Viagens na Minha Terra - XL

As claras. — Aventura noturna. — Se as freiras metem medo aos liberais? — O salmo. — Três frades. — Prática do franciscano. — O corpo de S. Frei Gil. — Que se há de fazer das freiras? — Mal do governo que deixar comer mais aos barões.

Era de noite, reinava a confusão, a desordem, o susto e a ansiedade nos muros de Santarém; três homens chegavam, por horas mortas, ao antigo mosteiro das claras, davam à portaria um sinal surdo e misterioso; respondiam-lhe de dentro com outro igual; e dai a pouco, sem rumor e com as mais escrupulosas precauções se abria quietamente a porta da clausura.

Os três homens entraram, a porta fechou-se sobre eles do mesmo modo precatado.

Quem será?

Os homens levavam uma espécie de cofre que parecia conter preciosidades de grande valor: tal era o desvelo com que o resguardavam. Há um mistério que se figura criminoso nesta aventura. Mas os tempos são para tudo.

Era no ano de 1834.

Entremos nesse convento das pobres claras, tão aflitas e desconsoladas agora que as ameaçam de dissolução como aos frades.

Ná0 será assim; aquelas instituições não metem medo aos verdadeiros liberais e os outros lá têm o espólio dos frades para devorar; estão entretidos: as freiras salvam-se por ora.

Tais eram as esperanças dos três homens que entravam a estas desoras nos vedados precintos do mosteiro. Sigamo-los, porém. que é tempo.

Chegavam eles a uma pequena capela do claustro das freiras, foram depor sobre o altar o cofre que traziam, e ajoelharam devotamente diante dele. Logo se ouviu ao longe o salmear baixo e sumido de vozes femininas; e dai a pouco, toda a comunidade das claras, de tochas na mão, em duas alas, e a abadessa com o seu báculo atrás, entravam processionalmente no claustro e se dirigiam à mesma capela.

O salmo que cantavam era este:

"Meu Deus, vieram os bárbaros às tuas herdades, poluíram o teu santo templo, puseram Jerusalém como um granel de frutos.

"Puseram os cadáveres de teus filhos de cevo às aves do céu; as carnes dos teus santos às alimárias da terra,

“'O sangue deles derramaram-no como água nos vales de Jerusalém! já não havia quem sepultasse.

"Estamos feitos o opróbrio dos nossos vizinhos; o escárnio e a zombaria dos que vivem por nossos arredores.

"Até aonde, á Senhor, te hás de irar, enfim; e se há de acender o teu zelo com o fogo?

"Verte a tua ira sobre as gentes que te não conheceram, contra os reinos que não invocaram o teu nome:

"Que devoraram a Jacó; e desolaram suas terras.

"Não te lembres de nossas iniqüidades passadas, e depressa nos alcancem as tuas misericórdias; já que tão pobres demais estamos.

"Ajuda-nos Deus, salvador nosso; e pela glória do teu nome livra-nos, Senhor, amerceia-te de nossos pecados por causa do teu nome."

Cantavam assim as pobres das freiras, cantavam em latim que elas mal entendiam; mas dizia-lhes o instinto do coração, dizia-lhes a tão excitável imaginação feminina, que era chegada a hora de se cumprir a seus olhos, e sobre elas mesmas também, a tremenda profecia do salmo que entoavam.

Havia pois lágrimas naquelas vozes que assim cantavam; saiam da alma aqueles sons e na alma vibravam também com profunda e solene melancolia.

Chegadas junto à capela, aonde estava o cofre, as freiras pararam conservando as mesmas duas alas da procissão e continuando no acentuado murmúrio do seu salmo.

Os três vultos de homem permaneceram de joelhos curvados diante do altar.

Findou o salmo e seguiu-se breve intervalo de silêncio. Depois, os três homens levantaram-se,. e caindo-lhes para os lados as longas capas em que vinham envoltos, viu-se que o do meio era um frade velho, magro, curvado e seco, trajando ainda, apesar da lei, o burel preto dos franciscanos e cingido com sua corda. Os outros dous eram dominicos e vestiam de preto e branco segundo as cores de seu também proscrito instituto,

