LAURO RODRIGUES
Paulo Monteiro
Quando nos dedicamos a estudar a poesia gauchesca de língua portuguesa uma das primeiras constatações é que a maioria dos poetas não tem uma biografia. Apesar da popularidade que gozam, a vida e a obra dos poetas desse gênero ou subgênero são praticamente desconhecidas. É o caso de Lauro Pereira Rodrigues, nascido em Santo Amaro no dia 7 de janeiro de 1918.
Lauro Rodrigues foi um dos pioneiros do Movimento Tradicionalista Gaúcho contemporâneo. Apresentou o primeiro programa gauchesco da história, intitulado “Campereadas”, a partir de 1935, na Rádio Gaúcha, onde lançou Pedro Raymundo, conforme se conta o historiador Luiz Artur Ferronatto no artigo “O centenário de Pedro Raymundo”, publicado em 29 de maio de 2006, no sítio do Instituto Caros Ouvintes de Estudos de Mídia. Onze anos depois, um grupo de jovens estudantes do Colégio Julio de Castilhos, de Porto Alegre, assentariam as bases do atual Movimento Tradicionalista Gaúcho. Quase todos eles, também dedicar-se-iam ao regionalismo radiofônico, seguindo a linha lançada por Lauro Rodrigues. Em 1958 voltaria ao rádio, na Farroupilha, comandando o programa “Roda de Chimarrão”, onde além do tradicionalismo tratava de assuntos urbanos e rurais de Porto Alegre.
Pedro Villas-Bôas, autor de “Notas de Bibliografia Sul-Rio-Grandense” (A NAÇÃO-SEC, Porto Alegre, 1974), informa-nos que era “Radialista, poeta, jornalista e político”. E que pertencia à Estância da Poesia Crioula. Em 1944 publicou, pela Livraria Globo, “Minuano”, livro de poemas gauchescos, do qual saíram mais duas tiragens naquele ano.
Bibliógrafo atento, Pedro Villas-Bôas certa feita me revelou que apenas listou livros que realmente conferiu pessoalmente. Quando escreve “tiragens” diz reimpressões. Tanto isso é verdade que tenho às minhas mãos a “3ª EDIÇÃO”, que responde às características anotadas por Villas-Bôas em seu livro. Dois anos depois, em 1946, pela mesma Livraria Globo, fez imprimir “A Ronda dos Sentimentos”, um volume de 70 páginas, com sonetos e poemas, do qual saiu uma única edição.
“Invernada Vazia”, o terceiro livro, com o subtítulo de “versos regionais”, é lançado, em primeira edição, no ano de 1951, pela Editora Coruja, de Porto Alegre. Segundo o bibliógrafo, no mesmo ano, pela mesma editora, sai “uma 2ª tiragem”. Tenho as mãos a “2ª EDIÇÃO”, dentro das características expostas por Pedro Villas-Bôas, inclusive “Impresso no sistema multilite”, onde não consta o ano da impressão.
As orelhas de “Invernada Vazia” trazem algumas referências interessantes a “Minuano”. A primeira delas, de Antonio Barata, da Editora Globo, diz o seguinte: “Nenhum romance, biografia, livro de contos ou reportagem, encontrou entre nós, nestes últimos tempos, o recorde de vendas de Minuano. Nunca na história dos livros riograndenses, uma obra vendeu tanto em tão pouco tempo. A razão do êxito, reside, indiscutivelmente, no próprio valor da obra. É um livro para o povo, feito com o sentimento do povo. Lendo-o, sente-se a nostalgia da campestre, do rodeio, da roda de mate nos galpões, dos lábios polpudos da chinoca, do amor sem convenções…”
A afirmação de Antonio Barata é interessantíssima. Um dos autores gaúchos editados pela Globo era nada mais nada menos do que Erico Veríssimo. Três edições num único ano, e, ainda, o livro mais vendido nos últimos anos prova a popularidade do poeta.
A segunda nota é de Catulo da Paixão Cearense. Ei-la: “Nesta época de guerra e de ódios a sua poesia é uma bandeira de paz e de civismo alçada no topo. Deixo a você o meu cajado de glórias…” Ora, nada mais nada menos do que o mais popular dos poetas populares brasileiros, na primeira metade do século XX, que faleceria pouco tempo depois, legando o seu “cajado de glorias” ao poeta de Santo Amaro.
