O Primeiro Romance Gaúcho

Paulo Monteiro (*)

Um dos maiores mistérios da história literária do Brasil acabou em 1992, quando o livreiro pelotense Adão Fernando Monquelat localizou, na capital uruguaia, o único exemplar até o presente conhecido dos dois volumes de A Divina Pastora: Romance Rio-Grandense, impresso na Typographia Brasileira de F. M. Ferreira, no Rio de Janeiro, no ano de 1847.
Durante 145 anos o livro de José Antonio do Valle, que mais tarde acrescentaria os sobrenomes de Caldre e Fião, esteve desaparecido. Após encontrado em Montevidéu foi adquirido pela RBS – Rede Brasil Sul de Comunicações, de Porto Alegre, que promoveu a segunda edição, ainda em 1992.
A Divina Pastora, além do primeiro romance gaúcho, é um dos iniciadores da prosa literária mais longa no Brasil. Seu autor, agora comprovadamente, inscreve seu nome entre os pioneiros Joaquim Norberto de Souza e Silva, José Pereira da Silva e Joaquim Manuel de Macedo. Os dois primeiros, irmãos, que na década de 1830/40. Macedo, que publicou A Moreninha em 1844, foi o primeiro romancista brasileiro a ter sucesso.
Entre o livro de Macedo, nascido em 1820, acadêmico de Medicina, e o de Caldre e Fião, nascido em 1821, há algumas coincidências. Ambos se tornaram médicos, exerceram o jornalismo, foram parlamentares, compuseram versos e as personagens de seus primeiros livros são mulheres: Carolina, em A Moreninha, e Ediléia, a Divina Pastora, que acabam sozinhas. As coincidências, digamo-lo assim, não param por aí: Macedo (Cap. XII) faz críticas à medicina de seu tempo, em termos às efetuadas por Caldre e Fião (Parte Terceira); o fluminense apresenta uma manifestação indianista, uma lenda (Cap. IX), o gaúcho (Parte Quarta) mostra Kajururá, cacique minuano. E para quem julgar pouco, ambos procuram explicar os caracteres usando seus conhecimentos de Medicina, o que pode prestar-se à interpretação como alguma espécie de pré-naturalismo.
A Divina Pastora é um romance histórico, apesar de apresentar características de uma obra de costumes. Não vamos discutir hipóteses para seu desaparecimento por quase um século e meio. Pouco importa se isso se deve a uma represália de contrabandistas de escravos contra o líder abolicionista Caldre e Fião ou ao tipo de pacificação do Rio Grande, após a Revolução Farroupilha.
Caldre e Fião procura dar uma fundamentação realista, citando dados, personagens e locais reais. Almênio, o monarca das coxilhas, é muito mais real do que Manuel Canho, o centauro das coxilhas, de O Gaúcho (1870), de José de Alencar. Almênio, apesar de todo o moralismo folhetinesco de seu criador, toca-nos ainda por seu realismo. Já Manuel Canho é um elemento estereotipado. Edélia, embora pareça mais uma personagem do Arcadismo – atente-se para o re-batismo para Divina Pastora que lhe foi imposto pelo povo, no dizer do romancista – é mais humana, mais concreta do que Catita, criada pelo escritor cearense. Almênio acaba feliz com a nobre prussiana Clarinda, enquanto Edélia cuida de doentes e desamparados; Canho e Catita, em meio a uma tempestade, engarupados, nessa égua Morena, quase humana como a cavalhada que povoa a Pampa mítica de Alencar, precipitam-se num abismo. Sobra a imagem facinorosa de Félix à margem do despenhadeiro.
Almênio, no reacionarismo político de Caldre e Fião, é um herói positivo. Entrando no drama romanístico ao lado dos Farroupilhas, revê suas posições políticas e conquista o amor e o respeito das pessoas “moralmente” corretas que estavam do lado legalista. Enquanto isso, mesmo mudando de lado na Revolução, Colomim, acaba fuzilado, por seu próprio filho, o pusilâmine Francisco, capitão do Exército Imperial.
A Divina Pastora procura explicar a Revolução Rio-Grandense de 1835 como conseqüência de “alguns abusos”, “levando os homens ao fanatismo político”, preparado em “clubes diversos”. Essa oposição ao status quo político é alimentada pelo egoísmo e pro elementos completamente negativos. Numa palavra: toda revolução é má e todos os maus, independentemente do grau da maldade, acabam destruídos ao final do romance. Colombim, louco, é fuzilado pelo filho Francisco, que termina enlouquecido ao lado da ensandecida Amélia, ambos findando seus dias na miséria. A escrava Susana também falece ao terminar o livro. Fabrício é outro que enlouquece, sendo recolhido por Edélia. E, em posição inversa aO Gaúcho, de Alencar, o romance de Caldre e Fião termina para que ainda sobre alguém mau na face da Terra.
A Divina Pastora, guardadas as limitações de seu autor e o estágio em que se encontrava a ficção brasileira da época, insere o Rio Grande do Sul na gênese do romance nacional. Uma das últimas fronteiras consolidadas do Brasil, o Rio Grande precisa lembrar seu primeiro romance, contribuindo para que ocupe o lugar na história literária nacional, que já lhe estaria assegurado, não fosse um sumiço de 145 anos.

