Ensinando o ABC

Paulo Monteiro

Álvaro Soares da Silva, mais conhecido como Alvinho Duro, era homem de poucas letras. Carreteiro, na adolescência, já adulto empunhou armas em 1923 e, pouco tempo depois, acompanhou a Coluna Prestes, quando participou do Combate da Ramada e outros entreveros menores. Testemunhou a morte do tenente Portela. Possuía uma memória prodigiosa que lhe permitia repetir um sem número de versos aprendidos nas pousadas de carreteiros e nos acampamentos de combatente.
Recordo-me costumava repetir um poema intitulado Ensinando o ABC. O eco daqueles versos, esquecidos com o tempo, como pedaços de uma vidraça quebrada continuaram, ao longo dos anos, em minha memória.
Há algumas semanas Hilton Araldi, incansável descobridor de coisas crioulas, enviou-me uma relação dos fundadores da Estância da Poesia Crioula e a informação de que faziam parte dos ANAIS DO 1.º CONGRESSO DE POETAS CRIOULOS DO R.G.S., editados em 1958, nas Oficinas Gráficas da Imprensa Oficial (Hoje CORAG), em Porto Alegre. Só descansei quanto encontrei a obra num sebo porto-alegrense. E lá, deixei os livreiros em polvorosa, enquanto não encontramos aquele raro volume no meio de algumas dezenas de milharas de outras tantas obras.
Uma leitura dinâmica, ainda em Porto Alegre, reencontrou-me com os velhos versos recitados por meu avô. Preservou-os o polígrafo Walter Spalding (1901-1976). Não resisto e transcrevo o trabalho do historiador que consta entre as páginas 85 e 89, daqueles Anais, sob o título de ENSINANDO O ABC:
“Com contribuição ao Congresso organizado pela ‘Estância da Poesia Crioula’ que se está fundando, com sede em Porto Alegre, envio este ‘ABC’ quase que desconhecido, pois correu o Rio Grande do Sul oralmente. Há muitos anos, no interior do Estado, deram-me uma cópia das vinte sextilhas que compõe o poemeto intitulado ‘Ensinando o ABC’, com a declaração de que era de autoria do Dr. Joaquim Francisco de Assis Brasil. Entretanto, ficamos na dúvida, pois, logo de início, encontramos três estrofes do poemeto de Amaro Juvenal.
Isso fez com que julgasse todo o conjunto do ABC como de autoria de Ramiro Barcelos. Acontece, porém, que não existiam provas, nem para um, nem para outro, apesar da afirmativa de quem deu a cópia e que, pessoa bastante idosa, poderia estar enganada. Tudo, entretanto, fazia crer fosse do Autor de Antônio Chimango. Mas ficamos esperando que algo de mais concreto elucidasse a questão. E a poesia ficou dormindo largos anos em meus arquivos. Um dia, porém, exibem-nos outra cópia, mal feita, com erros e falhas, assinada com o nome de Assis Brasil, e com falta das três estrofes iniciais, de Amaro Juvenal. E quem me exibiu essa cópia disse-me que Assis Brasil a escrevera em 1922, na presença de muita gente, quando, pelo interior do Rio Grande, estava fazendo a campanha eleitoral, como candidato que fora à presidência do Estado.
Diante disso, não havia mais dúvidas, pelo menos para mim. E agora, passados mais alguns anos, entrego-a à Estância da Poesia crioula, como homenagem ao grande poeta, justamente na data de seu centenário que está sendo comemorado.
Eis, pois,

ENSINANDO O ABC

de J. F. de ASSIS BRASIL

‘Este é o A, primeira letra,
que conhecer muito importa;
veja bem que não é torta:
é a primeira que se ataca,
tem um feitio de barraca
e um pau cruzado na porta.

‘Essa é B, tem dois mamulos,
e, para nunca esquecê-lo,
lembre-se de um pessuelo
na garupa atravessado,
um bolso pra cada lado
e um travessão pra sustê-lo.

‘Menino, preste atenção;
não se ponha a olhar pra rua
que meto já na cafua!
Entende vossa mercê?...
Estoutra letra é o C; a
forma é de meia lua.’ (*)

Cada nome tem sua letra:
esta é o D de Deodoro;
quem a inventou eu ignoro,
mas parece ter pensado
num velho estribo, deitado,
sem a alça para o loro.

Este grampo, é um biquinho
na barriga e posto em pé,
é a quinta letra – é o E.
Tirando o assento que tem,
vira em F e, veja bem,
que F e É fazem FÉ!

