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Mudar de vida


Regulou para o mínimo a intensidade da luz no candeeiro da mesa-de- cabeceira, amarrotou a barra colorida do lençol, puxando-a e cobrindo-se até ao pescoço, não por sentir frio, mas por hábito de que nem se apercebia, e deixou-se ficar inerte, esforçando-se por distender todos os músculos. Mais dois ou três minutos e apareceriam os efeitos de euforia propagados pelo indispensável afrodisíaco, o qual, segundo acreditava, apenas servia para lhe trazer à flor da pele a carga de licenciosidade que no resto do tempo andava submersa no seu subconsciente e, por truque enganoso, o inibia de expressar por qualquer modo sequer uma réstia de sexualidade.

Resolvera mudar de vida, em matéria de mulheres. Definitivamente. Depois dessa noite não tornaria a deitar-se com Marlene. Em ligeiro movimento do cotovelo, tocou-a, assegurando-se que sem dúvida ela estava ali deitada ao seu lado, sempre receptiva, sempre roliça, sempre fofa e com aquele odor almiscarado, a suportar-lhe a caminhada rumo ao estado paranóico. Não! Não estava ainda de todo sob perturbação mental... A prova era a lucidez com que decidira arrepiar caminho. Marlene, pela última vez! Ah, se a galdéria da Irene não o tivesse abandonado! — Cala-te! Não disseste que essa mulher morreu, para ti?... Então porquê esse queixume! — Impregnou a minha existência de tal maneira, que ainda encontro salpicos dela nas coisas mais banais... Irene... Marlene... Mas está morta, isso está! E não precisei de dar cabo dela, como vai acontecer com a Marlene. Bastou-me erguer uma opaca barreira no meu espírito, porque o seu corpo arrebatador ela própria se encarregou de mo sumir.

A excitação começava-lhe por um formigueiro miudinho no dedão do pé esquerdo, fixara isso logo na primeira experiência, durante a qual se manteve atento aos mais ínfimos sintomas, porque estava receoso de chegar a resultados de algum modo incontroláveis, ou até a lado nenhum. Produtos quase imediatamente revigorantes da sexualidade, encarara-os sempre com desconfiança. Agora habituara-se a usá-los. Tudo por causa daquela desgraçada que substituíra por Marlene, escolhida com sentido crítico, e com exemplar bom senso apesar de ainda em tempo de profunda mágoa da separação de Irene. Depois a comichão mudava-se para o joelho direito e a respiração apressava-se-lhe, que a seguir a erecção ia nascendo e então assumia-se um machão, de invejável capacidade, nada fácil de saciar... Nunca tivera razão de queixa de Marlene. Jamais se exauria e ele acabava a noite seco de fluidos, seguro contra relações perigosas e consolado por mais de um orgasmo. Queria mudar de vida com respeito a mulheres, porque todas se tornam monótonas e cansam. Não se considerava volúvel, e antes de Irene até era virgem. No fundo, no fundo, era o medo de ficar misógino de vez, e exactamente por reacção estimulada pela fulana que o desprezara.

De repente ficou pronto. Atirou o lençol para fora da cama, rolou para cima de Marlene e desatou a fornicar, com bastante energia. Às vezes, entre as arremetidas de um e outro êxtase assomava-lhe à cabeça a noção da pura animalidade que o consumia, mas já não podia parar antes de se esgotar, e nesse momento já aquela imagem judicativa se perdera algures durante a exaltação.
Premeditara o fim de Marlene com muita minúcia. Ao lado da cama, pousada na alcatifa, ao alcance da mão, estava a faca da cozinha, pontiaguda e de lâmina assustadoramente cortante. Um golpe impulsivo e fatal à largura da garganta, uma incisão pequena em cada virilha. Sem espalhafato desnecessário. Um rápido beijo de despedida na pontinha do nariz, que o cativara desde que a vira pela primeira vez. Mas só depois de ter consumado o último e esvanecente acto de sexo... De ter ficado murcho e sem uma única gota de esperma. Então, na obscuridade do apartamento, vestir-se-ia com ligeireza, e sairia rumo à praia, para lá adormecer embalado no cheiro da maresia e no marulhar da rebentação das ondas a pouca distância, até despertar com o nascer do Sol. Mudar de vida...

