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NAS ÁGUAS DO PARAOPEBA
O carro de bois, vazio nesse instante, vai atravessar o Rio Paraopeba de águas turvas. Acima das cabeças, as folhas e galhos das árvores ciliares. A sombra salutar. Zé do Buteco abaixa a sua cabeça, arrumando seu velho boné de soldado do Exército. Abana a mão dando sinais aos seus companheiros em procura do melhor trajeto, e na outra mão segura firme sua vara de ferrão.
Ele gosta de tudo de primeira. Espetacular esteira nova e firme nas bem traçadas taquaras. Bons lisos fueiros. Canzis feitos com o melhor pau do cerrado! Os couros, utilizados para fazer os azoios e o tamoeiro, que foram trocados; agora novinhos, e não aqueles puídos pelo tempo. Bois babando no barulho. Muitos deles com chifres, esses bem limados, com argolas. Os nomes foram escolhidos e dados por ele mesmo, Zé do Buteco. Ele elogia, com verossimilhança, que seus bois são os melhores daquelas redondezas e o carro de bois uma beleza só!
Seu Esteves viaja longe à cata de bois iguais para compor o carro, de norma que os bois pareados em junta, obedecendo às cores. E outros carreiros, invejosos ou não, ineptos sim, dizem que atravessar o milho todo naquele rio num carro de bois... somente ele mesmo!... Ninguém é, a não ser Zé do Buteco, capaz dessa façanha.
São quatro juntas, escolhidas a dedo: Rio Grande & Rio Novo, mansos, mesmo assim amarrados com o azoio, ou soga, em suas argolas nos chifres, muito bons de canga e de comando e obedientes na direção vão na dianteira e à frente deles o guia. Este sabe bem que não corre risco de ser ofendido de chifradas; Laranjo & Sereno: são mansos e ladinos em estradas acidentadas ou escorregadias; Chorão & Chumbado: bois mouros e fortes. O Chorão é metido a distribuir chifradas, o batedor, também nos olhos seus sempre escorrendo lágrimas, e Chumbado, boi pesado e lento, vão no meio das juntas; Charango & Mourão: bois de imensa força e espertos – Mourão vale por muitos outros bois juntos –, vão no pé-de-guia.
Os bois sem argolas nos chifres são colocados entre as juntas e sem os azoios; livres, sem muita obediência, podem bater em outros bois, obtendo mais saídez e adiantamento no trabalho.
Na barranca do rio o carro de bois desce sem maiores problemas, na praia enormes sulcos de pés de bois e das rodas de madeira e ferro. Nesse ínterim, Zé do Buteco solta um grito, ao qual até mesmo os bois obedecem, e o porquê do alarde: sem razão aparente alguma – desnecessário. Ali perto, nas casas da linha ferroviária, moram mulheres maravilhosas...
– “Só mesmo querendo aparecer...eta ferro...”
Na estrada, vencida, o carro de bois vai buscando a beira do rio, aquele lugar que se trafega na fresca da sombra das árvores. O néctar das flores destas, misturado pela ação da poeira levantada, espalha no ar um perfume sublime, naquela manhã de recém-nascido sol. As abelhas, tantas, voam zunindo sobre a poeira e os meninos atentos ao carro de bois, alguns trepam na mesa do carro se apoiando nos fueiros, e outros correm querendo pegar xepa, e uma vez conseguido o apoio necessário das mãos firmes, se encostam na esteira nova de cheiro bom. E eles se deixam cair na estrada só mesmo para depois fazerem o mesmo. O rodízio se fecha com os meninos ágeis aperfeiçoando como pegar carro de bois andando. E assim seguem em direção ao eito.
Zé do Buteco de pose estudada, ereto, no cabeçalho, de propósito, conduz o carro e o faz seguir ligeiro e em seguida quase parando-o. Ele primeiro repara e depois acena para Gugulim com um sorriso largo, de olho em todos. O canto do carro é produzido e também premeditado, quando o tio, além de apertar o cocão, lambuza a chumaceira onde move o eixo da roda de madeira cravada de ferro, com trampa de boi fresca, utilizando as próprias mãos pois não há o chumaço, porque acabou o óleo de mamona. Por acaso evita que o carro de bois pegue fogo. Qualquer malfeito é o bastante, pra Zé do Buteco soltar um grito: “excumungado!” E o carro de bois canta, mesmo sem sinal de peso, porque ele apeou e deu volta e aproximou da roda e apertou bem mais o cocão, apertando ainda mais as cunhas, só mesmo de mamparra e sinagoga, colocando nos mancais pedaços de carvão tirados do fogão de cozinha. Assim é o canto desafinado que se pode ouvir de muito longe. Seu Esteves nota muito bem essas peripécias e não deixa de ralhar na janela do seu quarto, mas já está longe aquele canto, deixando para trás a fazenda. Assim na formalidade, às vezes quebrada, o carro segue indo à roça para trazer os frutos da lavoura. Mas antes deve atravessar o rio.
Na margem deste Zé do Buteco o observa mirando sua calha, e com voz grossa, mas tranqüila, avisa aos meninos que o rio, hoje, está acima do nível e, portanto, muito perigoso para os pequenos. Melhor não irem, diz a eles para não entrar dentro d’água, ele acredita piamente nisso e que ninguém irá desobedecê-lo.
