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Noite na Taverna (Capítulo VII — Último Beijo de Amor)

Well Juliet! I shall lie with thee to night!
Romeu e Julieta. Shakespeare.

A noite ia alta: a orgia findara. Os convivas dormiam repletos, nas trevas.

Uma luz raiou súbito pelas fisgas da porta. A porta abriu-se. Entrou uma mulher vestida de negro. Era pálida; e a luz de uma lanterna, que trazia erguida na mão, se derramava macilenta nas faces dela e lhe dava um brilho singular aos olhos. Talvez que um dia fosse uma beleza típica, uma dessas imagens que fazem descorar de volúpia nos sonhos de mancebo. Mas agora com sua tez lívida, seus olhos acesos, seus lábios roxos, suas mãos de mármore, e a roupagem escura e gotejante da chuva, disséreis antes — o anjo perdido da loucura.

A mulher curvou-se: com a lanterna na mão procurava uma por uma entre essas faces dormidas um rosto conhecido.

Quando a luz bateu em Arnold, ajoelhou-se. Quis dar-lhe um beijo, alongou os lábios... Mas uma idéia a susteve. Ergueu-se. Quando chegou a Johann, que dormia, um riso embranqueceu-lhe os beiços, o olhar tornou-se-lhe sombrio.

Abaixou-se junto dele, depôs a lâmpada no chão. O lume baço da lanterna dando nas roupas dela espalhava sombra sobre Johann. A fronte da mulher pendeu e sua mão passou na garganta dele. Um soluço rouco e sufocado ofegou daí. A desconhecida levantou-se. Tremia; e ao segurar na lanterna ressoou-lhe na mão um ferro... Era um punhal... Atirou-o ao chão. Viu que tinha as mãos vermelhas, enxugou-as nos longos cabelos de Johann...

Voltou a Arnold; sacudiu-o.

— Acorda e levanta-te!

— Que me queres?

— Olha-me... não me conheces?

— Tu! e não é um sonho? És tu! oh! deixa que eu te aperte ainda! Cinco anos sem ver-te! E como mudaste!

— Sim, já não sou bela como há cinco anos! É verdade, meu loiro amante! É que a flor de beleza é como todas as flores. Alentai-as ao orvalho da virgindade, ao vento da pureza, e serão belas... Revolvei-as no lodo... e, como os frutos que caem, mergulham nas águas do mar, cobrem-se de um invólucro impuro e salobro! Outrora era Giorgia — a virgem, mas hoje e Giorgia — a prostituta!

— Meu Deus! meu Deus!

E o moço sumiu a fronte nas mãos.

— Não me amaldiçoes, não!

— Oh! deixa que me lembre: estes cinco anos que passaram foram um sonho. Aquele homem do bilhar, o duelo à queima-roupa, meu acordar num hospital, essa vida devassa onde me lançou a desesperação, isto é um sonho? Oh! lembremo-nos do passado! Quando o inverno escurece o céu, cerremos os olhos; pobres andorinhas moribundas, lembremo-nos da primavera!...

— Tuas palavras me doem... É um adeus, é um beijo de adeus e separação que venho pedir-te: na terra nosso leito seria impuro, o mundo manchou nossos corpos. O amor do libertino e da prostituta! Satã riria de nos. É no céu, quando o túmulo nos lavar em seu banho, que se levantará nossa manhã de amor...

— Oh! ver-te e para deixar-te ainda uma vez! E não pensaste, Giorgia, que me fora melhor ter morrido devorado pelos cães na rua deserta, onde me levantaram cheio de sangue? Que fora-te melhor assassinar-me no dormir do ébrio, do que apontar-me a estrela errante da ventura e apagar-me a do céu? Não pensaste que, após cinco anos, cinco anos de febre e de insônias, de esperar e desesperar, de vida por ti, de saudades e agonia, fora o inferno ver-te para te deixar?

— Compaixão, Arnold! É preciso que esse adeus seja longo como a vida. Vês, minha sina é negra: nas minhas lembranças há uma nódoa torpe... Hoje! é o leito venal... Amanhã!... só espero no leito do túmulo! Arnold! Arnold!

— Não me chames Arnold! chama-me Artur, como dantes. Artur! não ouves? Chama-me assim! Há tanto tempo que não ouço me chamarem por esse nome!... Eu era um louco! quis afogar meus pensamentos e vaguei pelas cidades e pelas montanhas deixando em toda a parte lágrimas... nas cavernas solitárias, nos campos silenciosos, e nas mesas molhadas de vinho! Vem, Giorgia! senta-te aqui, senta-te nos meus joelhos, bem conchegada a meu coração... tua cabeça no meu ombro! Vem! um beijo! quero sentir ainda uma vez o perfume que respirava outrora nos teus lábios. Respire-o eu e morra depois!... Cinco anos! oh! tanto tempo a esperar-te, a desejar uma hora no teu seio!... Depois... escuta... tenho tanto a dizer-te! tantas lágrimas a derramar no teu colo! Vem! e dir-te-ei toda a minha história! minhas ilusões de amante e as noites malditas da crápula e o tédio que me inspiravam aqueles beiços frios das vendidas que me beijavam! Vem! contar-te-ei tudo isto, dir-te-ei como profanei minh'alma e meu passado... e choraremos juntos... e nossas lágrimas nos lavarão como a chuva lava as folhas do lodo!

— Obrigada, Artur! obrigada!

A mulher sufocava-se nas lágrimas, e o mancebo murmurava entre beijos palavras de amor.

— Escuta, Artur, eu vinha só dizer-te adeus! da borda do meu túmulo; e depois contente fecharia eu mesma a porta dele... Artur, eu vou morrer!

Ambos choravam.

— Agora vê, continuou ela. Acompanha-me: vês aquele homem?

Arnold tomou a lanterna.

— Johann! morto! sangue de Deus! quem o matou?

— Giorgia! Era ele um infame. Foi ele quem deixou por morto um mancebo a quem esbofeteara numa casa de jogo. Giorgia — a prostituta! vingou nele Giorgia — a virgem! Esse homem foi quem a desonrou! desonrou-a, a ela que era sua... irmã!

— Horror! horror!

E o moço virou a cara e cobriu-a com as mãos.

A mulher ajoelhou-se a seus pés.

— E agora adeus! adeus que morro! Não vês que fico lívida, que meus olhos se empanam e tremo... e desfaleço?

— Não! eu não partirei. Se eu vivesse amanhã haveria uma lembrança horrível em meu passado...

— E não tens medo? Olha! é a morte que vem! é a vida que crepúscula em minha fronte. Não vês esse arrepio entre minhas sobrancelhas?...

— E que me importa o sonho da morte? Meu porvir amanhã seria terrível: e à cabeça apodrecida do cadáver não ressoam lembranças; seus lábios gruda-os a morte; a campa é silenciosa. Morrerei!

A mulher recuava... recuava. O moço tomou-a nos braços, pregou os lábios nos dela... Ela deu um grito e caiu-lhe das mãos. Era horrível de se ver. O moço tomou o punhal, fechou os olhos, apertou-o no peito, e caiu sobre ela. Dois gemidos sufocaram-se no estrondo do baque de um corpo...

A lâmpada apagou-se.

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terça-feira, abril 14, 2009 - 00:59

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AlvaresdeAzevedo

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