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Macário - Segundo episódio

Segundo episódio

(Na Itália-Um vale, montanhas à esquerda.-Um rio torrentoso à direita -No caminho uma mulher sentada no chão acalenta um homem com a cabeça deitada no seu regaço.)

Macário( cismando): Morrer! morrer! Quando o vinho do amor embebeda os sentidos, quando corre em todas as veias e agita todos os nervos parece que esgotou-se tudo. Amanhã não pode ser tão belo como hoje. E acordar do sonho, ver desfeita uma ilusão! Nunca!. . Olá, mulher, afasta-te do caminho. Quero passar.

A Mulher: Não o piseis não, ele dorme. Dorme. está cansado Não vedes como está pálido? Coitado!

Macário: Sim: está pálido: não é o luar que o faz lívido. Eu o vejo. É teu amante? A lua que alveja tuas tranças grisalhas ri de teu amor. Messalina de cabelos brancos, quem apertas no seio emurchecido? Tão alta noite, quem é esse mancebo de cabelos negros que adormece no teu colo? . Como está pálido... Que testa fria... Mulher! louca mulher, quem acalentas é um cadáver.

A Mulher: Um defunto?... não. . . ele dorme: não vedes? É meu filho... Apanharam-no bolando nas águas levado pelo rio. . . Coitado! como está frio! . . . é das águas. . . Tem os cabelos ainda gotejantes . . Diziam que ele morreu. . . Morrer! meu filho! é impossível. . . Não sabeis! ele é a minha esperança, meu sangue, minha vida. É meu passado de moça, meus amores de velha. . . Morrer ele? É impossível. Morrer? Como? Se eu ainda sinto esperanças, se ainda sinto o sangue correr-me nas veias, e a vida estremecer meu coração!

Macário: Velha!-estás doida.

A Mulher: Não morreu, não. Ele está dormindo. Amanhã há de acordar. . . Há muito tempo que ele dorme... Que sono profundo! nem um ressonar! Ele foi sempre assim desde criança Quando eu o embalava ao meu seio, ele às vezes empalidecia que parecia um morto, tanto era pálido e frio! Meu filho! Hei-de aquentá-lo com meus beiços, com meu corpo

Macário: Pobre mãe!

A Mulher: Falai mais baixo. Eu pedi ao vento que se calasse, ao rio que emudecesse Não vedes? tudo é silencio. Escuta: sabes tocar? Vai ver tua viola-e canta alguma cantiga da tua terra. Dizem que a música faz ter sonhos sossegados

Macário: Sonhos! que sonhos soerguem teu lençol, ó leito d.. morte? (Passa adiante). Esta mulher está doida. Este moço foi banhar-se na torrente, e afogou-se. Eu vi carregarem seu cadáver úmido e gelado. Pobre Mãe! Embala-o nu e macilento no seu peito, crendo embalar a vida. Lonca! Feliz talvez! Quem sabe se a ventura não é a insânia?

(Mais longe, sentado num rochedo à beira do rio, está Penseroso cismando).

Penseroso: É alta noite. Disseram-me ainda agora que eram duas horas. É doce pensar ao clarão da lua quando todos dormem. A solidão tem segredos amenos para quem sente. O coração do mancebo é como essas flores pálidas que só abrem de noite, e que o sol murcha e fecha. Tudo dorme. A aldeia repousa. Só além, junto das fogueiras os homens da montanha e do vale conversam suas saudades. Mais longe a toada monótona da viola se mistura à cantilena do sertanejo, ou aos improvisos do poeta singelo da floresta, alma ignorante e pura que só sabe das emoções do sentimento, e dos cantos que lhe inspira a natureza virgem de sua terra. O rio corre negro a meus pés, quebrando nas pedras sua escuma prateada pelos raios da lua que parecem gotejar dentre os arvoredos da margem. No silencio sinto minha alma acordar-se embalada nas redes moles do sonho. É tão doce o sonhar para quem ama!

No que estará ela pensando agora? Cisma, e lembra-se de mim? Dorme e sonha comigo? Ou encostada na sua janela ao luar sente uma saudade por mim?

Macário ( passando): Penseroso! Boa noite, Penseroso! Que imaginas tão melancólico?

Penseroso: Boa noite, Macário. Onde vais tão sombrio?

Macário (sombrio): Vou morrer.

Penseroso: Eu sonhava em amor!

Macário: E eu vou morrer!

Penseroso: Tu brincas. Vi um sorriso nos teus lábios.

Macário: É um sorriso triste, não? Eu t'o juro pela alma de minha mãe, vou morrer.

Penseroso: Morrer! tão moço! E não tens pena dos que chorarão por ti? daquelas pobres almas que regarão de lágrimas ardentes teu rosto macilento, teu cadáver insensível ?

Macário: Não; não tenho mãe. Minha mãe não me embalará endoidecida entre seus joelhos, pensando aquentar com sua febre de louca o filho que dorme. Ninguém chorará. Não tenho mãe.

Penseroso: Pobre moço! não amas!

Macário: Amo- amo sim. Passei toda esta noite junto ao seio de uma donzela, pura e virgem como os anjos.

Penseroso: Que tens? Cambaleias. Estás ébrio?

Macário: Ébrio sim-ébrio de amor-de prazer. Aquela criança inocente embebedou-me de gozo. Que noite! Parece que meu corpo desfalece. E minha alma absorta de ternura só tem um pensamento-morrer!

Penseroso: Amar e não querer viver!

Macário: Ela é muito bela. Eu vivi mais nesta noite que no resto de minha vida. Um mundo novo se abriu ante mim. Amei.

Penseroso: Não é verdade que a mulher é um anjo?

Macário: Sim-é um anjo que nos adormece, e nos seus braços nos leva a uma região de sonhos de harmonias desconhecidas. Sua alma se perde conosco num infinito de amor, como essas aves que voam à noite, e se mergulham no seio do mistério.

Penseroso: A mulher! Oh! se todos os homens as entendessem' Essas almas divinas são como as fibras harmoniosas de uma rabeca. O ignorante não arranca dela um som melodioso embalde suas mãos grosseiras revolvem e apertam o arco sobre elas-embalde! somente sons ásperos ressoam. Mas que a mão do artista as vibre, que a alma do músico se derrame nelas, e do instrumento grosseiro do mendigo ignorante, ou do cego vagabundo, como do Stradivarius divino, exalam-se ais, vozes humanas, suspiros e acentos entrecortados de lágrimas.