Ao segundo orgasmo sentiu-se árido de vontade e a virilidade desabou de imediato. Habitualmente ia mais longe, mas era plausível que o objectivo de terminar com a odorosa Marlene o pressionasse psiquicamente. Depois foi tão expedito e preciso nos seus movimentos que nem um ou outro rangido da cama se sobrepôs ao tétrico silêncio do quarto. Nem um suspiro, nem um ai. Saltou sem reboliço para o chão, correu ao quarto de banho a lavar-se, voltou para enfiar uma fina camisola de algodão, vestir umas bermudas, calçar uns sapatos de lona, pegar nas chaves e em poucos minutos caminhar os cerca de quinhentos metros de pinhal que mediavam entre a residência e a areia e rochedos da orla marítima.

A maré subia mas ainda vinha distante. Águas serenas. Praia deserta, apesar do tempo quente. Domingo... Mesmo à semana só depois das duas da madrugada é que os carros apareciam por lá... corpos a  escaldar, mentes embriagadas pelo desejo. E ainda era só meia-noite. Com Irene, muito raramente frequentara o lugar. Perto de casa... — Maldita! Podes deixar-me livre agora? Morreste-me, como a pobre Marlene. Paz à vossa materialidade! Fêmeas há muitas no mundo.

Trepou às rochas. Conhecia-as desde miúdo e tinha poisos preferidos, conforme a sua disposição. Sentou-se numa reentrância e ficou a olhar as luzinhas dos barcos, que passavam na escuridão da noite. Conseguira desfazer-se de todos os pensamentos. Escutava o barulho das vagas e enchia o peito com o ar temperado de sal e apaladado em algas. Recostou-se, descontraído, reconciliado com a existência. Cochilou por muito tempo. Perto das três horas espertou, contrafeito pela dureza da acomodação e pelo calor ainda concentrado nos rochedos. O ruído do mar, agora bem próximo, atraiu-o para a água... um mergulho refrescante e depois instalar-se-ia num sítio mais plano. De relance pareceu-lhe que a praia continuava erma. Melhor! Descalçou-se e despiu a camisola e os calções. Já não se lembrava de quando tomara o último banho de praia, nu. Bem-disposto, correu para as ondas, gozando o atrevimento como um bicho marinho. Noite bonita! Submergiu, deu braçadas de nenhum estilo, chapadas na água, dançou um exótico bailado, saltitou esparrinhando jorros de espuma, descobriu algumas estrelas no céu, brincou na rebentação, meteu-se mar adentro enquanto havia pé, regressou e quase ao sair da água foi atingido em cheio pelo foco de uma lanterna. Em contraluz divisou um jipe. — Polícia! Já não se pode tomar banho nu? A sociedade está cada vez pior, mais hipocritamente puritana... Mais persecutória. — Tentou esquivar-se à incidência do foco, mas debalde, o círculo de luminosidade acompanhou-lhe o movimento. Deu dois passos para dentro de água e o foco começou a circundá-lo, compassadamente, a divertir-se com a perturbação dele, terminando a iluminar-lhe a cabeça e depois baixando-lhe sobre o sexo e ficando aí, como seduzido, com nada, porque o dito estava enrugado e inexpressivo.

Resolveu ir vestir-se. Ergueu os braços, como se pedisse tréguas e caminhou vagaroso até à areia seca, encandeado e trôpego. E a lanterna apagou-se. Por segundos não logrou distinguir o que quer que fosse à sua frente, mas ouviu um motor a arrancar, com um forte golpe de acelerador. — Ladrões!... Pilharam-me as roupas e ainda me gozaram! — Desatou a correr em direcção ao carro, gesticulando e gritando: — Por favor, dêem-me as roupas! Dêem-me as roupas, seus malandros!

