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Cleópatra, numa mistura de raças
“Fica dentro de vós a consciência
De que ali onde o mundo é mais vazio
Havia um homem.”
Miguel Torga, “Cântico do Homem”
10 horas e 10 minutos…
A estridente campainha eléctrica acabava de anunciar o fim do intervalo grande da manhã. Era o toque que anunciava a entrada dos alunos nas salas de aula.
Era assim naquele tempo.
Habitualmente os professores entravam cinco minutos depois deste toque. O toque dos alunos, que se sentavam ordenadamente e esperavam que aqueles chegassem. Era a rigidez daquele tempo. Mas aquele professor, o professor Salvato, era sempre o primeiro a entrar. Muito antes do toque que anunciava o início da aula. Não procedia como os demais professores… os que fumavam distraidamente o seu demorado cigarro pelos corredores do Liceu, ou se perdiam, no tempo, na sala dos professores e se esqueciam que os alunos também existiam.
Imponente, impecavelmente vestido, era assim o professor Salvato. Num dos seus habituais fatos de corte inglês, às riscas, fatos talhados por medida no Fernando Alfaiate, ali ao lado do Haiti, erguia-se sumptuoso na beira do estrado onde assentava a secretária de pinho.
No seu rosto, de efígie grega, a barba sempre meticulosamente escanhoada. Um olhar de um significado indecifrável, mais parecendo traço do pincel de Da Vince.
Ordenava, meticulosamente, o compêndio de filosofia, com a efígie de Sócrates na capa com a máxima “conhece-te a ti mesmo”, no local exacto da secretária. A caneta, sempre uma caneta Parker 51 de tinta permanente com o aparo em ouro, repousava, pacientemente, no caderno de sumários, aberto.
Olhava, com uma certa doçura no olhar os alunos que, ordenadamente, iam cumprimentando
«Bom-dia Setôr.»
sem a nenhum deles responder. Esperava que o último se sentasse e, só depois, numa voz seca que não deixava transparecer qualquer sentimento, muito menos se conjugava com alguma doçura que o olhar ditava, cumprimentava
«Bom-dia meus senhores.»
e nunca “e minhas senhoras”, que aquele era o primeiro ano lectivo em que, por decisão governamental, funcionavam as turmas mistas.
10 horas e 15 minutos…
Acabava de ditar e escrever o sumário da lição do dia para dar início a uma revisão, muito sintetizada, da lição do dia anterior.
«Ora, se bem se lembram, na última aula...»
E lá discorria, em resumo, a última aula com algumas perguntas à mistura, depois de aliviar o catarro nervoso que de vez em quando lhe afligia a garganta. Muito poucas, porque bem sabia que menos seriam as respostas numa disciplina que obrigava os alunos a pensar para poderem responder à pergunta formulada. E pensar, em filosofia, doía. Era próprio da dificuldade da cadeira se bem que ela se prestasse a perguntas e respostas.
Estava-se no início do último trimestre. Na aula de Filosofia. Estudava-se o projecto filosófico de Kant. O difícil filósofo da Razão. Naquele dia ia falar-se da Estética Transcendental. E começou, na sua voz de mestre, seca e inexpressiva:
«Na Crítica da Razão Pura, Kant começa por indagar como é que é possível ao homem receber impressões.»
10 horas e 20 minutos…
Rodou-se o ferrolho da porta. Abre-se. No limiar, uma mulher, qual efígie egípcia, que, numa voz infantil, mais de menina mimada que infantil, pergunta:
«Posso, professor?»
Ele ficou mudo de pasmo. Petrificado, até. Seria daquela beleza divina? Seria de qualquer memória guardada lá no mais fundo de si mesmo e agora desenterrada?
“Será ela deste planeta?” (pensou o professor)
Os alunos, boquiabertos.
Primeiro, porque nunca ninguém ousara tratar o mestre por professor; todos eles, naquele tempo, lhe chamavam Doutor no Setôr abreviado; depois, pela recém colega que não dava nas vistas somente pelo espampanante, mas pela diferença do corpo. De modelo nunca visto, que duma maneira descontraída e airosa sobressaía, com a maior das descontracções, daquela reduzida mini-saia que agora estava na moda; finalmente, porque aquela aluna era a primeira vez que pisava a sala.
O professor apenas se limitou a fazer o gesto que indicava o franquear da entrada, que a voz, essa, lhe morreu à nascença no mais fundo da garganta. Ela, apesar de alguns lugares vazios nas primeiras carteiras, foi sentar-se ao fundo, na última carteira da primeira fileira, de onde lhe permitia ter uma panorâmica completa de toda a sala.
10 horas e 21 minutos…
Um longo e comprometedor minuto…
«E dizia eu que, Kant, começa, na sua Crítica da Razão Pura, por indagar como é que é possível ao homem receber impressões. A estética transcendental analisa as condições subjectivas necessárias para a possibilidade de receber dados acerca de realidades exteriores à consciência, do mundo externo ou interno do sujeito. A sensibilidade é o poder que o nosso espírito tem de receber impressões. Se posso percepcionar a beleza da mulher que está diante de mim é graças a essa capacidade...»
“ [...] a beleza da mulher [...] ”
Aqui parou por segundos que lhe pareceram séculos. Olhava, fixamente, a efígie egípcia que se sentara na última carteira da sala. O cabelo, de um negro de azeviche, armado, puxado para trás e preso sobre a nuca, à Sofia Loren, acentuava-lhe as maçãs do rosto ligeiramente rosadas. Os olhos amendoados, de negras pestanas a que o rímel emprestou forma também exuberante, enfeitavam aquele rosto moreno encimado por sumptuosa tez. Fez-lhe lembrar uma Cleópatra, que não a rainha egípcia, que noutros tempos conhecera. Uma beleza rara, origem de uma mistura de raças. Europeia, africana, asiática , talvez…
Cruzaram-se os olhares. Os do professor e os dela. Petrificou, ele; olhou-o, maliciosamente, ela. Por largos instantes assim terão permanecido, que só se apercebeu do inconveniente do momento quando foi despertado pela pergunta de uma aluna (o tal sabão que uma turma sempre tem) que, felizmente, o tirou daquele grave apuro.
«Setôr. Então é a sensibilidade que determina o modo como o objecto afecta o sujeito?»
Dir-se-ia que era uma pergunta propositada, dado o momento de abstracção do professor, e para o livrar daquele embaraço comprometedor.
10 horas e 25 minutos…
Mal ele sabia, nem sequer imaginava, que estava próximo do fim de ser um professor desprovido de sentimentos e paixões.
(continua com o título: "E fez-lhe sinal para que avançasse"
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