Em 1951 é publicado “Senzala Branca”, um livro de “poemas revolucionários”, pela Editora Coruja. No ano seguinte sai a “2ª Edição”, pela Editora La Salle, de Canoas, com uma tiragem de 5.000 exemplares. A política acabou absorvendo o tempo do poeta. Somente em 1978 editou seu último livro de poemas, “A Canção das Águas Prisioneiras” (Martins Livreiro-Editor, Porto Alegre). Pedro Villas-Bôas deixou registrado que o poeta possuía, inéditos, os livros “Vozes do Parque”, “Bilhetes”, “Versos Íntimos” e “Coletânea de Sonetos” e, em preparo, “Alçados e Araganos”.
Militante do PTB – Partido Trabalhista Brasileiro –, Lauro Rodrigues assumiu várias vezes como deputado estadual por aquele partido. Depois de 1967, com o bipartidarismo imposto pelo regime de exceção, filiou-se ao MDB – Movimento Democrático Brasileiro – pelo qual exerceu dois mandatos de deputado federal. Pescador e caçador apaixonado faleceu afogado em sua terra natal, no dia 17 de dezembro de 1978, quando afundou o pequeno barco tripulado por ele, enquanto remava contra uma tempestade de verão.
Um dos poemas mais conhecidos de Lauro Rodrigues, que está às páginas 21 e 22 do seu primeiro livro, é ”Meu baio ruano”, declamadíssimo em rodeios e concursos de declamação.
Meu baio ruano
Eu tenho um baio ruano
flete bueno
anca de vaca;
cosquilhudo
de virilha e de paleta
puerva ligeiro de pelear de faca.
Nesse baio
eu já fiz tanta proeza
qu’ele carrega a minh’alma presa
na barbela trançada de seu freio.
Muita carreira
esparramei de-hupa!
alegrei muito fandango feio
e muita china sentou na sua garupa.
Esse baio
tem na concha de suas patas
a história
da mais linda das mulatas
por quem um dia, afinal, me abichornei!
É bueno
esse pingo anca de vaca,
flete ligeiro
de pelar de faca,
esse baio
ruano que eu domei!
Interessante é que o grande amor do poeta acaba sendo uma mulata, tipo racial não muito comum como musa dos gauchescos. E olha que a presença do negro e do mulato na maioria das cidades do Rio Grande imperial representavam cerca de 25% da população. O intercurso sexual entre o homem branco, mais abastado, e a mulher de cor, das camadas proletárias, foi muito maior do que se imagina. É o que vemos retratado em “MULATA”, às páginas 57 a 66 de “Invernada Vazia”.
Interessante é o esquema rimático do poema: a redondilha maior, muito praticado por um “romântico arcaizante” como Gonçalves Dias. Muito comum na poesia popular e bastante encontrado no romanceiro medieval. Alguns versos mais longos que aparecem não passam de dois pentanssílabos formando um único verso.
Mulata
Eu gosto, mulata,
de ver o teu vulto,
dengoso, jeitoso,
riscando o terreiro,
de trouxa no braço,
batido ao mormaço
do sol da manhã.
Teu passo é miúdo!...
Teu corpo, polpudo
da cor do avelã,
tremendo, tremendo
de baixo da saia,
riscada, pesada,
que esconde teus seios,
convida viver…
Teus seios! – meu Deus!! –
Teus seios pequenos,
lavrados, torneados,
imploram pecados
nos próprios coleios
dos membros morenos…
Depois quando chegas à sombra frondosa
da velha figueira, vetusta, alteirosa,
que ensombra a restinga
da sanga que canta
por entre as batingas
de fundas barrancas,
teu vulto se espelha,
tão breve se ajoelha,
na água que rola de baixo da tábua
em que bates tua roupa…
Então, os meus olhos,
parados, cravados,
namoram, – coitados! –
a farta paisagem das coxas roliças
que expões às cobiças
assim quando dobras teu busto p’ra frente
e mergulhas o braço
na fria torrente
que tem-te ao regaço!...
E eu fico pensando:
– que coisas bonitas
tuas saias de chitas
me estão a esconder! –
E volto ao galpão, sonhando contigo,
guardando comigo
desejos ardentes…
Bem sei que não devo sonhar mais assim!!!