O veículo não se deslocara de onde estava estacionado, mas o foco de luz reacendeu-se e, manobrado por um vulto feminino a dois ou três metros do local, dava a ideia de querer certificar-se que ele era alguém conhecido. Aproximou-se mais, as mãos a cobrirem o sexo, embaraçado, e reconheceu Teresa!
— Caramba! Esperava tudo menos dar contigo aqui, a tomares banho em pelota!... Ah! Ah! Ah!... Joca! Que feliz encontro!
— Olá, Teresa! Pregaste-me um susto! Mas estou contente por te ver.
— Vai buscar as tuas roupas, que eu empresto-te uma toalha para te secares. Depois conversaremos, no meu carro. Vai!

— Só me faltava esta! Agora que eu adormeceria como um anjo, a Teresa vem estragar-me a noite. — resmungou Joca, mal desandou para ir apanhar as suas coisas. À vinda já tinha o corpo quase seco e envergara as bermudas por uma questão de pudor. Mas aceitou a toalha que ela lhe estendeu através da janela do jipe e passou-a pelo corpo para corresponder à sua prestabilidade. Estava sentada não no banco do condutor mas no do lado e convidou-o a entrar, acenando-lhe com a cabeça repleta de madeixas de cabelo encaracolado e escuro. Deu a volta às traseiras do carro, abriu a porta, ainda hesitante, e alçou-se para detrás do volante. Excepcionalmente, apetecia-lhe fumar um cigarro.
— Arranjas-me um cigarro, Teresa? — Ela apontou-lhe o maço pousado junto do vidro do pára-brisas, inclinou-se um pouquinho chegando à manete das luzes e torcendo-a desligou os faróis. Ali dentro ficou quase escuridão, mas dava para perceber que ela já estava a reclinar bem para trás o seu assento. E passou-lhe o braço em volta dos ombros para alcançar o manípulo e abrir a janela do lado dele. Preferiu então accionar ele próprio o mecanismo, do que tê-la a escorregar-lhe para cima, num contacto que, embora não desagradável, ele temia instintivamente.

Pegou num cigarro e acendeu-o. E o clarãozito do isqueiro permitiu-lhe vislumbrar Teresa estirada no banco, mãos sob a cabeça, absolutamente descontraída. Mas apagou-se o isqueiro e a imagem voltou a desaparecer na escuridão. Num gesto impulsivo, que poderia ser interpretado como gentileza, resolveu oferecer-lhe o cigarro a ela e os lábios de Teresa foram buscar-lho aos dedos e imediatamente chuparam uma fumaça prolongada que quando foi expelida continha misturado um enleado agradecimento: — Obrigada, querido... — que ele escutou inquieto, enquanto acendia outro cigarro para si e aproveitava mais um pequeno momento da luz azulada do isqueiro para ver sem dúvida que ela despira o top e a saia e ficara em biquíni às risquinhas em branco e rosa, pequenino, a revelar-lhe as formas interessantes e bem desenhadas que ele um dia, na ausência momentânea de Irene, tentara adivinhar-lhe mentalmente, por simples exercício estético.
— Então tu deixaste a Irene... E fizeste muito bem. Sempre achei que tu merecias uma rapariga que não te sufocasse a vida, e a Irene ainda por cima não era de confiar, como se viu, aliás.
— Ela é que me deixou, Teresa.
— Ah, sim! Mas foi ela própria que me disse o contrário!... que tinhas descoberto a aventura dela com o outro e, naturalmente, a largaras.
— Tudo errado... mas isso já não me interessa para nada.
— Não estou a compreender... mas que a Irene quis assumir as culpas todas, isso pareceu-me. Tu, também já não estavas apaixonado por ela...
— Achas?
— Para o fim, quantas vezes é que eu te apanhei a mirar-me com ar sonhador, Joca? Pena, porque escolhias sempre as alturas em que eu andava com companhia, e eu fui dizendo para mim mesma, sorrindo-me das tuas sonsas olhadelas: — Um dia... um dia. — Talvez melhor dissesse: — Uma noite, na praia... 
— Teresa, se alguma vez reparei em ti com inoportuno interesse, podes crer que foi inadvertidamente... Aliás, tu és uma mulher bonita e naturalmente prendes a atenção de qualquer homem mesmo sem ele dar conta disso. Mas eu nunca fui infiel a ela, em todo o sentido.
— Estás melhor assim... livre! E confessando achares-me uma mulher bonita!
— Só se não tivesse olhos é que não veria isso.
— Se não tivesses olhos, deixava que me tocasses inteirinha com as mãos, para fundamentares o teu galanteio. — desafiou ela, soerguendo-se para atirar a ponta do cigarro pela janela e depois voltando a deitar-se no assento estofado, agora quase de costas para Joca, joelhos encolhidos contra a porta do carro, braços metidos entre as pernas, dorso langoroso e delgado.