Macário: Oh! sim! Se na vida há uma coisa real e divina é a arte-e na arte se há um raio do céu é na música. Na música que nos vibra as cordas da alma, que nos acorda da modorra da existência a alma embotada. Oh! é tão doce sentir a voz vaporosa que trina, que nos enleva- c que parece que nos faz desfalecer, amar, e morrer!

Penseroso: E é tão doce amar! Eu amei, eu amo muito. Sabe Deus as noites que me ajoelho pensando nela! A brisa bebe meus suspiros, e minhas lágrimas silenciosas e doces orvalham meu rosto.

Macário: Oh! o amor! e por que não se morre de amor! Como uma estrela que se apaga pouco a pouco entre perfumes e nuvens cor-de-rosa, por que a vida não desmaia e morre num beijo de mulher? Seria tão doce inanir e morrer sobre o seio da amante enlanguescida! No respirar indolente de seu colo confundir um último suspiro!

Penseroso: Amar de joelhos, ousando a medo nos sonhos roçar de leve num beijo os cílios dela, ou suas tranças de veludo! Ousando a medo suspirar seu nome! Esperando a noite muda para contá-lo à lua vagabunda!

Macário: Morrer numa noite de amor! Rafael no seio de sua Fornarina... Nos lábios perfumados da Italiana, adormecer sonolento. . . dormir e não acordar!

Penseroso: Que tens? Estás fraco. Senta-te junto de mim. Repousa tua cabeça no meu ombro. O luar está belo, e passaremos a noite conversando em nossos sonhos e nossos amores . . .

Macário (desfalecendo): Tudo se escurece... Não sentes que tudo anda à roda?... Que vertigem... Dá-me tua mão!... Sim. Enxuga minha fronte. Que suor!

Penseroso: Como estás abatido . . . Como empalideces! Ah! Como resvalas. . . Que tens, meu amigo?

Macário: Se eu pudesse morrer! (Desmaia).

(Satan entra) .

Satan: Que loucura! Esse desmaio veio a tempo: seria capaz de lancar-se à torrente. Porque amou, e uma bela mulher c embriagou no seu seio, querer morrer!

(Carrega-o nos braços).

Vamos. . . E como é belo descorado assim! com seus cabelos castanhos em desordem, seus olhos entreabertos e úmidos, e seus lábios feminis! Se eu não fora Satan, eu te amaria, mancebo. . .

(Vai levá-lo).

Penseroso: Quem és tu? Deixa-o. . eu o levarei.

Satan: Quem eu sou? que te importa? Vou deitá-lo num leito macio. Daqui a pouco seu desmaio passará. É um efeito do ar frio da noite sobre uma cabeça infantil ardente de febre. Adeus, Penseroso.

Penseroso: Quem és tu, desconhecido, que sabes meu nome?

(Macário e Satan)

Macário: Tenho tédio, Satan! Aborreces-me como se aborrecem as amantes esquecidas.

Satan: Tens cartas aí? Joguemos. Que queres? a ronda, a barca, o lasquenet?

Macário: Sou infeliz no jogo. Queimo-me e perco. Quando aposto e perco, tenho desejos de atirar com as cartas i cara do banqueiro.

Satan: Pois eu jogo, perco e gosto de jogar. É que somos como Adão e Eva, os ex ossibus, caro ex carne. A propósito de jogo, queres que te conte uma história?

Macário: Mentirosa ou verdadeira?

Satan: É O que não importa: nem mais nem menos que as Mil e Uma Noites. Um dia deu-me à lua para virar a cabeça de uma moca. Meti-me no paletó de um mancebo; pálido, alumiado de seus sonhos de poeta, transbordando de orgulho-no mais nem feio nem bonito, tinha olhos pardos, o cabelo longo em anéis e a barba luzente como cetim. O moço tinha uma amante. Era uma moca bonita, morena, de olhos muito lânguidos e muito úmidos; o que tinha de mais melindroso era a boquinha de rosa e mãozinhas as mais suaves do mundo.

Macário: Tua história é velha como o dilúvio. É difusa como um folhetim.

Satan: Estás massante como Falstaff bêbedo. não importa Quero alegrar-te um pouco. A história é divertida. Podia-se bem torneá-la num volume em 8° com estampas e retrato do autor, com a competente carta-prólogo de moda.-Mas escuta: sou mais fiel que os Sermonistas, serei breve o mais possível.- Ora, a amante tinha uma irmã. Pálida e suave como a mais bela das amantes de Filipe II-era o retrato vivo da Calderona. Eram aquelas pálpebras rasgadas è espanhola, uns olhos negros cheios de fogo meridional, o seio adormecido. Acrescenta a essa imagem que a moça era virgem como um botão de rosa.. Fazia sonhar a amante do rei quando semi nua, sentada sobre as bordas do leito, repousando a mão sobre a face, sentia as lágrimas do amor e da saudade banharem-lhe os olhos ao luar. Isto que te digo o moço o pensou. Foi um nunca findar de versos, de passeios românticos pelos vales, pelas encostas das montanhas, um inteiro viver e morrer por ela, como ele o dizia nalgum soneto Vês que torno-me poético Quando vi o moço com a cabeça tonta, revolvendo-se pálido nos seus delírios esperançosos à fé de bom Diabo que sou, interessei-me por ele. Demais, pareciam morrer um pelo outro. Os apertos de mãos a furto, os olhares cheios de languidez, tudo isso parece que azoinou a mente virginal da donzela.-Uma noite na sombra, a medo beijaram-se. Aquele beijo tinha amor e loucura nos lábios. O moço perdeu-se de amor. Escreveu-lhe uma carta: transbordou aí todas as suas poesias, toda a febre de seu devaneio. Não te rias, é d'estilo, Macário. O que há de mais sério e risível que o amor? As falas de Romeu ao luar, os suspiros de Armida, os sonetos de Petrarca tomados ao sério dão desejos de gargalhar . . .