O velho franciscano subiu com passo trêmulo os degraus do altar, beijou o cofre que estava sobre ele, e voltando-se para a comunidade que o contemplava em religioso silêncio, disse com uma voz cava que parecia vir do sepulcro, mas acentuada e forte: - Irmãs, vimos entregar-vos este depósito precioso. Deus não quer que os cadáveres dos seus santos fiquem expostos às aves do céu e às alimárias da terra. Este é o santo como de um dos maiores santos que produziu esta terra de Portugal quando era abençoada. Hoje é maldita e não devia conservar as suas relíquias. Os filhos de S. Domingos foram expulsos de sua casa, assim como nós fomos, nós os filhos de Francisco, encontramo-nos sem teto nem abrigo uns e outros, e juntamos as nossas misérias para as chorarmos como irmãos que somos, como filhos de pais que tanto se amaram e ajudaram. Peregrinaremos juntos por essas solidões da terra, e juntos iremos bater por essas portas que cerrou a impiedade e a indiferença, a pedir o pão de cada dia porque temos fome. Que importa! Não professamos nós, não nos honramos nós de ser mendigos? De que vivemos nós sempre senão de esmola? Não choreis, irmãs, não choreis sobre nós. Deus que o permitiu bem sabe o que fez. Louvado seja ele sempre. Nós tínhamos pecados para mais! Anda foi misericordioso conosco o Senhor da justiça e do castigo. A nós tiram-nos tudo, tudo'. Até estas mortalhas que tínhamos escolhido em vida e que nem a morte ousava roubar-nos. A furto e como quem se esconde para um ato criminoso, nós as vestimos esta noite para cometer o que eles chamarão um furto, e que era uma obrigação sagrada nossa. Fomos à antiga casa de nossos irmãos e roubamos o como do bem-aventurado S. Frei Gil. Aqui vo-lo entregamos; guardai-o. Enquanto estes muros estiverem em pé, que o abriguem dos desacatos dessa gente sem Deus nem lei. A vós não ousarão expulsar-vos daqui: talvez vos matem à fome... Não pode ser: Deus não há de permiti-lo. Mas qualquer que seja a sua vontade, resignai-vos a ela, minhas irmãs. Só ele sabe como nos ama e como nos castiga. Louvemo-lo por tudo.

Aqui foi um chorar e um suplicar fervente como só se ouve na hora de angústia.

As aflitas monjas estavam prostradas nas lajes úmidas do claustro, sobre as sepulturas de suas irmãs, sobre seus próprios jazigos que haviam de ser. O frade com os braços estendidos pronunciou as solenes palavras de bênção, descrevendo com a direita o augusto símbolo da redenção:

— Bendiga-vos, Deus onipotente, Pai Filho e Espírito Santo!
— Amém! — respondeu o coro; e os três proscritos se retiraram, deixando a salvo o seu tesouro.

Assim desapareceu do túmulo o corpo de S. Frei Gil de Santarém. Ninguém sabia dele; soube eu e guardei o segredo religiosamente. Os tempos são outros hoje: os liberais já conhecem que devem ser tolerantes, e que precisam de ser religiosos. Não há perigo em dizer-lhes onde ele está.

Quando houver em Portugal um governo que saiba ser governo, há de regular e consolidar a existência das freiras, há de aproveitá-la para as piedosas instituições do ensino da mocidade, da cura dos enfermos, e do amparo dos inválidos.

Os barões andam-lhe com o cheiro nos poucos bens que lhes restam às pobres freiras. Mal do governo que deixar comer mais aos barões!

Submited by

Sábado, Abril 11, 2009 - 18:31

Poesia Consagrada :

Sin votos aún

AlmeidaGarrett

Imagen de AlmeidaGarrett
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 14 años 2 días
Integró: 04/11/2009
Posts:
Points: 279

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of AlmeidaGarrett

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Fotos/Perfil Almeida Garrett 0 1.648 11/23/2010 - 23:37 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XLVII 0 846 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XLVIII 0 800 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XLIX 0 1.097 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXXV 0 1.023 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXXVI 0 849 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXXVII 0 1.371 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXXIX 0 982 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XL 0 987 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XLI 0 1.020 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XLII 0 939 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XLIII 0 793 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XLIV 0 748 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XLV 0 1.167 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XLVI 0 824 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXV 0 805 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXVI 0 808 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXVII 0 1.179 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXVIII 0 986 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXIX 0 909 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXX 0 1.013 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXXI 0 955 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXXII 0 984 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXXIII 0 880 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Viagens na Minha Terra - XXXIV 0 936 11/19/2010 - 15:52 Portuguese