Aquela posição do corpo de Teresa era fascinante. As retinas dele, já adaptadas à obscuridade, percebiam-lhe os dedos e as plantas dos pés e os tornozelos, muito feminis, o rabo quase nu, que o pequeno triângulo de risquinhas inclinadas brancas e rosa mostrava curvilíneo e impudico, a cinta elegantemente quebrada, as costas onde mal sobressaíam os cordões atados do sutiã do biquíni, apetecíveis de beijar um por um os nós da coluna, arfando lentos instantes de expectativa, a cabeleira frisada onde as mãos se poderiam embrenhar carinhosamente... E ele — ainda saudoso de Irene? Ou ainda incomodado, por causa de Marlene? — sem reacção!

De súbito Teresa girou sobre si própria, esgueirando-se habilmente sob o volante e surgindo em cima de Joca, ridente, a abraçá-lo e a procurar-lhe a boca, rejeitando a timidez que já não teria razão de ser entre eles. Estupefacção! O falo de Joca conservava-se fenecido, tal como se fosse pertença de alguém impotente!
— Que é que te aconteceu, Joca? A Irene comeu o teu passarinho?... Não te zangues por perguntar... foi por causa disso que ela te deixou?... Mas o que é que te aconteceu? O que foi? Pois se ela uma ocasião até me confidenciou que na cama tu a punhas maluca e derreada! Diz, Joca... talvez eu possa ajudar-te.
— Desculpa-me, Teresa, por favor...
— Ora! De facto, por muitas razões, não és obrigado a sentir-te excitado com a minha audácia.
— Nada! Isto não tem a ver contigo, que és uma mulher muito bonita e desejável. Eu é que estou extremamente cansado, hoje. Desculpa-me!
— Queres ajuda?... Conheço uns produtos que te põem rijo num instante... A sério!
— Obrigado, Teresa. Isto é apenas cansaço e má disposição passageira. Desculpa! Vou para casa, dormir.
— Queres que vá contigo, Joca?
— Não, menina... Fica para outra ocasião, está bem? Hoje já nem Afrodite me punha de pé, acredita Teresa. Perdoa-me a frustração. Adeus. Tem uma boa noite!
Maldição! Acostumara-se aos efeitos estimulantes dos afrodisíacos, e depois de os usar ficava esgotado e abúlico. E o fracasso acontecera logo com Teresa, uma mulher exemplar para mudar de vida. Perdera tão excelente oportunidade! Bonita, romântica, liberal, preparada para não o sufocar, de certeza deliciosa, e de momento sem sequer lhe pedir cómodo leito, que ele não poderia dar-lho tendo Marlene esventrada no apartamento. Triste!

