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O Puchirão do Gé Picaço – Poemeto Serrano – Resposta Literária a Antônio Chimango – Poemeto Gaúcho

Paulo Monteiro

Odilon Garcez Ayres é autor de dois livros “Oché Y Sepé Tiarayú”, romance (Passo Fundo: Méritos Editora, 2006) e do ensaio “Caboclo Serrano em O Puchirão do Gé Picaço nas Revoluções de 1923, 20 e 32” (Passo Fundo: Méritos Editora, 2008). Este segundo livro é quase um romance.
Um jovem que, pela Avenida Brasil, em direção ao dirige ao trabalho encontra uma caixa com livros antigos abandonados na calçada. Impossibilitado de recolher todos, pega um poema, intrigado com o título: O Puchirão do Gé Picaço. Durante muito tempo lê e relê o pequeno volume.
Aos poucos, durante anos, vai levantando a história do poema e dos personagens. Descobre homens que fizeram a história de Passo Fundo, mas não deixaram história pessoal. Odilon Garcez Ayres, com preserverança, começa a reconstituir essa história. O resultado dessas pesquisas é quase um romance e está no seu segundo livro.
A investigação da autoria de “O Puchirão do Gé Picaço – Poemeto Serrano, leva à identificação de Júlio Simão, pseudônimo do advogado e jornalista Francisco de Paula Lacerda Almeida Júnior. Encontra essas informações nas velhas páginas de O Nacional. Ali identifica o personagem Cacimbinha, na pessoa de Ney de Lima Costa, advogado, dentista e empresário. Outros personagens acabam identidificados. Polito é o médico José Apolito, chefe político em Pinheiro Machado, e depois médico em Marau, Tapejara e Nonoai; Ferguêra é o médico e político Nicolau de Araújo Vergueiro.
Ney de Lima Costa e Francisco de Paula Lacerda de Almeida Júnior, hoje completamente esquecidos, foram pessoas importantes na história passo-fundense no período marcado pelas três últimas revoluções rio-grandenses: 1923, 1930 e 1932. Lacerda de Almeida Júnior era um intelectual conhecido nos grandes centros brasileiros. Tanto isso é verdade Tanto que no dia 2 de outubro de 1908, o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, relaciona o seu nome entre dezenas de personalidades presentes ao sepultamento de Machado de Assis, presidente da Academia Brasileira de Letras e o maior escritor brasileiro.
Aqui chegou com maré revolucionária de 1923, tanto que no mês de dezembro de 1922, seu nome aparece, na então Capital da República, como um dos dois redatores do último número conhecido de Arauto: pamphleto político. É provável que seja o mesmo correspondente de guerra enviado por um grande jornal paulista e que assombrava a caboclada redigindo seus boletins numa máquina portátil de escrever. Daqui saiu para local incerto, passada a Revolução de 32. Largou tudo. Seus bens foram leiloados em hasta pública. Autor de “contos e novelas” é provável que ele próprio tenha sido sua melhor criação literária.
Em Passo Fundo, escreveu e publicou O Puchirão do Gé Picaço em 1925. Exatamente dez anos antes, também num átimo de tempo, o médico e político Ramiro Fortes de Barcelos, sob o pseudônimo de Amaro Juvenal, escrevera e dera a lume Antônio Chimango - Poemeto Campestre. O poema de Lacerda de Almeida Júnior leva o subtítulo de Poemeto Serrano.
Pouco estudado pelos críticos literários, o subgênero “resposta” é uma realidade incontestável. Há obras que são uma resposta a outras. Resposta é uma obra que desenvolve o tema de uma anterior, em outro ambiente ou em outro tempo e com outras personagens. O Puchirão do Gé Picaço – Poemeto Serrano é uma resposta ao Poemeto Gaúcho – Antônio Chimango. Mostra que o “biriba”, isto é o serrano, e o gaúcho guardam diferenças fundamentais, das quais, em 1925, Francisco de Paula Lacerda de Almeida Júnior tinha consciência, segundo registra nas primeiras páginas do poema.