Quem não sabe o que é um S
nas marcas dos animais?
Pois cruze um S no mais
na guampa inferior do C
e terá riscado o G,
letra das mais principais.

H é tal qual um freio
só com as cambas e o bocal.
A cedeira do bucal
sem as argolas – é o I.
Torcendo-lhe a cola aqui,
é o J. Entende, animal?

K é capenga; uma perna
tem direita, a outra aleijada;
parece que foi boleada
por maturrango fedelho,
ou que afundou um joelho
nalguma bruta rodada…

L é um esquadro. Tirando
os dois paus atravessados
de dois AA acolherados
pelos pés, com certo jeito,
fica um M tão bem feito
como os mais aperfeiçoados.

N, essa letra atrevida
do nome de Napoleão,
que diz ao tempo que ‘não’
na sua viajada eterna,
é um M sem uma perna,
a que vai reta no chão!

O, é a argola da cincha ou,
se quiser, a do laço.
Tire ao B um bom pedaço,
todo o mamulo inferior,
e fica um P a primor,
supimpa e macanudaço!

Quem sabe o C sabe o Q;
e somente, em vez de meia,
riscar uma lua cheia
e embaixo o C lhe cravar
num mesmíssimo lugar,
para que o Q já se leia.

Pendure um S às avessas
no bolso do pessuelo
que obra ao P, e há de vê-lo
mudar-se no mesmo instante
num R fresco e flamante
sem lhe faltar um só pêlo.

Cobra de duas cabeças
é o bem conhecido S.
Ele um minhocão parece
pras duas bandas virado,
dormindo bem sossegado
à luz do sol que o aquece…

T representa o boneco
dum homem bem teso
e moço que sofreu grande destroço;
pés e pernas bem unidos,
os dois braços estendidos,
sem cabeça e sem pescoço.

Retire o assento do estribo
que é o D, para o U formar,
virando-o de patas pro ar.
O mesmo fazendo ao A
num V o transformará
se o travessão lhe tirar.

É o X dois traços em cruz
sobre duas pontas assentes.
A forquilha aqui presente
com pé cravado no chão,
é o tal de ipisilão,
I grego pra muita gente…

Por fim, este zigue-zague
sem direito nem avesso,
nas nuvens negras traçado,
como um corisco travesso
é o Z: – a um N deitado
também nele reconheço.

Existe ainda a cedilha
que se parece c’um rabo
que ao C, se aplica, e, por cabo,
o til que é tal qual minhoca
que ao A e ao O valor troca,
fazendo um diabão do diabo…

E se prestou atenção
ao que disse a vosmecê,
saberá que o ABC
encerra toda a ciência.
Todo o mundo da querência,
e o que se ouve e se vê.
(*) – Estas três primeiras estrofes pertencem ao poemeto campestre ‘Antônio Chimango’, de Amaro Juvenal (Ramiro Barcelos). São as estrofes LIX, LX e LXI da segunda ronda.”
Como observa Walter Spalding, na nota aposta ao poema, as três primeiras estrofes são de Antônio Chimango, publicado por Ramiro Fortes de Barcelos (1851-1916), publicado em 1915, sob o pseudônimo de Amaro Juvenal. Reproduzem as primeiras lições que um mestre-escola, “velho borracho” ministrara a Antônio Augusto Borges de Medeiros. Proibido pelo governo, espancados a espada aqueles que o possuíssem ou divulgassem, o “poemeto campestre” tornou-se muito popular durante a campanha eleitoral de 1922 e a revolução do ano seguinte.
Antonio Chimango termina com a seguinte estrofe:
E aqui lê ponho o arremate
Na presilha desta história.
Que um outro tenha a vitória
De cantar nalgum fandango
O mais que fez o Chimango
Pra levar S. Pedro à Gloria.
Outros poetas, como Waldemar Corrêa (1897-1956), empregando o pseudônimo Dino Desidério, deram continuidade ao poema. Entretanto, a primazia coube ao “poeta, teatrólogo, advogado, político, criador e diplomata” Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938), como vemos nos versos divulgados por Walter Spalding, um dos mais laboriosos historiadores sul-rio-grandenses. Ao contrário, porém, de Amaro Juvenal e seus continuadores, que preferiram a sátira política, o poema de Assis Brasil é humorismo.

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Miércoles, Mayo 5, 2010 - 11:46

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