Foi para casa. Directo à cozinha, apanhar uma cerveja e bebê-la com sofreguidão, como se se tratasse de contraveneno para a sua incapacidade, mesmo às escuras, tacteando e passando com segurança entre os móveis. O acender da lâmpada interna do frigorífico distraiu-o da lamúria que lhe ia na cabeça. Pela fresta da porta do quarto passava uma ténue reverberação luminosa. Recordou-se que não apagara a pequena luz de vigilância, como última homenagem a Marlene. Decidiu terminar o serviço, pois na sua mente persistia como um refrão de urgência: “— Teresa... Que oportunidade!”

Abriu a porta de mansinho e acercou-se do leito. Estranhamente, Marlene parecia recuperada! O pescoço dela encolhera, de facto, e um fio violáceo escorrera para o lençol e fizera uma mancha, já seca. E ao lado de cada perna havia outras nódoas escurecidas. Mas o vulto em si não estava como ele planeara, contorcido, irreconhecível, estropiado. Material moderno! Feito por secções estanques e algumas partes, como o tronco, auto-insufláveis... Tornar-se-lhe-ia mais custoso esvaziá-la toda, abrindo válvula a válvula. Atitude catártica? Pobre e inocente Marlene.

Estacou! Estava tolo! Ora! Se morresse, acabava-se, era uma vez o Joca... Em regozijo, e muito ansioso, decidiu emborcar nova dose do revigorante instantâneo. E de seguida, entusiasmado, apressou-se para a praia com a esperança de ainda lá encontrar Teresa: — Que bela oportunidade para mudar de vida!

Raio de noite!  Ou, raio de má sorte... Teresa já se foi embora. Por que não a deixei ajudar-me? — resmungou ele, desolado, quando já não encontrou o jipe estacionado no areal. Arriscara-se demasiado, tomando aquela dose excessiva de afrodisíaco, sujeitando-se porventura a um ataque de euforia com consequências absurdas, para nada! E estava tão irritado e nervoso que tinha vontade de se meter de novo à água e extenuar-se em luta com as ondas do mar.

Trepou para o seu poiso, sentou-se, e começou a tremer, descontrolado. Pusera-se vento, quente e poeirento, e nuvens baixas, que provavelmente se desfariam em pesado aguaceiro, pareciam correr-lhe ameaçadoramente por cima da cabeça. A febre subia-lhe e uma agonia, ora vai ora vem, arruinava-lhe toda a presença de espírito. Se dormisse um pouco, talvez melhorasse. Agachou-se encostado à rocha, tentado abrigar-se numa solidão impenetrável. Mudar de vida!... Bom propósito, mas... Então não acabara de perder a oportunidade!

Entretecida com o ruído das vagas, uma constante zoeira íntima aturdia-o ainda mais. E quando lhe chegou aos ouvidos o roncar longínquo do motor de um carro, imaginando que era delírio não lhe quis atribuir significado e nem sequer perscrutou a estrada. Quase maré alta e ele ali não estava seguro. Levantou-se, tão tonto que não conseguia equilibrar-se, e ainda pensou: — Se caio daqui abaixo, mudo mesmo de vida... Tanto também não! Merda para as mulheres!... Não, não! Elas não têm culpa, eu é que sou maluco. — Ganhou novo fôlego e gatinhando agarrado à aspereza dos penedos, olhos quase cerrados para trazer ao de cima toda a memória daqueles sítios, começou a afastar-se do perigo maior.