Enquanto resposta literária, o Poemeto Serrano consiste na demonstração das dessemelhanças históricas, raciais e lingüísticas entre os homens da Serra e da Campanha. Mostra a aculturação dos imigrantes através dos repentistas Pepe Marula e Fritis Rammenbrais, de Cochinho, hoje Victor Graeff.
No espaço de um único município (Passo Fundo), para as bandas do Marau, se reúnem trabalhadores de diferentes etnias (caboclos, com sangues de paulista, índio e negro, italianos e alemães), solidários com o Gé (Zé, sinônimo de qualquer cidadão comum) Picaço (que dá a idéia de mistura de uma cor mais escura e outra mais clara). A Solidariedade se manifesta através de um puchirão – e não mutirão como se costuma dizer, num português pretensamente correto.
Ali, à noite, onde não existe apenas um ou dois, mas vários repentistas, um deles, Chico Faria, promete contar em três noites a história do Cacimbinha. Esse era o apelido de Ney de Lima Costa, primeiro intendente de Pinheiro Machado, cujo nome anterior era Cacimbinhas, alterado pelo “intendente Provisório”, para bajular Sebastião Pinheiro Machado, vice-presidente do Estado no exercício da presidência. O presidente interno era irmão do senador há pouco assassinado.
O metro é o mesmo do Antônio Chimango, a redondilha maior; a quantidade final de versos é praticamente a mesma; o esquema rimático é diferente. Não é mais a “sextilha payadoresca”, apresentando as rimas no esquema ABBCCB, como no Martín Fierro do José Hernández. Júlio Simão emprega a velha quadra popular, num esquema bastante raro (ABBA) e sextilhas em ABBACC. A linguagem dos poemas também é radicalmente diferente: O Puchirão do Gé Picaço está muito próximo dos poemas sertanejos de Catulo da Paixão Cearense, à época extremamente populares.
As aproximações entre Cacimbinha e Antônio Chimango são muitas. Tio Lautério e Júlio Simão usam um “instormento” para acompanhar-lhes na biografia de seus personagens. Tio Lautério principia assim sua narração: “Para les contar a vida” e Júlio Simão desta maneira: “Para lês contar a história”. Ambos, Antônio Augusto Borges de Medeiros e Ney de Lima Costa, nasceram fracos, e durante seus nascimentos foram profetizadas as safadezas que futuramente cometeriam. Os dois tiveram sérias dificuldades de aprendizagem. Tanto um quanto outro progrediram às custas de bajulação aos líderes positivistas e traição aos antigos companheiros. Ambos foram comparados a pequenas aves de rapina. Borges de Medeiros era o Chimango, pequeno falconídeo que tem o nome científico de Ibyter Chimango; Ney de Lima Costa é o Caburé, uma coruja menor, da família das Bubônidas, cujo nome científico é Glaucidium Brasilianum Gm. Caburé, também é o nome que se dá ao mestiço tirado a caboclo.
O poeta Júlio Simão conserva a felonia do jornalista Lacerda de Almeida Júnior e de tal sorte que insiste na homossexualidade de Ney de Lima Costa, que teria sido expulso da Escola Militar de Porto Alegre pela prática da sodomia.
Nos poemas mais longos, os poetas costumam pedir inspiração às musas e as divindades. Camões, em Os Lusíadas, invoca as Tágides. A invocação de José Hernández, em Martín Fierro, começa com os seguintes versos:
Pido a los Santos del Cielo
Que ayuden mi pensamiento,
Les pido en este momento
Que voy a cantar mi historia
Me refresquen la memória
Y aclaren mi entendimiento”.
A invocação de Júlio Simão tem o seguinte começo:
Santos do céu, Santo Onofre!
Que seje, que nem um cofre,
Este meu miolo tonto...
