De olhos bem abertos
São 4h 11 da manhã. Sentada sobre a cama, de pernas cruzadas e encostada na parede fria; rabiscos numa agenda de 92: eis a estupidez que madruga.
Tenho comichões nos dedos, nunca mais escrevi nada além de frases soltas em publicidade que me passam na rua. Não sei porquê, mas é assim que funciono sempre: formigueiro, indecisão, papel, caneta, amor, texto.
Depois vem o nada. Meses e meses de absolutamente nada. Zero para dizer até à paixão por alguma ideia, expressão ou rosto nos transportes públicos, e de repente tenho toda esta bagagem que não é minha, sofro as consequências que são de outra pessoa que não existe, porque eu vivo sem apostas e não sofro riscos. Então volta a dormência na palma da mão, uma descoberta.
Levanto-me a meio da noite por papel e caneta; retornam as plumas e os beijos nos olhos e as feridas que ardem nas palavras que com frequência só escrevo porque são bonitas, porque ficam bem ou porque não me ocorre mais nada e só quero é chegar ao fim disto tudo porque anseio desperdiçar vida em algo sem importância na TV e esta urticária torna-se limitativa.
Mas são 4h26 do dia que só nasce para os que não dormem e quero palavras sem querer. Quero dizer algo que não tenho para dizer porque agora já não tenho amor a nada. Adeus ao aperto que me fazia divagar sobre violências apaixonadas ou vozes quebradas por tragédias com que sonho de olhos entreabertos. Perdido o romance que via nas bermas das estradas, no estranho silêncio do Metro em hora de ponta, no abraçar o espaço vazio de quem parte. Perdido para sempre, o maldito romance:«Bem-vindo cinismo pequenino!, sinta-se em casa. Esses pés na mesa do café!»
São 4h44 e espancaram-me o amor do corpo. Correram-me a poesia a pontapé, esbofetearam-me a prosa dos dedos. Adeus, adeus!, que agora sou só olhos parados sobre as minhas mãos, sem histórias.
Pergunto-me o que será de mim, se hoje acordar e ainda for sozinha... porque até neste último momento sou eu e sou outros. Não sei viver sem palavras e sem pessoas; só sei viver com pessoas a quem dou vida com poemas.
Mas são 5h01 da manhã e ainda é cedo. Não me deito.
Tenho as mãos em chamas e é tarde demais para o sono.
***
Yours truly,
Supertramp.
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