A partida estava proposta, as paradas feitas, e eu para assegurar o jogo tinha chumbado os dados. Era de apostar a minha cabeça contra a de um santo, todas as mulheres belas da terra por uma bruxa.

Macário: Adivinho-ganhaste?

Satan: Que sofreguidão! não contava com o anjo da guarda da moça. Fez umas cócegas na criancice da virgem, e lá se vai ela toda chorosa levar a carta à irmã O tal anjo que sabia orelhar a sua sota bifou-me o jogo; velhaqueou com o velhaco, surripiou os dados, e numa risada inocente chuleou-me a parada.

Macário: Pobre moça!

Satan: E o rapaz que perdeu as suas ilusões . Mas quero desforra.

Macário: Desforra? tomas duas vezes.

Satan: É doloroso. Mas o mundo é do diabo, assim como o céu dos tolos. Falam de convento. Querem cortar os cabelos negros da moça e cosê-la na mortalha da freira. Ora pois, se consigo ao mesmo tempo virar a cabeça da moça e da freira, mandar o anjo limpar a mão à parede, as Santas que lhe peguem com um trapo quente. Demais a partida começou.

Macário: E ela quer?

Satan: Isso de mulheres, nem eu, que sou o Diabo, as entendo. Quem entende o vento, as ondas e o murmurar das folhas? A mulher é um elemento. A Santa mais santa, a virgem mais pura, há instantes em que se daria a Quasímodo; e Messalina era capaz de enjeitar Romeu ou Don Juan. Mas enfim Macário?

Macário ( dormindo): Hum!

Satan: Dorme como um cão. Boa noite, minha criança. Vou fazer uma visita a uma bela da vizinhança que anda regateando o que lhe resta de alma para ser moça três dias.-Até lá dará meia-noite.

(Macário, Penseroso.)

Macário: Que idéia rola no teu cérebro inflamado, meu poeta Como um ramo despido de folhas que se dobra ao peso de um bando de aves da noite, por que sua cabeça se inclina ao peso dos pensamentos?

Penseroso: E contudo eu amei-a! eu amei tanto Sagrei-a no fundo de minha alma a rainha das fadas, e ressumbrei nela o anjo misterioso que me havia conduzido adormecido no seu batel mágico a um mundo maravilhoso de amores divinos. Se fui poeta, se pedi a Deus os delírios da inspiração, foi para encantar com seu nome as cordas doiradas do alaúde, para votar nos seus joelhos as páginas de oiro de meus poemas, e semear o seu caminho dos loiros da minha glória!

Macário: Oh! acordar como Julieta com seu Romeu pálido no seio, com a cabeça romântica ainda doirada do último reflexo do crepúsculo da vida, acordar dos sonhos de noiva no sudário da morte, com os goivos murchos dos finados na fronte em vez da coroa nupcial cheirosa da amante de Romeu! Apertá-lo embalde ao seio ardente, banhar-lhe de lágrimas de fogo as faces pálidas, e de beijos os lábios frios, e procurar-lhe insana pelos lábios um derradeiro assomo de vida ou uma gota de veneno para ela. É duro, é triste! é um caso que merece as lágrimas mais doloridas dos olhos.-Mas dói ainda mais fundo acordar dos sonhos esperançosos com o cadáver frio das esperanças sobre o peito! Pobre Penseroso! Amaste um instante que foi tua vida como Julieta e como Romeu e não tiveste a conversa ao luar no jardim de Capuleto, não tremeste nas falas amorosas da primeira noite de amor, e não soubeste que doces que são os beijos da longa despedida, e o pensar que não são as aves da manhã, mas o rouxinol do vale quem gorjeia nas romeiras, que o revérbero de lua branca nas nuvens do Oriente, e o apagar das estrelas não crespusculava o dia, e crer na vida em si e numa mulher com as mãos de uma pálida amante sobre o coração!

Penseroso: Por ela fui pedir à solidão os murmúrios, fui abrir meu coração aos hálitos moribundos do crepúsculo, ajoelhei-me junto das cruzes da montanha, e no sussurro das aves que adormeciam, no cintilar das primeiras estrelas da noite, na gaza transparente e purpurina que desdobrava seu véu luminoso por entre as sombras do vale, em toda essa natureza bela que dormia fui escutar as vozes intimas do amor, e meu vozes intimas do amor, e meu peito acordou-se cantando e sonhando com ela!

Macário: Tenho pena de ti. Mas consola-te. Que valem as lágrimas insensatas? Todas elas são assim. Eu também chorei, mas como as gotas que porejam da abóbada escura das cavernas, essas lágrimas ardentes deixaram uma crosta de pedra no meu coração. não chores. Vem antes comigo. Geórgio dá hoje uma ceia: uma orgia esplêndida como num romance. Teremos os vinhos da Espanha, as pálidas volutuosas da Itália, e as Americanas morenas, cujos beijos têm o perfume vertiginoso das magnólias e o ardor do sangue meridional. não há melhor túmulo para a dor que uma taça cheia de vinho ou uns olhos negros cheios de languidez.

Penseroso: não - vai só. -Se tu soubesses no que eu penso e no que tenho pensado! Enquanto eu falo minha alma desvaria, e a minha febre devaneia. Sonhei sangue no peito dela, sangue nas minhas mãos, sangue nos meus lábios, no céu, na terra . .. em tudo! Pareceu-me que tremia nas escadas bambas do cadafalso... senti a risada amarela do homem da vingança... depois minha cabeça escureceu-se Pensei no suicídio . Macário, Macário, não te rias de mim! como o vagabundo, que se debruça sobre um precipício sem fundo, senti a vertigem regelar meus cabelos hirtos e um suor de medo banhar minha fronte. Tenho medo! Sou um doido, Macário, eu o sei. Que longa vai essa noite! A lua avermelhada não lança luz no céu escuro: nem a brisa no ar: é uma noite de verão, ardente como se a natureza também tivesse a febre que inflama meu cérebro!. .

(Numa sala. Sobre a mesa livros de estado. Penseroso encostado na mesa. Macário fumando.)

