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Viagens na Minha Terra - VII
Reflexões importantes sobre o Bois de Boulogne, as carruagens de molas, Tortoni, e o café do Cartaxo. — Dos cafés em geral, e de como são característicos da civilização de um país. — O Alfageme. — Hecatombe imolada pelo A. — História do Cartaxo. — Demonstra-se como a Grã-Bretanha deveu sempre a sua força e toda a sua glória a Portugal. — Shakespeare e Laffite, Milton e Châteaux-Margaux, Nelson e o Príncipe de Joinville. — Prova-se evidentemente que M. Guizot é a ruína de Albion e do Cartaxo.
Voltar à meia noite do Bois de Boulogne — o bosque por excelência , — descer, entre as nuvens de poeira, o longo estádio dos Campos Elísios , entrever, na rápida carreira, o obelisco de Lúxor, as árvores das Tulherias, a coluna da praça Vandome, a magnificência heteróclita da Madalena, e enfim sentir parar, de uma sofreada magistral, os dois possantes ingleses que nos trouxeram quase de um fôlego até ao bulevar de Gand; aí entreabrir molemente os olhos, levantando meio corpo dos regalados coxins de seda, e dizer: Ah! estamos em Tortoni... que delícia um sorvete com este calor! — é seguramente, é dos prazeres maiores desse mundo, sente-se a gente viver; é meia hora de existência que vale dez anos de ser rei em qualquer outra parte do mundo.
Pois acredite-me o leitor amigo, que sei alguma coisa dos sabores e dissabores deste mundo, fie-se na minha palavra, que é de homem experimentado: o prazer de chegar por aquele modo a Tortoni, o apear da elegante caleche balançada nas mais suaves molas que fabricasse arte inglesa do puro aço de Suécia, não alcança, não se compara ao prazer e consolação da alma e corpo que eu senti ao apear-me da minha choiteira mula à porta do grande café do Cartaxo.
Fazem idéia do que é o café do Cartaxo? Não fazem. Se não viajam, não saem, se não vêem mundo esta gente de Lisboa! E passam a sua vida entre o Chiado, a rua do Oiro e o teatro de S. Carlos, como hão de alargar a esfera de seus conhecimentos, desenvolver o espírito, chegar à altura do século?
Coroai-vos de alface, e ide jogar o bilhar, ou fazer sonetos à dama nova, ide que não prestais para nada, meus queridos lisboetas; ou discuti os deslavados horrores de algum melodrama velho que fugiu assobiado da Porte Saint-Martin e veio esconder-se na rua dos Condes. Também podeis ir aos Toiros — estão embolados, não há perigo...
Viajar?... qual viajar! até a Cova da Piedade, quando muito, em dia que lá haja cavalinhos. Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço, todas as ruas como a rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare.
Pois não são, não: e o do Cartaxo menos que nenhum.
O café é uma das feições mais características de uma terra. O viajante experimentado e fino chega a qualquer parte, entra no café, observa-o, examina-o, estuda-o, e tem conhecido o país em que está, o seu governo, as suas leis, os seus costumes, a sua religião. Levem-me de olhos tapados onde quiserem, não me desvendem senão no café; e protesto-lhes que em menos de dez minutos lhes digo a terra em que estou se for país sublunar.
Nós entramos no café do Cartaxo, o grande café do Cartaxo, e nunca se encruzou turco em divã de seda do mais esplêndido café de Constantinopla, com tanto gozo de alma e satisfação de corpo, como nós nos sentamos nas duras e ásperas tábuas das esguias banquetas mal sarapintadas que ornam o magnífico estabelecimento bordalengo.
Em poucas linhas se descreve a sua simplicidade clássica: será um paralelogramo pouco maior que a minha alcova; à esquerda duas mesas de pinho, à direita o mostrador envidraçado onde campeiam as garrafas obrigadas de licor de amêndoa, de canela, de cravo. Pendem do teto laboriosamente arrendados por não vulgar tesoira, os pingentes de papel, convidando a lascivo repouso a inquieta raça das moscas. Reina uma frescura admirável naquele recinto.