És linda; viçosa!
O patrão te protege
e seus dedos hereges,
cheirando a dinheiro,
retovam-te o corpo de quentes carícias,
comprando delícias
que um moço tropeiro
não pode comprar…
Quisera o teu corpo, – não nego; não minto! –
mas só para amar.
Ouvir-te, nas noites
caladas do campo,
torcida de gozo,
de amor, de prazer,
dizendo, tremido,
o meu nome ao ouvido,
enquanto o meu peito,
por cima do teu,
batesse, batesse,
arquejando, vencido!...
Mas tudo não passa de um guapo desejo!
Mulata, o teu beijo
não é p’ra minha boca!
Mas quando a velhice chegar de mansinho e
teu corpo bonito, curvar-se, curvar-se,
assim como um galho de moita de espinho
verás que a tua carne
morena, cheirosa,
dengosa, vaidosa,
de nada valeu;
a boca que outra’ora beijou-te,
escarrar,
sorrir do que és
evocando o que foste…
Pois quando curtires
num rancho de chão,
sem pão
nem tarimba
o teu próprio passado,
um velho tropeiro,
que tanto te quis,
dirá na sanfona
p’ra os moços do sítio
a história tristonha da china infeliz!
Não pragejo, mulata!
Te juro! É verdade!!!
É a vida quem diz!...
Lauro Rodrigues confere lirismo a uma realidade que foi muito comum no meio rural sul-rio-grandese. A maioria dos atuais grupamentos humanos denominados “quilombos” – como já escrevi – não são quilombos no sentido real do termo, mas sim “posses de negros”, descendentes de escravas ou libertas e antigos estancieiros.
Enquanto a poesia gauchesca uruguaio-argentina é uma transformação da antiga poesia payadoresca, oral, em obra literária escrita, de conteúdo militar e militante, durante as guerras da independência daqueles países, a gauchesca brasileira, bastante posterior, é uma criação do Romantismo. Daí a marca dos clássicos românticos, que fazem parte do cânone literário “culto” sobre os poetas populares sul-rio-grandenses.
Sobre o produtor e apresentador de “Campereadas” pesa outras duas influências. A primeira delas é dos gauchescos platinos. Não é à toa que ele se refere a El Viejo Pancho, pseudônimo do espanhol José Alonso y Trelles (1857-1924), que residiu muitos anos no Uruguai, tendo escrito um pequeno volume que foi lido avidademente por uruguaios, brasileiros e argentinos; “Paya Brava”. A tapera, o umbu, o quero-quero temas explorados pelo “El Viejo Pancho”, dão título a poemas enfeixados em “Minuano”. A segunda influência é dos poetas populares sertanejos e do Nordeste brasileiro, máxime Catulo da Paixão Cearense.
Não é gratuito que o autor de “O Luar do Sertão” oferece o seu “cajado” ao poeta de Santo Amaro. “Mulata” e “cabocla”, dois termos para definir tipos femininos, produtos da miscigenação com o europeu, não são muito freqüentes entre os gauchescos brasileiros. Para “cabocla” as expressões correspondentes são “china”, “chininha” e “chinoca”, procedentes do português “chim”, mais comum do que o atual “chinês”. Todo aquele indivíduo com olhos amendoados ou meio rasgados era um “chim”. “China”, como hoje chamamos comumente à mulher morena de “negra” e a mulher clara de “gringa” ou “alemoa” era a forma carinhosa com que o gaúcho se referia à sua índia ou cabocla. Cabocla é o correspondente para os poetas de outros estados à china dos gauchescos.
“Filha do pago”, que consta entre as páginas 42 e 46 de “Minuano” transpira a poesia sertaneja de Catulo, sem o peso dos regionalismos nordestinos, que encontra correspondência entre alguns poetas rio-grandenses, lançando toneladas de expressões regionais sobre seus poemas. “Cabocla”, que transcrevo de “Invernada Vazia”, é, também, outro poema com idêntica transpiração.
Filha do pago
De tarde, beirava a noite,
morria o sol num açoite
de luzes pelo capão.
E à sombra da sapupema
gargalhava uma seriema
nas quebradas do rincão.
A estrada se parecia
c’um laço que se torcia,
c’um tento cru de tamueiro,
aonde a luz cor de prata
vinha ouvir a serenata
dos guizos do carreteiro.