Penseroso: Li o livro que me deste, Macário. Li-o avidamente. Parece que no coração humano há um instinto que o leva à dor como o corvo ao cadáver. Aquele poema é frio como um cadáver. É um copo de veneno. Se aquele livro não é um jogo de imaginação, se o ceticismo ali não é máscara de comédia, a alma daquele homem é daquelas mortas em vida, onde a mão do vagabundo podia semear sem susto as flores inodoras da morte.

Macário: E o ceticismo não tem a sua poesia?... O que é a poesia, Penseroso? não é porventura essa comoção íntima de nossa alma com tudo que nos move as fibras mais íntimas, com tudo que é belo e doloroso?... A poesia será só a luz da manhã cintilando na areia, no orvalho, nas águas, nas flores, levantando-se virgem sobre um leito de nuvens de amor, e de esperança? Olha o rosto pálido daquele que viu como a Niobe morrerem uma por uma, feridas pela mão fatal que escreveu a sina do homem, suas esperanças nutridas da alma e do coração-e dize-me se no riso amargo daquele descrido, se na ironia que lhe cresta os beiços não há poesia como na cabeça convulsa do Laocoonte. As dores do espírito confrangem tanto um semblante como aquelas da carne. Assim como se cobre de capelas de flores a cruz de uma cova abandonada, por que não derramar os goivos da morte no cemitério das ilusões da vida? A natureza é um concerto cuja harmonia só Deus entende, porque só ele Ouve a música que todos os peitos exalam. Só ele combina o canto do corvo e o trinar do pintassilgo, as nênias do rouxinol e o uivar da fera noturna, o canto de amor da virgem na noite do noivado, e o canto de morte que na casa junta arqueja na garganta de um moribundo. Não maldigas a voz rouca do corvo-ele canta na impureza um poema desconhecido, poema de sangue e dores peregrinantes como a do bengali é de amor e ventura! Fora loucura pedir vibrações a uma harpa sem cordas, beijos à donzela que morreu-fogo a uma lâmpada que se apaga. Não peças esperanças ao homem que descrê e desespera.

Penseroso: Macário! e ele tão velho, teve tantos cadáveres que apertar nos braços nas horas de despedida, que o seu sangue se gelasse, e seus nervos que não dormem precisassem do ceticismo, como Paganini do ópio para adormecer? Por que foi ele banhar sua fronte juvenil na vertigem dos gotos amaldiçoados? Com as mãos virgens, porque vibrou o alaúde lascivo esquecido num canto do lupanar? É um livro imoral: por que esse lupanar? É um livro imoral: por que esse moço entregou-se delirante a essa obra noturna de envenenamento?

Não te rias, Macário-pobre daquele que não tem esperanças; porém maldito aquele que vai soprar as cinzas de sua esterilidade sobre a cabeça fecunda daquele que ainda era puro! O coração é um Oceano que o bafejar de um louco pode turvar, mas a quem só o hálito de Deus aplaca as tormentas.

Esperanças! e esse descrido não palpita de entusiasmo no rodar do carro do século, nos alaridos do progresso, nos hosanas do industrialismo laurífero? não sente ele que tudo se move-que o século se emancipa- c a cruzada do futuro se recruta? Não sonha ele também com esse Oriente para onde todos se encaminham sedentos de amor e de luz?

Esperanças! e esse Americano não sente que ele é o filho de uma nação nova, não a sente o maldito cheia de sangue, de mocidade e verdor? Não se lembra que seus arvoredos gigantescos, seus oceanos escumosos, os seus rios, suas cataratas, que tudo lá é grande e sublime? Nas ventanias do sertão, nas trovoadas do sul, no sussurro das florestas à noite não escutou nunca os prelúdios daquela música gigante da terra que entoa a manhã a epopéia do homem e de Deus? não sentiu ele àquela sua nação infante que se embala nos hinos da indústria européia como Júpiter nas cavernas do Ida ao alarido do Corihantes-tem futuro imenso?

Esperanças! não tê-las quando todos as têm! quando todos os peitos se expandem como as velas de uma nau, ao vento do futuro! Por que antes não cantou a sua América como Chateaubriand e o poeta de Virgínia,' a Itália como a Mignon de Goethe, o Oriente como Byron, o amor dos como Byron, o amor dos anjos como Thomas Moore, o amor das virgens como Lamartine?

Macário: Muito bem, Penseroso. Agora cala-te: falas como esses Oradores de lugares comuns que não sabem o que dizem. A vida está na garrafa de Conhaque, na fumaça de um charuto de Havana, nos seios volutuosos da morena. Tirai isso da vida-o que resta? Palavra de honra que é deliciosa a água morna de bordo de vossos navios' que tem um aroma saudável as máquinas de vossos engenhos a vapor! que embalam num farniente balsâmico os vossos cálculos de comércio! Não sabeis da vida. Acende esse charuto, Penseroso, fuma e conversemos.

Falas em esperanças. Que eternas esperanças que nada parem! o mundo está de esperanças desde a primeira semana da criação e o que tem havido de novo? Se Deus soubesse do que havia de acontecer, não se cansara em afogar homens na água do dilúvio, nem mandar crucificar, macilenta e ensangüentada, a imagem de seu Cristo divino. O mundo hoje é tão devasso como no tempo da chuva de fogo de Sodoma. Falais na indústria, no progresso? As máquinas são muito úteis, concordo. Fazem-se mais palácios hoje, vendem-se mais pinturas e mármores-mas a arte-degenerou em ofício-e o gênio suicidou-se.

Enquanto não se inventar o meio de ter mocidade eterna, de poder amar cem mulheres numa noite, de viver de música e perfumes, e de saber-se a palavra mágica que fará recuar das salas do banquete universal o espectro da morte-antes disso, pouco tereis adiantado.

Dizes que o mundo caminha para o Oriente. Não serei eu, nem o sonhador daquele livro que ficaremos no caminho. O harém, os cavalos da Arábia, o ópio, o hatchiz, o café de Moka, e o latakiá-são coisas soberbas!

