas. Um deles, “O General que vendeu o Império” tem muito a ver com a história do Rio Grande do Sul. Algumas passagens tratam de um personagem dos mais importantes na deflagração da Revolução Federalista, o general João Nunes da Silva Tavares, Joca Tavares.
Em 17 de junho de 1892, apenas oito dias após ter assumido do governo do Estado, o visconde de Pelotas passava o governo a Joca Tavares. Na tarde desse mesmo dia, à frente de um movimento armado retomava a cadeira governamental, em Porto Alegre. João Nunes da Silva Tavares assumiu apenas nominalmente o governo do Estado. Não pode sair de Bagé, acossado por forças favoráveis a Júlio de Castilhos.
Caudilhos republicanos, de Canguçu e adjacências, velhos inimigos do clã dos Tavares, investiram contra Bagé, arrasando o que encontravam pela frente. Não poupavam vidas e bens dos amigos dos odiados adversários. Diante dessa situação, temendo o pior, Gaspar da Silveira Martins passou um dramático telegrama a Joca Tavares:
“General Silva Tavares – Bagé – Governo central apóia com forças federais situação política por ele criada Estado; por mais numerosas sejam forças comandais, si não desarmardes, terrível guerra civil – maior flagelo pode cair sobre um povo, - será fatal conseqüência. Centro não pensou, guerra neste Estado abalará toda federação não ainda consolidada. Como em 35, guerra pode tornar-se de independência; como em 25, intervindo republicas vizinhas, pode tornar-se externa; vossa grande pátria, dilacerada pelos ódios, enfraquecida pela intolerância, se dissolverá. Que brasileiro hesitará fazer máximo sacrifício para evitar irreparável calamidade? Patriotismo manda suportar tudo; proteste contra precedente, ressalve direito Estado, mas entre acordo desarmar. Não ficará menor, antes muito elevado. Haverá descontentes; não têm sua responsabilidade. Historia não registrará feito mais patriótico veterano guerra Paraguai. General Mitre frente 7.000 homens depôs armas La Verde para não arruinar pátria pela guerra civil; Mitre ainda é o cidadão mais respeitado de toda a Confederação. Não comandastes em chefe exercito aliado, não fostes chefe Estado como Mitre, mas não sois menos brasileiro que Mitre Argentino; haveis de proceder como ele. Como chefe de partido aconselho, como correligionário peço, como rio-grandense suplico: - Guerra civil, não. Não é necessária para conquistar poder e conter governo federal; dificuldades todo gênero, erros naturais de governos, liberdade de imprensa, opinião pública fazem o que violência não consegue. Só força maior tem impedido achar-me aí para poder verbalmente manifestar necessidade evitar todo transe guerra civil. – Porto Alegre, 21 de Junho de 1892. – SILVEIRA MARTINS.”
Alguns historiadores, como Wenceslau Escobar, prócer federalista, e um dos primeiros historiadores daquela guerra fratricida, afirma que o destinatário não recebeu o telegrama antes entregar uma centena de lanças e algumas carabinas o coronel Arthur Oscar Andrada Guimarães, no dia 4 de julho. Entretanto, é muito provável que o telegrama é que tenha levado o velho cabo de guerra à rendição. Como veremos mais adiante ao comentarmos a participação de Joca Tavares na morte do ditador paraguaio Francisco Solano Lopes, ele não era muito obediente “a ordens superiores”.