Na solidão do caminho
eu repontava sozinho
as mágoas do pensamento
quando vi numa quebrada,
entre as sombras recortada,
a sombra do encantamento.
Ela vinha vagarosa
como a nuvem vaporosa
da cerração dos banhados.
Seu passo tinha meneios
de sabiás em gorjeios
na pitangueira pousados.
Pisava no chão c’um jeito
que as folhas formando leito
amaciavam seu andar.
E as flores já fenecidas
desabrochavam pra vida
quando lhe viam passar.
O seu pé era pequeno
como as gotas do sereno
na flor roxa do bibi,
e a sua boca angelical
tinha o calor tropical
do canto da juriti.
Os seus cabelos em trança
o sopro da brisa mansa
acariciava no ar.
E no colo bem torneado
dois araçás reclinados
queriam desabrochar.
Veio vindo de mansinho
interrompendo o caminho
por onde eu ia passar…
Abri o pingo pra um lado
e como velho namorado
no meu espanto abismado
fiquei a lhe contemplar!
Depois!... – ó quanta alegria!!! –
O rancho donde eu vivia
transformou-se em paraíso!
Todo o dia, o dia inteiro,
no chão duro do terreiro
desabrochavam sorrisos!
Essa morena trigueira,
– a mais linda brasileira,
desde o Oiapoc ao Chuí –
pôs na minha boca de moço
o gosto bom do caroço
da flor do bacupari!
Nosso Senhor, que beleza!
Hoje olho a natureza
quando vai morrer o dia
e fico tão satisfeito
que o coração no meu peito
palpita em doida alegria.
Pois graças a ti, Senhor!
Que quando criaste a flor,
o crepúsculo e o luar,
fizeste a mulher do pago,
um torvelinho de afago,
um rancho pra se morar!!!
Cabocla
Assim, minha cabocla bonitaça!
Fecha os tampos da janela
antes que a noite se esparrame pelo quarto
que o candieiro esborrifa de luz
ao nosso olhar…
Neste rancho fechado e ouvindo, apenas,
o esfregar de tuas vestes – que contraste! –
é que eu me sinto muito mais gaúcho,
é que me acho cada vez mais homem…
Enquanto despes a tua saia preta,
meus olhos são lagoas refletindo
a paisagem crioula de teu corpo!
E teu corpo queimado, cor de terra,
tem as curvas macias dos caminhos
que cortam a amplidão desta campanha…
(Como eu gosto de passear as minhas mãos
pelo calor confortante dessas curvas
que se arrepiam sob o meu afago
que é morno como os ventos de verão
arrepiando o relvado e as águas turvas
das várzeas e represas do meu pago!...)
Teu corpo, cabocla,
é um punhado de nervos
que riem; que choram; que cantam;
que gemem
bem como a sanfona que eu tenho no colo.
Conforme lhe toco, lhe apalpo o teclado,
ela rasga-se toda em queixume, alegria,
que nem esse beijo que canta em tua boca,
que nem esse pranto que chora em teus olhos…
Mas, deixa que a tarde, ao tranquito, no mais,
prossiga, lá fora, ponteando as estrelas
que hão de povoar a invernada do céu…
Meu rancho é quentinho e teu beijo é tão bom
que a noite é pequena,
cabocla morena,
p’ra tropa de gozo que temos no peito…
Teu sangue!... Tua carne!...
Corcovos!... Gemidos!...
Suspiros… Arquejos!...
Rangidos no leito!... Catingas no ar…
E a vida que passa, tropeando os minutos
que a gente, cabocla,
não deve contar!...
O próprio vocabulário de Lauro Rodrigues contribui para que ele seja diferente dos poetas gauchescos posteriores. Não introduz à força os regionalismos. Emprega sanfona e gaita em lugar de cordeona. Essa moderação vocabular também auxiliou na repercussão dos seus poemas. Os gauchismos, nele, são espontâneos, naturais, numa linguagem confessional, como se abrisse sua alma (psique), sua vida aos leitores.