A poesia morre-deixá-la que cante seu adeus de moribunda-Não escutes essa turba embrutecida no plagiar e na cópia. Não sabem o que dizem esses homens que para apaixonar-se pelo canto esperam que o hosana da glória tenha saudado o cantor. São estéreis em si como a parasita. Músicos-nunca serão Beethoven nem Mozart. Escritores-todas as suas garatujas não valerão um terceto do Dante. Pintores-nunca farão viver na tela uma carnação de Rubens ou erguer-se no fresco um fantasma de Miguel Angelo. É a miséria das misérias. Como uma esposa árida, tressuam e esforçam-se debalde para conceber. Todos os dias acordam de um sonho mentiroso em que creram sentir o estremecer do feto nas entranhas reanimadas.

Falam nos gemidos da noite no sertão, nas tradições das raças perdidas da floresta, nas torrentes das serranias, como se lá tivessem dormido ao menos uma noite, como se acordassem procurando túmulos, e perguntando como Hamlet no cemitério a cada caveira do deserto o seu passado.

Mentidos! Tudo isso lhes veio à mente lendo as páginas de algum viajante que esqueceu-se talvez de contar que nos mangues e nas águas do Amazonas e do Orenoco há mais mosquitos e sezões do que inspiração que na floresta há insetos repulsivos, répteis imundos; que a pele furta-cor do tigre não tem o perfume das flores -que tudo isto é sublime nos livros, mas é soberanamente desagradável na realidade!

Escuta-me ainda. O autor deste livro não é um velho. Se não crê é porque o ceticismo é uma sina ou um acaso, assim como é às vezes um fato de razão. As cordas daquela lira foram vibradas por mãos de moço, mãos ardentes e convulsas de febre talvez de inspiração

Foi talvez um delírio, mas foi da cabeça e do coração que se exalaram aqueles cantos selvagens. Foi numa vibração nervosa, com o sangue a galopar-lhe febril pelas veias, com a mente ébria de seu sonho ou do seu pesadelo que ele cantou. Se as fibras da harpa desafinam, se a mão ríspida as estala, se a harpa destoa, é que ele não pensou nos versos quando pensava na poesia, é que ele cria e crê que a estância é uma roupa como outra- apenas, como o diz George Sand- a arte é um manto para as belezas nuas: é que ele preferira deixar uma estátua despida, a pespontar de ouro uma túnica de veludo para embuçar um manequim. É que ele pensa que a música do verso é o acompanhamento da harmonia das idéias e ama cem vezes mais o Dante com sua versificação dura, os rasgos de Shakespeare com seus versos ásperos, do que os alexandrinos feitos a compasso de Sainte-Beuve ou Turquety.

Penseroso: Tudo isso nada prova.-É uma poesia, concordo, concordo -mas é uma poesia terrível. E um hino de morte sem esperança do céu, como o dos fantasmas de João Paulo Richter. É o mundo sem a luz, como no canto da Treva. F, o ateísmo como na Rainha Mab de Shelley. Tenho pena daqueles que se embriagam com o vinho do ceticismo.

Macário: Amanhã pensarás comigo. Eu também fui assim. O tronco seco sem seiva e sem verdor foi um dia o arvoredo cheio de flores e de sussurro.

Penseroso: Não crer! e tão moço! Tenho pena de ti.

Macário: Crer? e no que? No Deus desses sacerdotes devassos? desses homens que saem do lupanar quentes dos seios da concubina, com sua sotaina preta ainda alvejante do cotão do leito dela para ir ajoelhar-se nos degraus do templo! Crer no Deus em que eles mesmos não crêem, que esses ébrios profanam até do alto da tribuna sagrada?

Penseroso: Não falemos nisto. Mas o teu coração não te diz que se nutre de fé e de esperanças?

Macário: A filosofia é vã. É uma cripta escura onde se esbarra na treva. As idéias do homem o fascinam, mas não o esclarecem. Na cerração do espírito ele estala o crânio na loucura ou abisma-se no fatalismo ou no nada.

Penseroso: Não!Não é o filosofismo que revela Deus. A razão do homem é incerta como a chama desta lâmpada: não a excites muito, que e a se apagará.

Macário: Só restam dois caminhos àquele que não crê nas utopias do filósofo. O dogmatismo ou o ceticismo.

Penseroso: Eu creio porque creio. Sinto e não raciocino.

Macário: Talvez seja a treva de meu corpo que escureça minha alma. Talvez um anjo mau soprasse no meu espírito as cinzas sufocadoras da dúvida. Não sei. Se existe Deus, ele me perdoará se a minha alma era fraca, se na minha noite lutei embalde com o anjo como Jacó, e sucumbi.-Quem sabe?-eis tudo o que há no meu entendimento. ÀS vezes creio, espero: ajoelho-me banhado de pranto, e oro;-outras vezes não creio, e sinto o mundo objetivo vazio como um túmulo.

Penseroso: Vê-o mundo é belo. A natureza estende nas noites estreladas o seu véu mágico sobre a terra, e os encantos da criação falam ao homem de poesia e de Deus. As noites, o sol, o luar, as flores, as nuvens da manhã. O sorriso da infância, até mesmo a agonia consolada e esperançosa do moribundo ungido que se volta para Deus. Tudo isso será mentira? As esperanças espontâneas, as crenças que um olhar de virgem nos infiltra, as vibrações unânimes das fibras sensíveis serão uma irrisão? O amor de tua mãe, as lágrimas do teu amor-tudo isso não te acorda o coração? Serás como essas harpas abandonadas cujas cordas roem a umidade e a ferrugem, e onde ninguém pode acordar uma harmonia? Por que estalaram? que dor profunda as rebentou? Quando tua alma ardente abria seus vôos para pairar sobre a vida cheia de amor, que vento de morte murchou-te na fronte a coroa das ilusões, apagou-te no coração o fanal do sentimento, e despiu-te das asas da poesia? Alma de guerreiro, deu-te Deus porventura o corpo inteiriçado do paralítico? Coração de Romeu, tens o corpo do lazarento ou a fealdade de Quasímodo? Lira cheia de músicas suspirosas, negou-te a criação cordas argentinas? Oh! não! abre teu peito e ama. Tu nunca viste tua ilusão gelar-se na frente da amante morta, teu amor degenerar nos lábios de uma adúltera. Alma fervorosa, no orgulho de teu ceticismo não te suicides na atonia do desespero. A descrença é uma doença terrível: destrói com seu bafo corrosivo o aço mais puro: é ela quem faz de Rembrandt um avarento, de Bocage um libertino! Para os peitos rotos, desenganados nos seus afetos mais íntimos, onde sepultam-se como cadáveres todas as crenças, para esses aquilo que se dá a todos os sepulcros, uma lágrima! Aquele que jogou sua vida como um perdulário, que eivou-se numa dor secreta, que sentiu cuspirem-lhe nas faces sublimes esses que riam como Demócrito, duvidem como Pyrrhon, ou durmam indiferentes no seu escárnio como Diógenes o cínico no seu tonel. A esses leva uma torrente profunda: revolvem-se na treva da descrença como Satan no infinito da perdição e do desespero! Mas nós, mas tu e eu que somos moços, que sentimos o futuro nas aspirações ardentes do peito, que temos a fé na cabeça e a poesia nos lábios, a nós o amor e a esperança: a nós O lago prateado da existência. Embalemo-nos nas suas águas azuis-sonhemos, cantemos e creiamos? Se o poeta da perdição dos anjos nos conta o crime da criatura divina liba-nos da despedida do Éden o beijo de amor que fez dos dois filhos da terra uma criatura, uma alma cheia de futuro. Se na primeira página da história da passagem do homem sobre a terra há o cadáver de Abel, e o ferrete de Caim o anátema-naquelas tradições ressoa o beijo de mãe de Eva pálida sobre os lábios de seu filho!

