Edízio Mendonça: “O Historiador do Sertão”
Paulo Monteiro
A história local é um campo de trabalho de apaixonados. É a melhor comprovação de que não existe história neutra. Obra de homens desprendidos, movidos pelo compromisso de preservarem a memória de suas comunidades, via de regra, é a oralidade escrita. Destarte, aproxima-se do jornalismo. E deste, no geral, conserva o tom adjetivoso da imprensa tradicional.
Um dos fenômenos sócio-políticos mais representativos é o coronelismo. Sobre ele muito se tem escrito. Algumas obras se tornaram clássicas, como “Coronelismo, Enxada e Voto”, de Victor Nunes Leal, cuja primeira edição é de 1949, e “Jagunços e Heróis”, de Wanfrido Moraes, prêmio Joaquim Nabuco de 1963, da Academia Brasileira de Letras.
Victor Nunes Leal define “o ‘coronelismo’ como resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constitui fenômeno típico de nossa história colonial. É antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa”. (Op. Cit., 2ª Ed., São Paulo, Alfa-Ômega, 1975, p. 20).
Entretanto, como toda definição, o conceito do autor de “Coronelismo, Enxada e Voto”, é limitado. A realidade é muito mais profunda. A belicosidade coronelista é ancestral. O estabelecimento de fazendas de gado no sertão nordestino está intimamente ligado à mineração. A luta dos garimpeiros pela sobrevivência foi muito grande. Grupos acabaram se formando em torno da defesa das minas. Como em todo processo de acumulação primitiva, a força armada, enquanto meio de trabalho, desempenhou um papel preponderante. Também a guerra de extermínio ou dominação plena sobre as tribos indígenas inseriu-se nesse processo de acumulação primitiva, contribuindo para a formação dos “coronéis do boi”, para usar uma expressão de Marcos Vinicius Vilaça.
Donald Pierson resume muito bem a formação do coronelismo do sertão nordestino nos três alentados tomos de “O Homem no Vale do São Francisco” (Ministério do Interior/Superintendência do Vale do São Francisco, Rio de Janeiro, 1972), especialmente no Capítulo VI, do tomo I. No Capítulo IV, tomo III, demonstra que a violência coronelista, especialmente sob a forma de luta armada entre coronéis e seus jagunços, assume um papel de guerra de conquista territorial. Reeditam-se a expulsão dos indígenas e a tomada de garimpos dos tempos pretéritos. Os vencidos acabam sendo expulsos deixando suas terras nas mãos dos triunfadores.
Em “Capitão João Pedro” (s/ed., s/l, 2002), Edízio de Mendonça biografa os vultos mais representativos do coronelismo da Chapada Diamantina e seus descendentes e em “Campestre e seus Horrores” (Secretaria da Cultura e Turismo, EGBA, Salvador, 2006) narra os episódios daquilo que Walfrido Moraes denomina “Revolução Sertaneja”, envolvendo os jagunços do coronel Manoel Fabrício de Oliveira, de um lado, e dos do coronel Horácio de Matos, do outro, tendo como “leitmotiv” o assassinato de Vítor de Matos, irmão do coronel Horácio e que, pouco depois, prossegue com a sucessão do governo baiano.
Segundo Walfrido Moraes (“Jagunços e Heróis”, 3ª edição revista e ampliada, Câmara dos Deputados, Brasília, 1984, p. 63) “Vítor de Matos, a vítima, era um elemento morigerado, mas de uma capacidade de reação, quando provocado, que superava, talvez, a todos os demais varões da família”. Já Edízio Mendonça (“Campestre e seus Horrores”, p. 15) apresenta outra imagem da vítima: “Na noite de 4 de dezembro de 1914, Vítor de Matos, responsável por 28 assassinatos, é assassinado em Olhos d’Água do Seco, nas Lavras Diamantinas (...)”. Mais adiante, ao biografá-lo (p. 107/109) conta que ele “matou a companheira e pôs a criança, que segundo alguns, era seu filho, a mamar no cadáver enquanto foi avisar umas pessoas que moravam perto”.
A impressão que se tem é que Walfrido e Edízio falam de dois homônimos, antípodas em comportamento. Não. Simplesmente, o autor de “Jagunços e Heróis” (Op. cit., p. 23) “Entrou na tipografia de ‘O Sertão’, de propriedade do Chefe Horácio de Matos, aos 9 anos de idade, como aprendiz, chegando a redator-chefe daquele jornal que lhe despertou a vocação para o jornalismo e a literatura”. Ao lermos a relação de “mosquitos”, apelido que a eles mesmos se davam os inimigos políticos dos Matos, apresentada por Edízio RODRIGUES MENDONÇA, no livro “Capitão João Pedro” (Ed. cit., págs. 20 e 21) encontramos os seguintes nomes: Anízio RODRIGUES Coelho, Antônio RODRIGUES MENDONÇA, Adelino RODRIGUES Coelho, Eugênio RODRIGUES de Araújo, Ezequiel RODRIGUES MENDONÇA, Luiz RODRIGUES Coelho, Leonel RODRIGUES Coelho e Nestor RODRIGUES Coelho. Sublinhei o sobrenome completo do historiador para salientar suas ligações familiares com os aliados do coronel Manoel Fabrício de Oliveira. Aliás, o comandante dos barra-mendenses era o coronel Militão RODRIGUES Coelho.
