Traição e massacre em Porongos

Em O MASSACRE DE PORONGOS & OUTRAS HISTÓRIAS GAÚCHAS o historiador Paulo Monteiro, ex-presidente da Academia Passo-Fundense de Letras, recupera com fatos e documentos um dos mais controversos episódios da história rio-grandense, ao lado de outros 17 artigos sobre história gaúcha e regional

Fábio Rockenbach
blitz@diariodamanha.net

“A história é escrita por aqueles que pagam os historiadores.”
Com esta frase, direta e esclarecedora, Paulo Monteiro, historiador e ex-presidente da Academia Passo-Fundense de Letras responde a uma pergunta também direta: por que, até hoje, não se chegou a um consenso quando ao episódio do Massacre de Porongos, no fim da Guerra dos Farrapos, em que David Canabarro teria traído Teixeira Nunes e seus lanceiros negros, mandando que eles entregassem suas armas horas antes de serem surpreendidos, atacados e massacrados pelas tropas imperiais comandadas por Chico Pedro, o Moringue, em 14 de novembro de 1844?
O polêmico episódio é o carro-chefe do novo livro de Paulo Monteiro, “O Massacre de Porongos & Outras Histórias Gaúchas”, que o autor lança na próxima quarta-feira no auditório da Academia, em Passo Fundo. Além do resultado de suas pesquisas sobre o episódio – que incluem consultas a milhares de documentos do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, a livros de historiadores do Passado e ao Diário de Antônio Vicente da Fontoura – Monteiro também apresenta ensaios sobre outros episódios da história gaúcha e local (com diversos textos sobre a Batalha do Pulador, sobre a Revolução Federalista e sobre hábitos e costumes do passado no Estão e na região de Passo Fundo). São 18 artigos, dos quais o primeiro, sobre Porongos, é o que mais chama a atenção. Para Monteiro, a traição de David Canabarro é fato. Se tornou oficialmente aceita quanto a famosa carta escrita por Duque de Caxias a Morigue, pouco antes do ataque e massacre em Porongos, foi publicada oficialmente pelo Exército na metade do século passado.
“Os lanceiros eram uma bomba em potencial. Imagine cerca de 800 homens com experiência de guerra, espalhados nos quilombos da Serra. Para efeito de comparação, pegue o que aconteceu no Araguaia, durante a ditadura, quando o governo demorou 4 anos para sufocar uma guerrilha de apenas 60 pessoas”, explica Monteiro, acerca das razões que levaram Canabarro a pactuar com as forças do Império. A questão dos escravos era o único ponto que ainda barrava a assinatura da paz entre os grandes donos de terras que articularam a Revolução Farroupilha e as forças do governo. Caxias chegou ao Estado comandando uma força de 12 mil homens. Os farrapos eram cerca de três mil, espalhados. Já há algum tempo, homens importantes do exército farrapo queriam acabar com o conflito. O problema era que o Império não concordava em libertas os escravos que lutaram na revolução, ponto defendido pelos farroupilhas desde que iniciou a guerra. O medo de uma posterior insurreição dos lanceiros negros, regimento formado no exército farrapo que ficou famoso pela sua bravura, teria levado ao massacre. Na noite de 14 de novembro, cerca de 100 soldados do acampamento de Canabarro morreram, 80% deles eram lanceiros negros. “Durante a tarde, Canabarro desarmou os lanceiros, deixou-os apenas com lanças e espadas. Mais tarde, à noite, as tropas de Morigue atacaram exatamente no lugar onde eles estavam acampados, em Porongos”, explica Monteiro. “A história fala da libertação dos soldados negros, mas as famílias desses soldados continuaram escravas. Essa situação gerava homens extremamente ressentidos e perigosos naquela situação”, completa.
Estudioso da revolução, Monteiro amplia a discussão sobre Porongos aos demais personagens da história. Enaltece o General Netto, que não o fim da guerra e exilou-se no Uruguai, levando consigo 400 negros. Lembrou de Bento Gonçalves, que apesar de defender a liberdade dos escravos morreu mantendo em sua fazenda mais de 40 escravos. E lembrou que, ao final do conflito, depois de 10 anos de desavenças, muitos oficiais farroupilhas estavam mais preocupados em obter retorno financeiro do governo. “O governo brasileiro abriu os cofres. No fim da guerra, a maior preocupação de muitos estancieiros e simpatizantes da causa farroupilha já não era com a guerra em si, mas em obter o maior número de recibos e notas promissórias de serviços para receber indenização do governo.”
Nada disso, Monteiro explica, retira do movimento o caráter também abolicionista com o qual nasceu. “Quando o governo ordenou que os negros aprisionados fossem fuzilados quando capturados, os farroupilhas emitiram nota alertando que, para cada escravo fuzilado, o exército farroupilha iria lançar sorte sobre um oficial imperial aprisionado, que seria fuzilado”.
Sobre Porongos, que pese a polêmica, não pode ser retira a importância: foi um episódio que decidiu os rumos da guerra que já definhava. Sem o contratempo da questão dos escravos, era questão de tempo para que a paz fosse assinada, ainda que algumas das grandes autoridades farroupilhas sequer se fizessem presentes no ato de assinatura do acordo de paz. Enquanto isso, próximo à fronteira, Canabarro colhia frutos com a ampliação de propriedades da família – e as suas próprias ´em Santana do Livramento e junto à fronteira com o Uruguai, justamente após a guerra. Algo que, tudo indica, não teve a ver com a sorte e cobrou o preço de centenas de homens.
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O DOCUMENTO DA DISCÓRDIA

Contestado por muitos defensores de Canabarro, o documento escrito por Duque de Caxias para Moringue em 9 de novembro de 1844 foi publicado em 1950 pela editora oficial do Exército, sob ordens do então Ministro da Guerra, General Canrobert Pereira da Costa, junto com outros documentos do Duque de Caxias. No documento, Caxias dá instruções a Moringue, pede a ele que poupe “sangue brasileiro”, que dê fuga a Canabarro e avisa que as tropas estarão desarmadas, configurando prova da traição de Porongos.
<…> Regule V. S. suas marchas de maneira que no dia 14, às duas horas da madrugada possa atacar as forças a mando de Canabarro, que estará nesse dia no Serro dos Porongos. <…> No conflito poupe o sangue brasileiro o quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro. <…> Não receia a infantaria inimiga, pois ela há de receber ordem de um ministro de seu general-em-chefe para entregar o cartuchame sob o pretexto de desconfiarem dela. Se Canabarro ou Lucas forem prisioneiros deve dar-lhes escápula de maneira que ninguém possa nem levemente desconfiar <…>
(Transcrito de BLITZ, p. 6, caderno cultura do DIÁRIO DA MANHÃ, Passo Fundo, 11 de junho de 2010)

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Sábado, Junio 12, 2010 - 22:48

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