Macário: Ilusões! O amor-a poesia-a glória.- Ilusões! Não te ris tu comigo da glória.-Ilusões! Não te ris tu comigo da glória, como eu rio dela? A glória! entre essa plebe corrupta e vil que só aplaude o manto do Tartufo e apedreja as estátuas mais santas do passado! Glória! Nunca te lembras do Dante, de byron,> de Chatterton o suicida? E Verner poeta, sublime e febril também, morto de ceticismo e desespero sob sua grinalda de orgia? Glória! São acaso os loiros salpicados de lodo, manchados, descridos, cuspidos do poviléu, e que o futuro só consagra ao cadáver que dorme?

Escuta. Eu também amei. Eu também talvez possa amar ainda. Às vezes quando a mente se me embebe na melancolia, quando me passam na alma sonhos de homem que não dorme, e que chamam poesia; eu sinto ainda reabrir-se o meu peito a amores de mulher. Parece que se aquela beleza de olhos e cabelos negros, de colo arquejante e flutuoso me deixasse repousar a cabeça sobre seu peito, eu poderia ainda viver e querer viver, e ter alento bastante para desmaiar ali na volutuosidade pura de um espasmo, na vertigem de um beijo.

Mas o que me agita as fibras ainda é volutuosidade -é o ademã de uma beleza lânguida, a sede insaciável do gozo.

São sonhos! sonhos, Penseroso! É loucura abrir tanto os véus do coração e essas brisas enlevadas que vem tão sussurrantes de enleio, tão repassadas de aromas e beijos! É loucura talvez! E contudo quando o homem só vive deles, quando todas as portas se fecharam ao enjeitado-por que não ir bater na noite de febre no palácio da fada das imaginações? Põe a mão no meu coração. Tuas falas m'o fizeram bater. Havia uma voz dentro dele que eu pensava morta, mas que estava só emudecida. Escuta-a. Há uma mulher em quem eu pensei noites e noites: que encheu minhas noites de insônia, meu sono de visões fervorosas, meus dias de delírio. Eu amei essa mulher. Eu a segui passo a passo na minha vida. Deite-me na calçada da rua defronte de sua janela, para ouvir a sua voz, para entrevê-la a furto branca e vaporosa, para respirar o ar que ela bebia, para sentir o perfume de seus cabelos e ouvir o canto de seus lábios. Eu amei muito essa mulher. E por vê-la uma hora ao pé de mim – semi nua- embora fosse adormecida-só por vê-la, e por beijá-la de leve-eu daria minha vida inteira ao nada. E essa mulher, essa mulher

Penseroso: Que tem, fala ..

Macário: Adeus, Penseroso. Eu pensei que tu me acordavas a vida no peito. Mas a fibra em que tocaste e onde foste despertar uma harmonia é uma fibra maldita, cheia de veneno e de morte. Adeus. Penseroso. Ai daquele a quem um verme roeu a flor da vida como a Werther! A descrença é a filha enjeitada do desespero. Faust é Werther que envelheceu, e o suicídio da alma é o cadáver de um coração. O desfolhar das ilusões anuncia o inverno da vida.

Penseroso: Onde vais, onde vais?

Macário: Onde vou todas as noites. Vagarei à toa pelos campos até que o sono feche meus olhos e que eu adormeça na relva fria das orvalhadas da noite. Adeus.

(A mesma sala. )

Penseroso só (escreve): Não escreverei mais: não. Calarei o meu segredo e morrerei com ele. Esqueceu tudo! tudo! Esqueceu as noites solitárias em que eu estava a sós com ela, com sua mão na minha, com seus olhos nos meus. Esqueceu! Deus lhe perdoe. E se eu morro por ela, seja ela feliz!

Mas por que mentia se ela se ria de mim? Por que aqueles olhares tão lânguidos, aqueles suspiros tão doces? Por que sua mão estremecia nas minhas e se gelava quando eu a apertava? Por que naquela noite fatal, quando eu a beijei, ela escondeu seu rosto de virgem nas mãos, c as lágrimas corriam por entre seus dedos, e ela fugiu soluçando ? ( Pensativo ) .

Ela não me ama-é certo. Nunca, nunca ela me teve amor: a ilusão morreu Oh! não morrerei com ela? Ontem falei com Davi sobre o suicídio. Davi declamou, repetiu o que dizem esses homens sem irritabilidade de coração, que julgam que as palavras provam alguma coisa. Eu sorri. Davi é feliz-ele sim, nunca amará-não há de sentir esse sentimento único e queimador absorver como uma casuarina toda a seiva do peito, alimentar-se de todas as esperanças, todas as ambições, todos os amores da terra e do Céu, dos homens e de Deus, para fazer de tudo isso uma única essência, para transubstanciar tudo isso no amor de uma mulher! E depois, quando esse amor morrer, achando o peito vazio como o de um esqueleto, não terá animo para adormecer no seio da morte!