Outro tema presente na poesia popular, além fronteiras do Rio Grande do Sul, é o da tragédia amorosa provocada pela morte precoce da mulher amada, seja esposa, amante ou namorada. Encontramo-lo nos poemas de Lauro Rodrigues. Dois deles ficaram muito conhecidos: “Sinhá Maria”, de “Minuano”, e “HISTORIETA”, de “Invernada Vazia”. No primeiro é a jovem namorada, que falece; no segundo, é a jovem esposa. Transcrevo o mais antigo deles, que cresci ouvindo ser declamado em poemas radiofônicos.
Sinhá Maria
Quando a lua se destapa
no arvoredo do capão,
não sei por que fico triste,
por que chora o coração: –
só sei
que cá no meu peito
cresce uma coisa esquisita
que penso seja a saudade
daquela mulher bonita
qu’eu conheci num fandango
sapateando a chimarrita
na poeira do terreiro
do rancho de Sinhá Rita…
Caramba!
Quanta desgraça
na vida da gente passa
sem que se queira passar!
O destino é um mau tropeiro,
se o seu pialo é certeiro
faz a gente se quebrar.
É dela
quase garanto,
qu’eu carrego essa saudade!
Por ela já sofri tanto
que é puxa-barbaridade!...
Também, lhe digo: morena
como aquela nunca mais
há de pisar nestes pagos.
Sua boca se parecia
c’um ananás que sorria.
E eu tinha,
tinha desejos
de recobri-la de beijos,
de retová-la de afagos.
Tinha um corpo miudinho,
espevitado, fininho
como os juncos do lagoão.
Todo o povo quando a via,
chamava-a Sinhá Maria,
Maria flor do rincão!...
Pra ganhar Sinhá Maria
fiz promessa, simpatia,
fiz tudo, tudo o que “pude”.
Por devoção a “Jesuis”
cheguei a plantar três “cruiz”
nas bordas do meu açude.
E em cada uma escrevi
com letras feitas de flor:
Sinhá Maria – a primeira – !
na segunda escrevi – amor!
Saudade – pus na terceira…
E uma manhã – que tristeza!!! –
Gargalhava a natureza
no bico da passarada.
Meu laranjal, de faceiro,
enchia todo o terreiro
de flores cor-de-geada.
Corri,
então, à janela
para olhara primavera
qu’enfeitava este rincão
e de repente – ó maldade! –
na cruz que eu chamei “saudade”
tinha florido um botão…
Os meus olhos de enuviaram
e uns pingos d’água rolaram
beirando pelo nariz.
Pois Jesus
de distraído
não escutou meu pedido,
não me deixou ser feliz!...
Nunca mais Sinhá Maria
me deu de novo alegria,
me fez de novo contente…
E no rancho de Sinhá Rita
nunca mais a chimarrita
fez feliz aquela gente!
Pois o botão da “Saudade”
eu colhi, é bem verdade,
com mágoas no coração,
pra enfeitar
– que ironia –
a cruz de Sinhá Maria,
Maria a flor do rincão!!!
Falei antes em El Viejo Pancho. Lauro Rodrigues dedica-lhe todo um poema de “Senzala Branca”, onde se refere ao “Martín Fierro”, a grande obra do argentino José Hernández.
Em 1948, passada a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos impunham ao mundo seu dólar e sua cultura. A rebeldia quixotesca dos jovens estudantes do Colégio Júlio de Castilhos, de Porto Alegre, que culminaria no atual Movimento Tradicionalista Gaúcho era uma espécie de contra-cultura. Em 1957, quando do lançamento do quarto livro do poeta de Santo Amaro, as orquestras americanas eram uma moda avassaladora e rock-en-roll começava a aparecer. “Um silêncio domina tudo”, e nesse ambiente, “Viejo Pancho, crioulo de outras plagas”, representa “a voz da acordeona – alma campeira! – em contra-ponto à musica estrangeira”. É um, grito contra a desnacionalização da cultura.
Terra, Alma da Gente
Mês de maio! Geada branquicenta
de renguear cusco e dar golpe aos lerdos…
Martin Fierro y sus últimos recuerdos
anima a estância que o fogão aquenta!
Viejo Pancho, andejo de outras eras
arrinconado à sombra das taperas
que a mocidade construiu p’ra Vida,
bordejando as cordas da viola,
vai declamando no seu tom pachola
o “Hopa-Hopa” da ilusão perdida…
Um silêncio de dor domina tudo!