Como carreiro Zé do Buteco saiu do comando e caminha rumo à praia acima indo em direção a uma moita. De lá saiu somente de samba canção e, agora, como guiador dos bois, dentro d’água, tomando posse de uma vara de ferrão maior. Mergulhou-se, então, nas águas cor de ferro. Nadando e guiando bravamente as juntas de bois. A força da corrente d’água, adquirida pelo seu volume, traçava um itinerário diferente. A impressão que se tinha era que o carro e os bois, tudo iria a qualquer momento virar a favor da fúria da corrente fluvial. O carro leve em ziguezague quase foi arrastado. Os bois firmes nadando, mostrando suas cabeças e o carro de bois meio flutuando, de mostra só sua esteira, mas controlado pelo guia que, nadando, realiza trabalho perfeito. E em cima do carro os empregados, seguros, sem brincadeiras, sérios, mantinham o equilíbrio do carro, pulando de um lado para o outro, na tentativa de manter o traçado normal da travessia, sem que o carro com os bois virassem. Mesmo saindo da trajetória, o carro deveria chegar no porto, de pedras firmes, do Outro-Lado-do-Rio.
Zé do Buteco sabe muito bem que atravessar o rio com o carro de bois leve é mais difícil que ele totalmente pesado, porque pesado o carro tem atrito poderoso no chão das águas. Porque a própria tração da força exercida pelos bois em equilíbrio com a força da correnteza, irada, faz com que o carro só então siga o caminho certo. Assim os bois não podem deixar de nadar; em nenhum momento, e mostram só suas cabeças, até alcançarem a margem. Zé do Buteco lança fortes braçadas na correnteza e sobe no carro, manobrando e gritando sem trégua, entusiasmando os bois para chegarem ao fim!
Tudo isto sendo observado pelos irmãos Mmamaú, Gugulim, Pilão e Meleão na praia do rio. Sendo que o segundo, com muito medo, no fundo torcia para que nada pudesse acontecer, alguma coisa de ruim com o carro de bois e, obviamente, com as pessoas. Ele admira o seu tio padrinho, o mais valente de todos.
Enquanto o carro de bois não volta cheio de milho, eles ficam brincando na praia, fazendo hora, escolhendo a pedrinhas redondas para depois atirá-las na superfície d’água praticando patins, em disputa:
– Fiz um, fiz dois, fiz três, fiz quatro... Só?!
Nesse tempo do Outro-Lado-do-Rio, o carro de bois de volta, apontando logo depois das árvores; primeiro, ao longe, no invisível, já se ouve o seu canto pesado, estridente. Zé do Buteco agora afrouxou bastante o cocão, que gira em torno do eixo. Ele, nesse instante, a nado, habilmente reatravessando o rio, cumpre sua tarefa de transportar o milho na época propícia. Logo depois está em cima do carro caminha além do cabeçalho, atrás todo o volume da carga protegida com a esteira, no meio dos bois e quase atinge a chavelha com seus pés.
Mas primeiro Zé do Buteco, no porto do Paraopeba, feito por ele mesmo, prepara as três juntas de bois, tirando-as do cambão, das fortes correntes, para segurar a carga do carro que é a de milho. Cheio. Deixando na frente do carro apenas a junta do pé-de-guia: Charango & Mourão, estes fortes, e as três outras foram levadas para trás, na traseira engatadas na argola da corda que é de ferro situada abaixo da mesa do carro de bois, onde engata o gancho da corrente e esta no gancho da abraçadeira da canga dos bois do pé-de-guia. A bem dizer a argola da corda engatada na corrente serve normalmente para puxar troncos e madeiras. De modo que Zé do Buteco guia, as três juntas de bois atrás do carro, devagar, com muito cuidado e em segurança atingir a margem do rio. Sem esse procedimento o carro de bois corre sério risco de prejuízos de perder toda a mercadoria e até as vidas. Ele pesado, desse jeito, tem de ser segurado por essas juntas de bois por atrás. Em caso contrário, nesse declive acentuado do porto, as rodas do carro e os bois escorregam jogando tudo quanto há dentro d’água.
Quando atinge o rio, o carro já no raso, com a junta de bois Charango & Mourão na frente e as outras três juntas atrás do carro, é preciso refazer o normal do carro de bois. Na calha do rio Zé do Buteco, então, conduz as três juntas de volta à frente do carro, encamboando-as, sem muita dificuldade, já com o seu corpo todo molhado de novo. Finalmente essas juntas ligadas a junta do pé-de-guia, esta continua firme no tamoeiro – correias de couro que engatam na canga dos bois, sendo a primeira junta que é ligada pelo cambão – que são as fortes correntes –, a outras juntas e assim por diante, voltando o carro a ser como era desde o início. As juntas de bois que estavam atrás agora estão na frente enfrentando águas. Mas ele, Zé do Buteco, tem ajuda de guias de fato que estão dando ação: Isidoro, Leco, Mirolando, Luiz e outros carregadores de balaios. No caminho de volta, já na estrada, abaixo da linha de ferro, o eixo do carro de bois aos poucos vai esquentando. Basta secar um pouco e o canto agudo, mascado, torna-se grave até atingir o seu canto estridente, original. As mulheres da cozinha quando ouvem de longe o canto de agudo pra grave do carro de bois, canto arrastado, se apressam no avanço das panelas no fogão de lenha.
Seu Esteves, da janela de seu quarto, ruborizado e esbraveja, não acredita, enche os meninos com suas palavras iradas, ao avistá-los deitados sobre as espigas de milho, ainda molhadas, refletidas pelos raios do sol. Já é quase hora do almoço. Assim o carro de bois entra pelo curral da fazenda e esbarrara de cantar de vez. A porteira bateu... O milho secando... E o movimento dos homens.
&&&&
TRECHO DO LIVRO: UM CARRO DE BOIS QUE TRANSPORTAVA LOGOS, EDIÇÃO DO AUTOR, P. 67. 2004 - BELO HORIZONTE - MINAS GERAIS.
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Comentários
Re: NAS ÁGUAS DO PARAOPEBA
Parabéns pelo belo texto.
Gostei.
Um abraço,
REF