Sentamo-nos, respiramos largo, e entramos em conversa com o dono da casa, homem de trinta a quarenta anos, de fisionomia esperta e simpática, e sem nada de repugnante vilão ruim que é tão usual de encontrar por semelhantes lugares da nossa terra. — Então que novidades há por cá pelo Cartaxo, patrão?
— Novidades! Por aqui não temos senão o que vem de Lisboa. Aí está a Revolução de ontem...
— Jornais, meu caro amigo! Vimos fartos disso. Diga-nos alguma coisa da terra. Que faz por cá o ...
— O mestre J.P., o Alfageme?
— Como assim o Alfageme?
— Chama-lhe o Alfageme ao mestre J.P.; pois então! Uns senhores de Lisboa que aí estiveram em casa do Sr. D. puseram-lhe esse nome, que a gente bem sabe o que é; e ficou-lhe, que agora já ninguém lhe chama senão o Alfageme. Mas, quanto a mim, ou ele não é Alfageme, ou não o há de ser por muito tempo. Não é aquele não. Eu bem me entendo.
A conversação tornava-se interessante, especialmente para mim: quisemos aprofundar o caso.
— Muito me conta, Sr. Patrão! Com que isto de ser Alfageme, parece-lhe que é coisa de...
— Parece-me o que é, e o que há de parecer a todo mundo. E algumas coisas sabemos cá no Cartaxo, do que vai por ele. O verdadeiro Alfageme diz que era um espadeiro ou armeiro, cutileiro ou coisa que o valha, na Ribeira de Santarém; e o que foi um homem capaz, que punia pelo povo, e que não queria saber de partidos, e que dizia ele: "Rei que nos enforque, e papa que nos excomungue, nunca há de faltar. Assim, deixar os outros brigar, trabalhemos nós e ganhemos nossa vida". Mas que estrangeiros que não queria, que esta terra que era nossa e com a nossa gente se devia governar. E mais coisas assim: e que por fim o deram por traidor e lhe tiraram quanto tinha. Mas que lhe valeu o Condestável e o não deixou arrasar, por era homem de bem e fidalgo às direitas. Pois não é assim que foi?
— É assim, meu amigo. Mas então daí?
— Então daí o que se tira é que quando havia fidalgos como o Santo Condestável também havia Alfagemes como o de Santarém. E mais nada.
— Perfeitamente. Mas por chamaram ao mestre P. o Alfageme de Cartaxo?
— Eu lhes digo aos senhores: o homem nem era assim, nem era assado. Falava bem, tinha sua lábia com o povo. Daí fez-se juiz, pôs por aí suas coisas a direito. — Deus sabe as que ele entortou também!... ganhou nome no povo, e agora faz dele o que quer. Se lhe der sempre para bem, bom será. Os senhores não tomam nada?
O bom do homem visivelmente não queria falar mais: e não devíamos importuná-lo. Fizemos o sacrifício do bom número de limões que esprememos em profundas taças — vulgo, copos de canada — e com água de açúcar, oferecemos as devidas libações ao gênio do lugar. Infelizmente o sacrifício não foi de todo incruento. Muitas hecatombes de mirmidões caíram no holocausto, e lhe deram um cheiro e sabor que não sei se agradou à divindade, mas que enjoou terrivelmente aos sacerdotes.
Saímos a visitar o nosso bom amigo, o velho D., a honra e alegria do Ribatejo. Já ele sabia da nossa chegada, e vinha no caminho para nos abraçar.
Fomos dar, juntos, uma volta pela terra.
É das povoações mais bonitas de Portugal, o Cartaxo, asseada, alegre; parece o bairro suburbano de uma cidade.