A pacificação, pelo menos em termos militares da região, consumou-se com a intervenção federal na Bahia, a 23 de fevereiro de 1920 e foi consumada através do chamado “Convênio de Lençóis”, de 24 de abril daquele ano. O documento previa, em sua Cláusula Terceira, a supressão do município de Barra do Mendes e sua incorporação ao de Brotas de Macaúbas e, na Cláusula Quarta, a “Retirada absoluta de Manuel Fabrico da política do município de Campestre, fazendo-se, depois, a reunião dos habitantes do mesmo município para escolha dos seus representantes”. Além disso, eram feitas vantajosas concessões políticas aos “mandiocas”, como eram conhecidos os partidários da família Matos. O documento em epígrafe pode ser lido às páginas 98 e 99, de “Jagunços e Heróis” e às páginas 59 a 61 de “Campestre e seus Horrores”.
O coronel Manoel Fabrício de Oliveira, recebendo um emprego do governo baiano, afastou-se definitivamente de Campestre, hoje Seabra, falecendo em Itaberaba a 20 de julho de 1939. Na prática, ocorreu o mesmo fenômeno descrito por Donald Pierson, a expulsão do vencido. Os Matos adquiram projeção política estadual e nacional. O coronel Horácio de Matos, segundo Edízio Mendonça, que já havia recebido dinheiro dos oposicionistas para liderar a revolta sertaneja, além de prestigio político recebeu mais recursos, agora, daqueles que ele combateu durante a insurgência.
No começo deste artigo, ao grafar que não existe história neutra, mormente em ternos de história local, referia-me à dificuldade de escrever com a devida isenção, quando pessoas das próprias comunidades, registram essa história. É raro o historiador conseguir afastar-se dos fatos. Assim, o mesmo Vitor de Matos é um “elemento morigerado” para Walfrido e, para Edízio, o “responsável por 28 assassinatos”, inclusive da amásia e de deixar seu próprio filho mamando na mãe morta.
As relações de parentesco e compadrio exerceram um papel preponderante, como sedimentação grupal, na política dos coronéis. Os historiadores locais, na maioria dos casos, mantêm esse tipo de ligação com os descendentes dos velhos coronéis ou até mesmo de dependência econômica ou subordinação política.
Donald Piersen, na pesquisa realizada nos primeiros anos da década de 1950, notou que os partidos surgidos após o fim do Estado Novo serviam como espécie de guarda-sol para abrigar grupos que guardavam as tradições coronelistas. Nas cidades em que havia concentração urbana essa política tradicional sofria rupturas com a presença de novas lideranças. Ezídio Mendonça, em “Capitão João Pedro”, lista uma série de líderes políticos da “Família Souza Santos”, em toda a região, o que demonstra que o sangue dos velhos coronéis sertanejos continua circulando nos meios onde eles exerceram influência.
Dentro da “parcialidade histórica” encontramos um lado demonizando os partidários do outro e endeusando os seus. É o caso da “morigeração” e dos “28 assassinatos” atribuídos a Vítor de Matos. Edízio em “Campestre e seus Horrores” (págs. 27 a 31) traz o documento que dá título ao livro, assinado por Virgílio Ramos de Figueiredo e Avelino José dos Santos, publicado no “Diário de Notícias”, de Salvador, em 23 de abril de 1915, onde são denunciados saques, assassinatos e estupros, praticados pelos jagunços do coronel Manoel Fabrício de Oliveira.
Em todas as regiões e épocas onde ocorreu o processo de acumulação primitiva patrocinado por potentados rurais, seja entre os coronéis do Nordeste ou os caudilhos do Sul, a violência era parte integrante do processo. Aplica-se-lhes o que disse Aldenor Benevides em “Misticismo e Fanatismo no Nordeste” (Imprensa Oficial do Ceará, Fortaleza, s/d, págs. 10 e 11): “(...) As famílias que dominavam grande parte dos municípios nordestinos, tendo à frente os célebres ‘coronéis’, contavam com a participação de juízes venais, delegados arbitrários e outras autoridades que se deixavam levar pela contaminação local, inclusive muitos vigários apaixonados e renitentes que se constituíam elementos de discórdia nas comunidades. Essas máquinas políticas organizadas e com o apoio oficial planejavam emboscadas, surras, desfeitas e toda sorte de crimes e misérias. Era o regime das perseguições e do terror que pontilhou as estradas nordestinas de cruzes, de desaparecidos nas emboscadas traiçoeiras. A justiça e o direito, a ordem e o progresso, a disciplina e a cultura, eram representados pelo bacamarte e os punhais. (...)”.
O trabalho dos historiadores locais, como Edízio Mendonça, que já mereceu, na voz do povo, o título de “O historiador do sertão”, é importantíssimo como fonte de informação para tantos quantos queiram entender o “mandonismo local”, em suas formas primitivas mais conhecidas, o “coronelismo” e o “caudilhismo” e suas correspondentes atuais mais sofisticadas, o “bacharelismo” e o “academicismo”.
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