No ambiente acolhedor e mudo
nem mesmo o fogo crepitar pudera,
quando, de repente, na distância,
sonorizando a placidez da estância,
o som da gaita a solidão altera…
Junto ao fogão, num frenesi estranho,
El Viejo Pancho, o campeador de antanho,
susteve a rima decepando o verso…
Olhou p’ra todos, e no olhar de todos
o telurismo borbulhava a rodos
no som do fole na amplidão disperso…
Curvada a fronte, emudecido o lábio,
o gaudério platino, como um sábio,
recolhera a sentença nativista:
era a voz da acordeona – alma campeira! –
em contra-ponto à música estrangeira
catalizando o coração do artista…
Viejo Pancho, crioulo de outras plagas
que se afeiçoara nas suas horas vagas
ao tradicionalismo dos dois povos,
soube sentir na inteligência astuta
essa mensagem que a cordeona
bruta mandava aos ares nuns gemidos covos…
Nove anos de Movimento Tradicionalista Gaúcho preocupavam o vanguardeiro desse movimento. Os Centros de Tradições Gaúchas espalhavam-se Rio Grande a fora. Invernadas campeiras, conservando as práticas laborais dos homens do campo, e invernadas de danças, difundindo as danças típicas do Estado, faziam sucesso. Costureiras, modistas e alfaiates fabricavam pilchas (roupas típicas) para homens e mulheres, discos, livros e cursos difundiam o tradicionalismo. Cursos de danças eram ministrados a peso de dinheiro, “novas danças” eram incorporadas aos repertórios das “invernadas artísticas” dos CTGs…
Como o velho Karl Marx costumava repetir no século XIX o capitalismo transforma tudo em mercadoria. O gauchismo também virara mercadoria. Contra essa “indústria cultural” levantava-se Lauro Rodrigues, antigo leitor de Manuel Maria Barbosa du Bocage. O trocadilho sobre o incêndio dos “panos de trinta e cinco” tanto pode referir-se à “Revolução de 35” quanto ao “35 CTG”…
Quando verificamos que dois anos antes da primeira edição de “Senzala Branca” Paixão Côrtes e Barbosa Lessa publicaram “Suplemento Musical do Manual de Danças Gaúchas” e um ano antes (1956) davam a lume a primeira edição do próprio “Manual de Danças Gaúchas” entendemos o endereço da sátira de Lauro Rodrigues.
Pelegueando
Bueno amigo, acabou-se
o pampa de antigamente!
E por me achar descontente
com o tranco que a vida leva,
aparto um verso maleva
como piá de bodega
e saio muito xobrega
a provocar arruaça,
em meio dessa chalaça
que chamam de tradição…
Venho do fundo do tempo
das bocas que se arrolharam,
quando, sem mais, incendiaram
os panos de “trinta e cinco”,
por isso acho engraçado
olhar os tauras de agora
vestindo bombacha e espora
como mocinha de brinco…
Mas não lhes tiro a valia
pois sempre tem serventia
o rabo, a guampa e o casco,
com que se atiça o braseiro,
traz água para o saleiro
e se borrifa o churrasco…
Lamento que se embicando
p’ra os rumos da pacholice,
por vaidade ou gabolice,
a tradição degenere,
pois, no fervor da arruaça,
vai o pago de raça
viçando p’ras intempéries…
As cantigas do passado
têm novos donos que eu sei…
E os índios enquadrilhados,
num jeito louvaminheiro,
vão repontando mentiras,
como senhores da grei…
Mascates de antigas glórias,
mercadejando as histórias
que o pampa guardou p’ra si,
vão, na ganância do gesto,
passando cincha e cabresto
na altiva Piratini…
São frades sem catecismo,
profetas de um neologismo
na algaravia do drama;
bastardos de uma epopéia
lembram Simão da Judéia
são divindades de lama…
Franciscanos da cultura
sobem do chão para a altura
como os abutres odientos
que singrando as amplidões
vão digerir podridões
nos torvos papos nojentos…
Velha estirpe legendária
que a negra mão mercenária
fantasiou na ribalta,
no garimpo dos “guichets”
e não entendo os “por quês”
da exaltação dessa malta…
E nessa subservência
vai rastejando a querência
de forma tão deprimente
que obriga o estro do vate
a provocar um combate
de protesto permanente…
Em meio aos dias sombrios,
enxovalhada nos brios,
por bailarinos plagiários,
eu creio que a alma pampeana
há de se erguer soberana
ao som de rubras hosanas
p’ra o teto de um relicário!