Eis aí o veneno. ó minha terra! Ó minha mãe! mais nunca te verei! Meu pai, meu santo pai! e tu, mãe'! de minha mãe que sentias por mim, cuja vida era uma oração por mim, que enxugavas tuas lágrimas nos teus cabelos brancos pensando no teu pobre neto! Adeus! Perdão! perdão!

Creio que chorei. Tenho a face molhada. A dor me enfraqueceria? Não! não Não há remédio. Morrerei.

Páginas de Penseroso

Se há um homem que cresse no futuro, fui eu. Tive confiança no orgulho de meu coração e no gênio que sentia na minha cabeça. Eu sinto-o. Deus me fez poeta. Esse mundo, a natureza, as montanhas, o eflúvio luminoso das noites de luar, tudo isso me acordava vibrações, me revelava no peito cordas que nunca escutei senão nos poetas divinos, que nunca senti no peito cavernoso e vazio dos outros homens. Sou rico, moço, morrerei pouco mais velho que o desgraçado Chatterton. E por todo o meu futuro, minhas glórias, toda essa ambição imensa, essa sede fogosa de uma alma que não se sacia com os prazeres de convenção da vida suntuosa dos palácios esplêndidos, e das aclamações da fama, eu só queria seu peito junto do meu-sua mão na minha. O andrajo do miserável não me doeria se eu tivesse o manto de oiro do seu amor.

Oh! ela não me entendeu! Não merecia tamanho amor. Tomei-a nua, fria e bruta como o escultor uma pedra de mármore-a visão que vesti com a gaza acetinada das minhas ilusões, a estátua que despertei do seio da matéria, não estava aí. Estava no meu coração e só nele. Fi-la bela, dessa beleza divina que Deus me ressumbrou na alma de poeta. Talvez é assim-mas assim mesmo eu morro por ela. -Amo-a como o pintor a sua Madona, como o escultor a sua Vênus, como Deus a sua criatura.

Era a única estátua da criação que se podia aviventar ao bafo ardente de meu peito. Não amei nunca outra mulher. Se o coração é um lírio que as paixões desfloram, sou ainda virgem; no deleite das minhas noites delirantes, tu o sabes, meu Deus, eu nunca amei!

E por que viver se o coração é morto? Se eu hoje dormisse sobre essa idéia, se eu pudesse adormecer no ócio e no tédio, seria isso ainda viver?

Viver era sentir, era amar, era crer que a ventura não é um sonho, e que eu tinha um leito de flores onde descansar da vida, onde eu pudesse crer que a glória, o futuro não valem um beijo de mulher!

Morrerei.

-Não posso trazer no peito o cadáver de minhas ilusões,' como a infanticida o remorso a lhe tremer nas entranhas. Há doenças que não tem cura. A tempestade é violenta, e o cansado marinheiro adormeceu no seio da morte. Antes isso que a lenta agonia do desespero, do que esse corvo da descrença e da ironia que rói as fibras ainda vivas como um cancro.

E seria contudo tão bela a vida se ela me amasse! Oh! por que me traiu Por que embalou-me nos seus joelhos, nos acentos mágicos da música dos anjos da esperança, do amor, para lançar-me na treva erma desse desalento e dessa saudade eivada de morte!

Viveríamos tão bem! Era tão fácil minha ventura! Por esses rios imensos da minha terra há tantas margens viçosas e desertas, cheias de flores e de berços de verdura, de retiros amenos, onde as aves cantam na primavera eterna do nosso céu, e as brisas suspiram tão docemente nas tardes purpurinas Seríamos sós-sós-e essa solidão nós a povoaríamos com o mundo angélico do nosso amor! Nos crepúsculos de verão eu a levaria pelas montanhas a embriagar-se de vida nos aromas da terra palpitante, pelos vales ainda úmidos de orvalho e ao tom das águas sem pensar na vida, pensando só que o amor é o oito dos rochedos brancos da existência, a estrela dos céus misteriosos, a palavra sacramental e mágica que rompe as cavernas do infinito e da ventura! Oh! deitado nos seus joelhos, ouvindo sua voz misturar-se ao silêncio do deserto, vendo sua face mais bela no véu luminoso e pálido do luar, como seria doce viver! Era assim que eu esperava amar, era assim que eu podia morrer sem saudades da vida, suspirando de amor! Sou um doido, meu Deus! Por que mergulhar mais o meu coração nessa lagoa venenosa das ilusões? Quero ter animo para morrer. Estalou-se nas minhas mãos o último ramo que me erguia sobre o abismo. Para que sonhar mais o que é impossível?

É ainda um sonho o que vou escrever.

Eu sonhei esta noite-e sonhei com ela. -Era meio-dia na floresta. A sombra caía no ar calmoso ...................................

(Uma rua)

Penseroso ( passeando): Tenho febre. É o efeito do veneno? Para que obre melhor tenho-o tomado aos poucos. Tenho às vezes estremecimentos que me gelam. Sinto um fogo no estômago-e as veias do meu cérebro parecem queimar o meu crânio e inundá-lo de sangue fervente. A cabeça me dói: às vezes parece-me que os ossos do meu crânio estalam -a minha vista se escurece e meus nervos tremem- meu coração parece abafado e palpita ansioso-a respiração piração me custa. Oh! custa tanto morrer!

O Doutor Larius ( passando a cavalo): Penseroso! Penseroso! Onde vais tão pálido?

Penseroso: Doutor, bom-dia. Acha-me pálido?

O Doutor: Como tua mão está ardente! Como tua testa queima! Tens febre, Penseroso.

Penseroso: Tenho febre, não é assim? Ponha a mão no meu coração, veja como bate!

O Doutor: Como teu peito está úmido de suor! Como pulsa teu coração! Penseroso, Penseroso! o que tens, meu amigo?

Penseroso: O que tenho; não tenho nada - absolutamente nada. Adeus, doutor.

O Doutor: Onde vais? O sol está ardente, e tens febre. Descansemos aqui na sombra. Ou então vamos para casa e deita-te

Penseroso: Sim. Adeus, doutor. (Vai-se apressado).