Alimpae minha memória,
Pois quero contar a história

Dessa função memorave,
Que durô uns par de dia...
E a seguir convoca Chico Faria para que deixe suas trovas escritas, que constituirão a história de Cacimbinha.
Tenho salientado, ao longo de diversos textos publicados em jornais, revistas e no próprio livro 150 Momentos Mais Importantes da História de Passo Fundo, as profundas diferenças entre os birivas rio-grandenses e os homens da Fronteira. Essas diferenças são históricas e ancestrais. Durante a Revolução Farroupilha a grande maioria dos serranos acabou fiel ao Império, pois seus interesses e sua origem eram diferentes dos interesses e das origens dos homens da Campanha. Essas distinções continuaram durante a Revolução Federalista, e de tal maneira que o último pedido de Gomercindo Saraiva foi para que Aparício Saraiva se separasse do Exército Libertador Serrano, comandado por Prestes Guimarães e Dinarte Dornelles. Ainda hoje essas duas regiões do Estado apresentam aspectos culturais e lingüísticos bastante significativos.
A narração da história do Cacimbinha é interrompida na segunda noite por um entrevero de choto. O choto mais do que sinônimo de facão é um tipo de esgrima (conhecida como Jogo de Choto), que tive a oportunidade de aprender na infância. E já encontrei pelo menos outro iniciado nesse tipo de luta, meu confrade no Instituto Histórico de Passo Fundo, Daltro José Wesp.
A história do Grupo de Danças Gauchescas General Prestes Guimarães, que Odilon resgata, em seu livro é sintomática. Enquanto os federalistas serranos usavam lenço vermelho, os dançarinos de 1927 ostentavam vistosos lenços brancos. As bailarinas apresentavam uma indumentária praticamente caipira: saias longas, blusa, lenço (“turbante”), à cabeça. As danças da época eram a quadrilha, o chote de carreirinha, a polca de relação e o pericon, ensinado pelo santanense Celestino Brock. No mais, como se depreende da leitura dos jornais da época, as bailantas daqueles dias estavam muito mais próximos de um baile caipira do que de um autêntico fandango do gauchismo de hoje.
O gauchismo – e existem milhares de estudos que o comprovam – é uma “cultura inventada” nos últimos sessenta anos. Por isso é que os tradicionalistas brigam tanto sobre o que é ou não é autenticamente gauchesco. Cada discussão sobre a autenticidade deste ou daquele assunto é uma comprovação da máxima popular “Quem conta um conto aumenta um ponto”. Verdadeiro conto cultural da Carochinha, cada um, ao recontar o caso, acrescenta o ponto que quiser.
As causas que levaram à escrita de “O Puchirão do Gé Picaço – Poemeto Serrano” acabam de receber aclaramento com o estudo que tive a oportunidade de fazer lendo outro livro importantíssimo, lançado uma semana antes da obra de Odilon Garcez Ayres. Em “Páginas da Belle Époque Passo-Fundense”, de Heleno Alberto Damian e Marco Antonio Damian vemos que animosidades da Revolução de 23 e disputas econômicas, especialmente quanto aos cinemas que começavam a funcionar em Passo Fundo, envolvendo o coronel Cacimbinhas e o capitão Pedro dos Santos, estão na origem da sátira implacável.
Odilon Garcez Ayres, apenas fez brilhar uma brasa no fogão serrano. Outros, como Heleno e Marco Damian, assoprando aqui, assoprando ali, começam a lançar claridade sobre a história escondida de Passo Fundo. Depois de “Caboclo Serrano em O Puchirão do Gé Picaço nas Revoluções de 1923, 30 e 32”, muitos sabidos terão de rever suas idéias sobre a história do Rio Grande do Sul, sob pena de passarem um atestado de analfabetismo cultural ou pura e simples imbecilidade.

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domingo, fevereiro 8, 2009 - 20:30
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