A ata de rendição de Joca Tavares tem o seguinte teor:
“Aos quatro dias do mês de julho de mil oitocentos e noventa e dois, às dez horas da manhã, nesta cidade de Bagé, em casa de residência do general João Nunes da Silva Tavares, presentes os abaixo assinados, membros do comitê e oficiais superiores das forças civis aqui reunidas, declarou o presidente do mesmo comitê, dr. Cândido Dias de Borba, que tinha sido convocada esta reunião para o fim de deliberar-se se nas circunstâncias atuais devia continuar ou não a resistência contra o pretenso governo do dr. Vitorino Ribeiro Carneio Monteiro, sustentando aquele de que se achava investido o referido general João Nunes da Silva Tavares, e depois de discutido o assunto sob diversos pontos de vista, foi unanimemente resolvido que se renunciasse à idéia de resistência, pelas duas razões seguintes: 1ª a intervenção clara e manifesta do governo do centro nos negócios peculiares do Estado rio-grandense, contra expressa disposição da constituição federal, esposando a causa do referido Vitorino Monteiro; intervenção que claramente resulta dos fatos que passa a enumerar. O regresso ao Estado de diversos comandantes de corpos que, manifestamente hostis à revolução de novembro haviam sido chamados ao Rio de Janeiro; a manifestação visivelmente expressada da vontade do vice-presidente da República em diversos telegramas dirigidos ao comandante do sexto distrito militar, general Bernardo Vasques, e ao dr. Vitorino Monteiro, que correm impressos em jornais da capital e nos de outras cidades do Estado; o pronunciamento sem reservas em favor dos revolucionários das guarnições do Rio Grande, S. Gabriel e Jaguarão; o fornecimento de armas dos Arsenais e depósitos federais a populares afetos à causa da revolução e, nomeadamente, a entrega a eles de bocas de fogo ao mando do alferes Napoleão e algumas praças do 1º regimento estacionado em S. Gabriel; a quebra de neutralidade assegurada pelo referido general Bernardo Vasques ao capitão-de-fragata Legey, comandante da flotilha estacionada na capital do Estado, seguida de clara manifestação daquele general em prol da causa revolucionária, fatos estes que motivaram o bombardeamento da mesma capital; a ordem do dia nº 1 do general Izidoro Fernandes, em que se declara comandante-em-chefe das forças revolucionárias do Livramento, publicada em boletim daquela cidade, fato este que bem indica a solidariedade do governo central com o procedimento desse general; finalmente o fato assaz conhecido da seleção odiosa que fez o general Vasques dos corpos afeiçoados ao dr. Júlio de Castilhos, mandando-os seguir de Cacequi para Porto Alegre, ao passo que outros em que suspeitava sentimentos não idênticos, deixou-os no campo de manobra, tirando-lhes as munições e privando-os dos meios de locomoção. 2ª Porque, estando o movimento de reação circunscrito aos municípios de D. Pedrito, Livramento e Bagé, para onde convergiam forças de S. Gabriel e Herval e não se podendo contar com elementos reacionários de outras localidades, pelo fato de haverem sido inopinadamente ocupadas pelos revolucionários que impediam toda a reunião de forças a eles adversas, parecia não se poder esperar o seu valioso concurso para o triunfo da causa, vindo a ser, nestas circunstâncias, improfícuo todo o sacrifício, e só em detrimento dos interesses do Estado, situação esta que como patriotas não devíamos criar. Assim deliberando os abaixo assinados julgam haver cumprido seus deveres cívicos, devendo nesta emergência cada um acarretar com a responsabilidade de seu procedimento. Em seguida, o general João Nunes da Silva Tavares, que se achava presente, tomando a palavra, disse que, julgando ponderosas as razões expendidas e justificados os motivos deduzidos pelos membros da reunião, conformava-se com a deliberação, e de acordo com ela ia proceder, mandando dissolver as forças reunidas. E nada mais havendo a tratar, encerrou-se a sessão, lavrando-se esta ata. Que vai assinada por todos depois de lida e aprovada. E eu, Cândido Tavares Bastos, servindo de secretário a escrevi e assino. – Dr. Cândido Dias de Borba, presidente do comitê. – Dr. Tertuliano Ambrosino da Silva Machado – Dr. Cândido Tavares Bastos – Dr. Nicanor de Souza Peña – Dr. Saturnino E. de arruda – General João Nunes da Silva Tavares – Coronel José Maria Guerreiro Vitória – Coronel Ladislau Amaro da Silveira – Tenente-coronel Cândido Xavier de Azambuja – Tenente-coronel José Facundo da Silva Tavares – Tenente-coronel Domingos Ferreira Gonçalves – Coronel José Bonifácio da Silva Tavares – Coronel João Maria Epaminondas de Arruda, chefe do Estado-Maior – Coronel Joaquim Nunes Garcia – Tenente Coronel Leonardo José Colares – José Serafim de Castilhos – Major Alexandre José Colares – Lourenço da Silva Oliveira – Coronel Manoel Xavier”.
O certo é que nem Joca Tavares entregou todas as armas, nem seus adversários moderaram os métodos. Muito antes pelo contrário, a perseguição aos vencidos continuou num crescendo, dentro da velha tradição da violência que marcava a política rio-grandense. Avolumou-se o número de exilados. O próprio Gaspar da Silveira Martins buscaria abrigo em Montevidéu.