O Doutor: Penseroso! Penseroso!

(Uma sala)

(Num canto da sala, junto do piano, Penseroso só com a Italiana. Ouve-se o falar confuso partindo de outros lados da sala. Risadas, murmúrios de homens e mulheres que conversam.)

Penseroso: Adeus, senhora: eu me vou. Adeus, mas ao menos dai-me um olhar de compaixão para que se eu morrer de abandono, não morra sem uma bênção-e o vosso olhar é uma bênção!

A Italiana: Que dizeis, senhor Penseroso?

Penseroso: Sim-não me entendeis: eu sou um insensato. Pobre daquele a quem não compreendem!

A Italiana: Por que o dizeis? não vos prometi a minha mão? Por quem se espera no altar? É por mim? não Penseroso, é pela vontade de teu pai. . . Não te dei eu minha alma, assim como te darei meu corpo?

Penseroso: O virgem! se acaso um só momento de tua vida tu consagraste um suspiro ao desgraçado, se um só momento tu o amaste,-ah! que Deus em paga desse instante te dê um infinito de ventura!

A Italiana: Penseroso! Que tens? Nunca te vi assim. Eras pensativo e estás sombrio. Eras melancólico e estás triste. Que tens, que me não confias? Não sou eu tua noiva?

Penseroso: Ó senhora! Se uma eternidade se pode comprar por um sonho, o sonho que me embalou na minha existência bem valeta ser comprado por uma eternidade!

A Italiana: O teu sonho é o meu-é o nosso amor-a minha vida por ti, a tua vida por mim: nós dois formando um único ser, uma única alma, um mundo de delícias e de mistério só para nós e por nós!

Penseroso: Oh! senhor e acordar!

A Italiana: Então . . .

Penseroso: Meu Deus! meu Deus! perdoai-me. Adeus! adeus! (Com os olhos em lágrimas). Quem sabe se não será para sempre? (Sai).

A Italiana: (empalidecendo): Para sempre? Ah!

(O quarto de Penseroso)

Penseroso ( só ): Ela não me ama. Que importa? eu lh'o perdôo. Perdôo a leviandade daquela criança pura e santa que me leva ao suicídio . Oh! se eu pudesse vê-la ainda!

Passeei toda a noite pelo campo que se estende junto à casa dela. Vi as luzes apagarem-se uma por uma. Só o quarto dela ficara iluminado. Havia ser muito tarde quando a luz se apagou. Pareceu-me ver ainda depois uma imagem branca encostada na janela . .

Coitada! ela não sabe que eu estava ali, a seus pés, com o desespero n'alma, e o veneno no peito, cheio de desejos e de morte, cheio de saudades e de desesperança!

Vaguei toda a noite. Quando acordei estava muito longe. Assentei-me à beira do caminho. A meus pés se estendia o precipício coberto de ervacal

À direita, longe numa lagoa saíram os primeiros raios do dia. O orvalho reluzia nas folhas das árvores antigas do caminho, em cuja sombra imensa acordavam os passarinhos cantando

Perdoai-me, meu Deus! talvez seja uma fraqueza o suicídio-por que será um crime ao pobre louco sacrificar os seus sonhos da vida?

Este cordão de cabelos quero que seja entregue a ela: são cabelos de minha mãe-de minha mãe que morreu.

Trouxe-os sempre no meu peito. Quero que ela os beije às vezes e lembre-se de mim..

Esse amor foi uma desgraça. Foi uma sina terrível. Ó meu pai! ó minha segunda mãe! ó meus anjos! meu céu! minhas campinas! É tão triste morrer!

Ah! que dores horríveis! tenho fogo no estômago.. Minha cabeça se sufoca... Ar! ar! preciso de ar.. Eu te amei, eu te amei tanto!... (Desmaia).

Huberto ( entrando ): Penseroso! Que tens? Que convulsão! Ah! é uma agonia! Depressa, depressa, chamem alguém... O Dr. larius. . . Ó meus companheiros, socorrei nosso amigo. . Penseroso morre! Davi! Davi! onde está Davi?

Uma voz: Está caçando.

Huberto: E Macário, onde está também?

A voz: Tomou ontem uma bebedeira. Está ébrio como uma cabra.

(À porta de uma taverna) (Macário vai saindo e encontra Satan)

Satan: Onde vais?

Macário: Sempre tu, maldito!

Satan: Onde vais? Sabes de Penseroso?

Macário: Vou ter com ele.

Satan: Vai, doido, vai! que chegarás tarde! Penseroso morreu.

Macário: Mataram-no!

Satan: Matou-se.

Macário: Bem.

Satan: Vem comigo.

Macário: Vai-te.

Satan: ÉS uma criança. Ainda não saboreaste a vida e já gravitas para a morte. O que te falta? Ouro em rios? eu t'o darei. Mulheres? tê-las-ás virgens, adúlteras ou prostitutas -O amor? dar-te-ei donzelas que morram por ti, e realizem na tua fronte os sonhos de seu histerismo Que te falta?

Macário: Vai-te, maldito!

Satan ( afastando -se): Abrir a alma ao desespero é dá-la a Satan. Tu és meu. Marquei-te na fronte com meu dedo. Não te perco de vista. Assim te guardarei melhor. Ouvirás mais facilmente minha voz partindo de tua carne que entrando pelos teus ouvidos.

(Uma rua) (Macário e Satan de braços dados.)

Satan: Estás ébrio? Cambaleias.

Macário: Onde me levas?

Satan: A uma orgia. Vais ler uma página da vida cheia de sangue e de vinho-que importa?

Macário: É aqui, não? Ouço vociferar a saturnal lá dentro.

Satan: Paremos aqui. Espia nessa janela.

Macário: Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa estão sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem ali mulheres desgrenhadas, umas lívidas, outras vermelhas Que noite!

Satan: Que vida! não é assim? Pois bem! escuta, Macário. Há homens para quem essa vida é mais suave que a outra. O vinho é como o ópio, é o Letes do esquecimento... A embriaguez é como a morte. . .

Macário: Cala-te. Ouçamos.

FIM

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terça-feira, abril 14, 2009 - 02:03

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