Morre-se em Lisboa
Nada: Zero de aflição. De susto ou sobressalto. Apenas correntes de ar gelado que nos beijam a nuca com arrepios de amor esquecido.
Morre-se em Lisboa e não se enterram os corpos. Passeia-se nas calçadas de olhos fixos no que vem depois, e ninguém se pergunta de quem foram todos os corpos nauseabundos que apodrecem às portas de nossas casas. «Fecha o casaco!», atira a mãe aflita, que as almas penadas gelam o metro húmido pelo Inverno que não acaba. Chove desdém. Troveja indiferença. E este silêncio frio e seco que nos corta os lábios...
.
Quem são estes mortos, ninguém procura;
De quem são estes mortos, ninguém arranha.
Não se velam os de ontem e matam-se os de hoje, relevam-se os de amanhã. Não importa. Lancem-nos no fogo, que a Primavera tarda e o calor é apenas lembrança de uma infância que se guarda, com saudade, atrás das costas.
Morre-se baixinho nesta cidade. Morre-se em bancos de jardim, de jornal debaixo do braço e filtro de cigarro pendurado na boca. Em praças abertas, aos pés de estranhos. Morre-se com calma e de sorriso rasgado:
«Felizes para sempre», pensa o menino de olhos tristes.
Em todo o lado se apagam as luzes e ninguém parece ter medo do escuro, ninguém reclama luzes de presença. Avança-se com passos firmes para o abismo e não se hesita: morre-se no ar, em plena queda, de mãos apertadas sobre o peito e lábios descolados, como quem espera um beijo curto, no canto da boca, oferecido pelo estranho que nos serve o café todas as manhãs. Morre-se sem saber que se sonha quando se está a morrer. Ou que a morte é um sonho, ou que apenas se sonhou estar vivo. Porque as luzes se apagam em toda a parte, e então só fica o sono.
Não quis que fosse verdade, quis morrer pr'a o provar errado.
«Velem o meu corpo», pedi-lhes com doçura, «Envolvam-me nos vossos braços e dêem-me um nome. Façam-me vossa junto dos vossos, tombem flores sobre a minha carne e molhem a terra com que cobrirão a minha boca com as vossas lágrimas.»
Cruzei os tornozelos, amoleci os joelhos e deixei-me cair no chão sem um único som, abandonada no asfalto com um sorriso no rosto. Ao longe apagou-se mais uma luz.
E então veio o Nada: zero de aflição. De susto ou sobressalto. Apenas um mendigo de dedo em riste:
«Eu não sou ninguém e tu não és ninguém.»
Morri em Lisboa e fui de ninguém.
«Feliz para sempre», pensou o menino.
E contornou o meu corpo.
E não olhou para trás.
* * *
Yours truly,
Supertramp.
Submited by
Prosas :
- Inicie sesión para enviar comentarios
- 618 reads
Add comment
other contents of Supertramp
Tema | Título | Respuestas | Lecturas |
Último envío![]() |
Idioma | |
---|---|---|---|---|---|---|
![]() |
Fotos/Perfil | 765 | 0 | 963 | 11/24/2010 - 00:35 | Portuguese |
Prosas/Pensamientos | De olhos bem abertos | 0 | 605 | 11/19/2010 - 00:08 | Portuguese | |
Prosas/Otros | Morre-se em Lisboa | 3 | 618 | 03/25/2010 - 17:25 | Portuguese | |
Prosas/Romance | Estátuas | 2 | 612 | 03/06/2010 - 01:37 | Portuguese | |
Prosas/Tristeza | Tudo isto será, um dia, gasto... | 1 | 624 | 03/01/2010 - 01:32 | Portuguese | |
Poesia/Desilusión | Água salgada por detrás de olhos cansados | 6 | 836 | 02/27/2010 - 22:00 | Portuguese | |
Poesia/Amor | Zero Horas | 3 | 699 | 02/27/2010 - 19:47 | Portuguese | |
Prosas/Romance | Sono Azul | 1 | 676 | 02/25/2010 - 04:39 | Portuguese | |
Prosas/Otros | Nunca precisámos de palavras, tu e eu. | 1 | 535 | 02/25/2010 - 04:32 | Portuguese | |
Prosas/Romance | Sejamos sempre a ausência de dois corpos | 1 | 580 | 02/25/2010 - 04:24 | Portuguese | |
Prosas/Romance | O que será, será... E o que não é, nunca foi. | 3 | 636 | 02/25/2010 - 04:11 | Portuguese | |
Prosas/Romance | De olhos fechados | 2 | 607 | 02/25/2010 - 03:58 | Portuguese | |
Prosas/Otros | O nada que sou | 3 | 556 | 02/25/2010 - 03:56 | Portuguese | |
Prosas/Otros | Sem título | 2 | 609 | 02/25/2010 - 03:51 | Portuguese | |
Prosas/Otros | Mil anos de nada | 1 | 599 | 02/24/2010 - 15:34 | Portuguese | |
Prosas/Saudade | Carta queimada | 1 | 722 | 04/29/2009 - 19:53 | Portuguese | |
Prosas/Romance | Deixa morrer | 0 | 605 | 12/08/2008 - 14:35 | Portuguese | |
Prosas/Romance | A procura | 0 | 627 | 11/12/2008 - 14:47 | Portuguese | |
Prosas/Romance | Entre nós, os anos | 1 | 530 | 08/24/2008 - 20:36 | Portuguese |
Comentarios
Re: Morre-se em Lisboa
Sublime...
Felizmente temos o enorme prazer de te voltar a ler...afinal Eugénio de Andrade poderia estar ligeiramente enganado.
bjos
Re: Morre-se em Lisboa
Oh... muito obrigado. Mesmo. A escrita é uma inconstante na minha vida... passo meses sem pegar numa caneta... e de repente sinto necessidade imensa de escrever qualquer coisa. Estados de espirito... acho que são fases. Obrigado por teres passado no blog... ;)
Re: Morre-se em Lisboa
Morre-se lentamente em todos lugares do mundo, onde impera a indiferença num silêncio cortante
Gostei de ler.
Convido-a avisitar o forum "Histórias Contadas" e a participar com um conto.
Abraço
Matilde D'Ônix