Não há aqui monumentos, não há aqui história antiga; a terra é nova, e a sua prosperidade e crescimento datam de trinta ou quarenta anos, desde que seu vinho começou a ter fama. Já descaída do que foi pela estagnação daquele comércio, ainda é contudo a melhor coisa da Borda d'Água.
Não tem história antiga, disse; mas tem-na moderna e importantíssima.
Que memórias aqui não ficaram da guerra peninsular! Que espantosas borracheiras aqui não tomaram os mais famosos generais, os mais distintos militares da nossa antiga e fiel aliada, que ainda então, ao menos, nos bebia o vinho!
Hoje nem isso!... hoje bebe a jacobina zurrapa de Bordéus e as acerbas limonadas de Borgonha. Quem tal diria da conservativa Albion! Como pode uma leal goela britânica, rascada pelos ácidos anárquicos daquelas vinagretas francesas, entoar devidamente o God Save the King em um toast nacional! Como, sem Porto ou Madeira, sem Lisboa, sem Cartaxo, ousa um súdito britânico erguer a voz, naquela harmoniosa desafinação insular que lhe é própria e que faz parte do seu respeitável caráter nacional — faz; não se riam: o inglês não canta senão quando bebe... aliás quando está BEBIDO. Nisi potus ad arma ruisse. Inverta: Nisi potus in cantum prorumpisse... E pois, como há de ele assim bebido erguer a voz naquele sublime e tremendo hino popular Rule Britannia!.
Bebei, bebei bem zurrapa francesa, meus amigos ingleses; bebei, bebei a peso de oiro, essas limonadas dos burgraves e margraves de Alemanha; chamai-lhe, para vos iludir, chamai-lhe hoc, chamai-lhe hic, chamai-lhe o hic haec hoc todo, se vos dá gosto... que em poucos anos veremos o estado de acetato a que há de ficar reduzido o vosso caráter nacional.
Ó gente cega a quem Deus quer perder! Pois não vedes que não sois nada sem nós, que sem o nosso álcool, donde vos vinha espírito, ciência, valor, ides cair infalivelmente na antiga e preguiçosa rudeza saxônia!
Dessas traidoras praias de França donde vos vai hoje o veneno corrosivo da vossa índole e da vossa força, não tardará que também vos chegue outro Guilherme bastardo que vos conquiste e vos castigue, que vos faça arrepender, mais tarde, do criminoso erro que hoje cometeis, ó insulares sem fé, em abandonar a nossa aliança. A nossa aliança, sim, a nossa poderosa aliança, sem a qual não sois nada. O que é um inglês sem Porto ou Madeira... sem Carcavelos ou Cartaxo?
Que se inspirasse Shakespeare com Laffitte, Milton com Château-Margaux — o chanceler Bacon que se diluísse no melhor Borgonha... e veríamos os acídulos versinhos, os destemperados raciocininhos que faziam. Com todas as suas dietas, Newton nunca se lembrou de beber Johannisberg: Byron anates beberia gim, antes água do Tâmisa, ou do Pamiso, do que essas escorreduras das áreas de Bordéus. Tirai-lhe o Porto aos vossos almirantes, e ninguém mais teme que torneis a ter outro Nelson. Entra nos planos do Príncipe de Joinville fazer-vos beber da sua zurrapa; são tantos pontos de partido que lhe dais no seu jogo.
É M. Guizot quem perde a Inglaterra com sua aliança; e também perde o Cartaxo. Por isso eu já não quero nada com os doutrinários.
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Há doze anos tornou o Cartaxo a figuras conspicuamente na história de Portugal. Aqui, nas longas e terríveis lutas da última guerra de sucessão, esteve muito tempo o quartel general do Marquês de Saldanha.
Alguns ditirambos se fizeram; alguns ecos das antigas canções báquicas do tempo da guerra peninsular ainda acordaram ao som dos hinos constitucionais.
Mas o sistema liberal, tirada a época das eleições, não é grande coisa para a indústria vinhateira, dizem. Eu não o creio, porém, e tenho minhas boas razões, que ficam para outra vez.
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