Se a história é cousa divina
não pode a mão assassina
lhe mutilar a grandeza,
por isso eu entro na liça
pedindo ao Tempo, justiça;
ao Júri, o dom da franqueza…
Em “Sensala Branca” a influência de Castro Alves é marcante, a começar pelo poema que abre o volume. As referências bíblicas, as apóstrofes, todas as figuras de retórica e linguagem características do grande condoreiro baiano. O próprio título é uma referência ao “Poeta dos Escravos”. Lauro Rodrigues se pretende a si mesmo exorcizar em versos a “senzala branca”, a escravidão capitalista.
ALELUIA
Velho pampa lendário de outras eras,
onde se erguem lúgubres taperas,
tripudiando quais flâmulas de luto:
nessas tardes de junho, ao sol poente,
parece-me que sinto o que tu sentes
quando o silêncio do teu campo escuto...
A brisa nas carquejas do varzedo,
chorando, confessa que tens mêdo
de enfrentar esta miséria atroz...
E na tristeza sem fim dos corredores
vibram hinos de brados e clamores
contra as algemas da canalha algoz...
Mas não percebes, decrépito campeiro,
que as rondas do abutre carniceiro,
grasnam sobre ti funéreo agouro;
que és o braço do ¨Gigante¨ que mendiga
e ¨deitado em berço esplêndido¨ se obriga
a pedir pão sob um dossel de ouro?...
Esquece as condições de teu presente!
Larga o trôpego andar do indigente
e relembra o que fostes em tempos idos...
Deixa a tua lança, adormecida e quieta!
A guerra é de doutrinas... Vem! Desperta
que os dias de porvir serão vividos...
Pois, pressinto na fome de meu filho
que um vulcão de revolta aclara o trilho
por onde segue a procissão dos pais...
Desperta Rio Grande! Chama o Brasil
antes que a voz da boca de um fuzil
não lhe consinta despertar jamais...
Pobre Pátria de vinte e tantas zonas
que tem no seu ventre o Amazonas
e agoniza de fome nas cidades...
Zôo de macacos galhofeiros,
plagiando o viver dos estrangeiros
desde o Batismo à Universidade...
Tenho pena de ti, - senzala branca! -
dessa coletividade honesta e franca
que de tanto esperar já desespera...
Tuas vísceras são campos de imundícies,
onde o vírus malsão das canalhices
se robustece, cresce e prolifera...
Enquanto isso, cérebros raquíticos,
– a sanguessugas de pântanos políticos! –
fomentam leis que não trescalam nada...
Mas não tarda que a aurora do futuro
tinja de escarlate o céu escuro
dos párias desta estância abandonada...
Nesse dia, meu pampa, os teus heróis,
ostentando nas mãos raios de sóis
e cavalgando fagulhas celestiais,
virão beber na fúria dos motins,
o sangue nutrido nos festins
dos que colheram sem semear jamais...
E, então, o marco de uma nova era,
surgirá num ermo de tapera
substituindo o pedestal de imbuia,
para que o povo todo num só grito,
possa bradar da Terra ao Infinito:
ALELUIA!...ALELUIA!...ALELUIA!...
Esse estilo condoreiro continuará em sua última obra editada “A Canção das Águas Prisioneiras”, como no poema “A CANÇÃO DO TEMPO QUE NÃO VIRÁ”.
A CANÇÃO DO TEMPO QUE NÃO VIRÁ
ao amigo J. A. B. Mendes Ribeiro
Todas as bocas só podem versos
como se de versos fosse todo eu feito…
A goteira do rancho; o menino sem livro;
o chão sem semente; a boca sem rido;
a rede sem peixe; o enfermo sem leito;
o rancho com fome; o livro mais caro;
a semente com dono; o riso com wiski;
o peixe com preço; o leito com lã…
E então me perguntam por que faço versos
que gemem de dor; que choram de ódio;
que geram silêncios; que babam consciências;
que abortam questões; que fundem idéias?