Submited by

Jueves, Febrero 19, 2009 - 11:24

Prosas :

Sin votos aún

PauloMonteiro

Imagen de PauloMonteiro
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 12 años 16 semanas
Integró: 01/19/2009
Posts:
Points: 611

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of PauloMonteiro

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia/Amor Oração do Poeta 0 1.891 12/19/2012 - 13:38 Portuguese
Prosas/Otros BOCAGE: O POETA CONTRA A HIPOCRISIA 2 3.057 06/30/2012 - 21:52 Portuguese
Prosas/Otros Anistia para Bocage! 2 3.103 06/30/2012 - 21:39 Portuguese
Prosas/Otros A personalidade violenta de Júlio de Castilhos 0 2.556 06/18/2011 - 17:21 Portuguese
Fotos/Perfil 845 0 2.519 11/24/2010 - 00:36 Portuguese
Prosas/Otros LAURO RODRIGUES 0 2.900 11/19/2010 - 00:08 Portuguese
Prosas/Otros Traição e massacre em Porongos 0 2.603 11/19/2010 - 00:05 Portuguese
Prosas/Otros Razões que me Levaram a Escrever O Massacre de Porongos & Outras Histórias Gaúchas 0 3.355 11/19/2010 - 00:05 Portuguese
Prosas/Otros A TROVA NO ESPÍRITO SANTO (História e Antologia) 0 2.932 11/19/2010 - 00:05 Portuguese
Prosas/Otros Ensinando o ABC 0 2.530 11/19/2010 - 00:05 Portuguese
Prosas/Otros JUCA RUIVO 0 3.947 11/18/2010 - 23:56 Portuguese
Prosas/Otros VARGAS NETTO 0 2.084 11/18/2010 - 23:56 Portuguese
Prosas/Otros AURELIANO DE FIGUEIREDO PINTO 0 2.384 11/18/2010 - 23:56 Portuguese
Prosas/Otros Academia Passo-Fundense de Letras Elege Nova Diretoria 0 3.360 11/18/2010 - 23:56 Portuguese
Prosas/Otros A comunicação na Justiça Brasileira 0 2.117 11/18/2010 - 23:55 Portuguese
Prosas/Otros Galileu é meu pesadelo 0 2.386 11/18/2010 - 23:55 Portuguese
Prosas/Otros Passo Fundo e a Guerra Contra o Paraguai 0 3.433 11/18/2010 - 23:51 Portuguese
Prosas/Otros Maldita Guerra 0 2.124 11/18/2010 - 23:51 Portuguese
Prosas/Otros Academia Passo-Fundense de Letras revela novos escritores 0 3.708 11/18/2010 - 23:50 Portuguese
Prosas/Otros O Centenário Esquecido do Tratado de Limites Brasil-Peru 0 2.127 11/18/2010 - 23:48 Portuguese
Prosas/Otros Academia Passo-Fundense de Letras Promove Lançamento de Romance Sobre “Caso Adriano” 0 2.756 11/18/2010 - 23:48 Portuguese
Prosas/Otros Federalistas, pica-paus, libertadores e chimangos 0 3.653 11/18/2010 - 23:48 Portuguese
Prosas/Otros O negro em Passo Fundo 0 3.272 11/18/2010 - 23:48 Portuguese
Prosas/Otros A Rebeldia do Cadete Euclydes da Cunha 0 2.658 11/18/2010 - 23:48 Portuguese
Prosas/Otros 1883/2009 – 116 Anos de Ativismo Cultural 0 2.500 11/18/2010 - 23:48 Portuguese