Já a salvo, inesperadamente tudo serenou. Vento, mar, e sobretudo a cabeça dele. Então filosofou: — O que custa a passar é sempre o primeiro choque... Foi pena que Teresa... — E arregalou os olhos, quase incrédulo, porque o jipe de Teresa afinal estava lá! Ela deveria ter dado uma volta pelas redondezas e regressara. Era uma forma mal recortada na sombra da noite, mas sem dúvida que era real. Uma alegria inesperada deu-lhe ânimo. Rapidamente logrou atingir o areal, e dirigiu-se para o veículo, acenando todo contente. Quando se lembrou que ela bem poderia estar ali mas já acompanhada, tartamudeou algo irritado: — Que se dane! Quero-a!
Debruçada sobre o volante, Teresa estava sozinha mas não o recebeu com entusiasmo idêntico ao que ele agora sentia. Joca achou natural que ela estranhasse um tipo de exuberância que não lhe conhecia.
— Então, Joca? Voltaste! Estás bem?
— Estou óptimo. Achei que estava a ser estúpido, desperdiçando a tua companhia.
— Entra, se queres.
— Quero sim. Vim para estar contigo. Não me ofereceste ajuda?
— Claro! Mas há pouco estavas tão abatido... Recompuseste-te depressa!
— Bastou-me tomar uns sais e recordar-me de ti. E raciocinar que fui muito indelicado por não ter admitido que já te desejei algumas vezes. Tu sabes bem que é a verdade.
— Acredito. Mas nada me impede de adivinhar que não foram as risquinhas brancas e rosa do meu biquíni que te fizeram voltar aqui.
— O quê! Esses dois pedacitos de pano? E então tudo o resto?... — sussurrou Joca, puxando-a para si e beijando-a sofregamente.

Alguma coisa estava muito errada com Joca, o que intimidou Teresa, que mesmo assim lhe correspondeu ao arroubo. Ele falara com sedução e abraçara-a e beijara-a com vivacidade, mas desejo mesmo, excitação do sexo, não lhe via. As mãos dele acariciavam-lhe o corpo, com ousadia, a boca húmida e febril percorria-a, provocadoramente, mas não lhe notava excitação eréctil, virilidade que a possuísse, nada! Era como se Joca estivesse partido em dois. Da cintura para cima, activo, e para baixo, frouxo. E a cabeça dele! Que desatino a turbaria?... Primeiro tentou colaborar. As suas mãos apelaram a tudo que o poderia estimular. Debalde. Por fim desistiu. Que parva! Se ele não era capaz, é porque ela não era suficientemente atractiva para ele, ou talvez porque ele ainda estaria enfeitiçado pela Irene. Ou seria realmente impotente? Procurou apaziguá-lo. A situação incomodava-a. Deu um pequeno grito, como se tivesse batido um cotovelo contra qualquer coisa, magoando-se, e isso serviu-lhe de pretexto para se apartar e suspender o envolvimento. Sem sinal de troça, e muito menos de desprezo, fitou-o e depois o seu olhar fixou-se, quase sem ela querer, na nulidade que ele mostrava entre as pernas. — Estás impotente, Joca?! — perguntou com inocência.
Escutou-lhe um gemido de ira, observou-o a sair repentinamente, caindo à areia, viu-o passar, cambaleando, diante do jipe, abrir a porta do lado dela, esgazeado, sentiu-o arrancá-la do lugar e ainda percebeu a mão dele, implacável, armada de um calhau, baixar-lhe sobre a cabeça, numa explosão brutal.

Joca bateu, três, quatro, cinco vezes, intolerante, selvático, espalhando em redor bocados de carne, punhados de cabelo, lascas de crânio, sangue, imprecações, pedaços de Teresa, farrapos da alma de Irene, e da sua própria. Obstara à infâmia.

Agora estava de novo instalado no seu sítio mais protegido entre as rochas. Triste e em desassossego. Arrastara o corpo de Teresa para a borda da água e de momento embalava-se na ansiedade de ver uma onda mais poderosa levá-lo definitivamente com a maré. E enquanto aguardava ia repetindo, em absoluta frustração: — Mudar de vida! Mudar de vida! Mudar de vida!...

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segunda-feira, outubro 29, 2012 - 18:28

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Nuno Lago

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