E, a todos, eu digo que somos irmãos;
que os versos que faço me vêem de seus olhos;
de mães que amamentam, sem leite nos seios;
de pais que derretem energias na luta;
de meses contados com baixos salários;
do brilho do esmalte de mãos femininas;
da moeda que lembra os burgueses redondos;
de todas as formas que deram ao Cristo…
Os versos que fiz caminham sozinhos
e a mim já voltaram milhares de vezes em forma de voto…
Eu sou a tribuna da voz dos humildes;
sou praga escaldando a grande mentira
de todo o que colhe sem nada plantar…
Eu quero o Direito, a Verdade, o Amor!
Eu quero arrancar do olhar da Justiça
a venda que a impede de ver o que vejo…
Criação artificial, o tradicionalismo gaúcho, pouco a pouco foi sobrepondo o caricatural ao histórico. E as coisas não poderiam transcorrer de maneira diferente. Cada vez mais a população sul-rio-grandense urbanizou-se. As bases rurais do gauchismo foram abandonadas. O romantismo de gauchescos como Lauro Rodrigues perdeu lugar para a pantomima a que se prestam poemas que falam de tiros, facadas e mulheres raptadas. Temas estes que se prestam melhor às apresentações circenses nos concursos de declamação.
Os declamadores mambembes, crescidos longe da realidade rural, não encontram dramaticidade num poema em que é cantado o amor de um homem por seu cachorro perdigueiro, como vemos e sentimos no poema que transcrevo a seguir.
TUPAN
Fidalga estirpe de nobre,
meu velho cão perdigueiro,
chegaste ao chão brasileiro
no sangue de teus avós,
ancestrais vindos da França
te resguardaram na herança
que derramou-se entre nós…
Quanta volta deu teu sangue
até chegar à querência…
O imenso rio da existência
tem “miles” de tributários…
Mestiço de boa cepa;
por baixo branco de pombo;
pintas negras, sobre o lombo;
focinho e cauda ordinários.
Pouca estampa e muito faro
te distinguiam dos outros;
te assemelhavas aos potros,
na destreza e na coragem…
Em meio dos capinzais,
cheirando o vento que zonze,
eras estátua de bronze
sobre o verde da paisagem…
Tirei-te as baldas da infância
sem nunca te repreender;
aprendeste a obedecer
ao silvo de um assovio.
Meu bom irmão dos instintos,
como nós nos completamos
ao longo de tantos anos
que a mocidade engoliu…
A vida é campo dobrado
em que a roseta domina!
Por ele a Morte assassina
sempre caça de tocaia…
Não retornou ao Rio Grande
o velho amigo fiel
que o dente da cascavel
aniquilou no Araguaia…
Seus restos jazem na terra
da aridez do planalto,
junto a um piquí, muito alto,
em meio do cerradão.
Ao lhes dar a sepultura
jurei, no último afago,
que voltariam ao pago,
comigo, no próprio chão.
Percebo um cheiro de morte
nos meus cabelos tordilhos.
Vão os dias andarilhos
cumprindo o penoso afã,
por isso, filhos, agora,
eu vos suplico um aval:
se o meu instante fatal
me surpreender amanhã,
cumpram, por mim, a promessa
de arrancar do carrascal
do rude Brasil Central
os ossos do meu Tupan.
Façam único sepulcro
para nós, – a dois animais! –
que nos campos sepulcrais
das grotas do esquecimento,
possamos junto, confiantes,
como em pousos do passado,
nos decompor, lado a lado,
nesse eterno acampamento…
Lauro Pereira Rodrigues, como vimos, deixou um livro que foge à gauchesca, intitulado “A Ronda dos Sentimentos”. Transcrevo um dos sonetos, como prova do lirismo transbordante do poeta, que vai sendo injustamente esquecido.
PRENDA QUE SE DISSOLVE
Devolvo-te, querida, a tua imagem,
– última sombra de meus ideais! –
e embora o faça, inda ela é meu pajem,
não é preciso contemplá-la mais.
Guardo-a comigo na interior paisagem
qual sol de outono em horas vesperais.
E a nossa história – que feliz miragem! –
conclui-se, agora, debulhada em ais!
E quem diria que esse amor que tanto
nos fez sorrir, como sorriu-me outrora,
agonizasse sufocado em pranto!
Termina a história, mas o amor não finda!
Desta saudade que desponta agora
novos romances nascerão ainda…
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