Amigo de mesa farta e mulheres fáceis, o conselheiro sentir-se-ia muito bem na capital uruguaia, onde morreria, anos depois, nos braços de uma jovem atriz italiana. De Montevidéu, durante a Revolução Federalista somente se afastaria uma vez, em dezembro de 1893, logo após o massacre do Rio Negro, para interceder pela vida do general Izidoro Fernandes. Esse afastamento culminaria com sua expulsão do território uruguaio.
Retrocedamos no tempo. Estamos em Cerro-Corá, fronteira do Paraguai com a Bolívia, em 1º de março de 1870. Acossado pelas forças brasileiras, comandadas pelo brigadeiro José Antônio Corrêa da Câmara, o mesmo Visconde de Pelotas que renunciaria ao governo do Estado em favor de Joca Tavares, no dia 17 de junho de 1892, o ditador paraguaio, marechal Francisco Solano Lopes, acabou morto pela cavalaria comandada pelo general João Nunes da Silva Tavares.
O exército paraguaio estava reduzido a um punhado de homens mal-armados que resistiam estimulados pelo slogan “Vencer ou Morrer”. Heitor Varela, contemporâneo dos acontecimentos, membro de uma família de políticos e intelectuais argentinos, em 1872, publicou o livro “Elisa Lynch”, onde conta como foi o fim do ditador paraguaio.
O brigadeiro Corrêa da Câmara queria que Solano Lopes fosse capturado vivo. Cercado pelos lanceiros de João Nunes da Silva Tavares, não aceitou a ordem para render-se. Dentro do riacho Aquidaban-nigui resiste. Aos gritos de “Muero con mi patria y com mi espada em la mano!” chegou a partir de espada para cima de Corrêa da Câmara. É baleado no ventre com dois tiros de revólver desferidos pelo tenente Franklin Menna Machado ventre.
Solano Lopes cai do cavalo, mas continua resistindo. Procura subir no barrando do riacho Aquidaban-nigui. Diversos brasileiros tentam desarmá-lo, mas não larga a arma. O soldado gaúcho João Soares encosta uma clavina em suas espáduas e dá um tiro de misericórdia. Francisco Solano Lopes está morto.
Outras versões afirmam que antes de ser ferido mortalmente pelo solado João Soares o marechal teria levado dois lançaços na virilha, desferidos pelo cabo de alcunha Chico Diabo. Os ferimentos foram profundos, tanto que por eles esguichavam sangue e urina, o que levaria, fatalmente, o ferido ao óbito.
Esse Chico Diabo, segundo a maioria dos historiadores era o camaqüense José Francisco de Lacerda (1848-1893). De acordo com Nei Lopes, na “Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana”, seria o baiano Francisco Fernandes de Souza (1843-1917). Já Marcelino Nunes, no artigo “Chico Diabo, vilão ou herói?”, dá entender que era um mineiro Francisco Gomes Diniz, falecido pouco tempo depois da Guerra Contra o Paraguai, e que teria mudado o nome para José Francisco de Lacerda.
Depois da morte do marechal Solano Lopes, a soldadesca brasileira entregou-se à degola de prisioneiros, ao saque, ao vilipêndio de cadáveres e ao estupro de paraguaias. Eis como Heitor Varela termina seu relato:
“Ali, naquele horrendo campo de batalha, que era o calvário de uma pátria heróica, foram degolados o vice-presidente da República do Paraguai, ancião de oitenta anos, o intrépido general Roa, e o coronel Aguiar. Até o menino José Félix Lopes, de onze anos, filho do marechal, não escapou à fúria sanguinária. As mulheres serviram de pasto à brutal lubricidade dos vencedores, que, por fim, puseram fogo no campo de batalha e macegas circunvizinhas, onde se carbonizaram os corpos de soldados paraguaios, mortos e feridos”.
Qual o motivo para que tenentes, cabos e soldados tanto quisessem matar – e não aprisionar vivo – o ditador paraguaio? A recompensa de cem libras de ouro oferecida por Joca Tavares àquele que matasse Solano Lopes. Tanto que existem inúmeros documentos de contemporâneos, testemunhando que, imediatamente após ferir (se é que feriu) o marechal, Chico Diabo correu para o general, cobrando a recompensa. Contam que não recebeu as cem libras de ouro, mas cem vaquilhonas (“novilhas virgens”).
Qualquer semelhança entre o massacre de Aquidaban-niqui e os massacres ocorridos durante a Revolução Federalista podem não ser mera coincidência. Afinal, à frente das tropas aparece o mesmo homem, o general José Nunes da Silva Tavares, o Joca Tavares.
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