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OS GÉMEOS - 1 - Céline


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O silêncio no gabinete adquirira uma densidade espessa. William, de súbito, fez ecoar uma série de estalinhos ao torcer as articulações dos dedos entrelaçados sob o queixo. Passado o efeito intimamente ruidoso daquele gesto que lhe era peculiar, abandonou com lentidão a atitude relaxada do seu corpo reclinado na cadeira e retirou os pés de cima da secretária, ao mesmo tempo que despendurava com cuidado, do bolso da bata, os óculos dourados de meios aros e os encavalitava na ponta do nariz.

Estava hesitante entre começar a examinar a agenda do dia, que a diligente Louise bem cedo lhe colocara em destaque sobre a mesa, reatar a leitura do relatório da Associação Americana para o Avanço da Ciência — pela afirmação, reencontrada há momentos, de que a ciência cria uma forma de respeito inteligente pela Natureza que deveria estar presente nas decisões acerca do uso da tecnologia, para não se correr o risco de destruir por imprudência o nosso sistema de apoio à vida — ou continuar a ambientar-se às condições do aposento. Recordações despropositadas — porque tinham o perfume perturbador de Madeleine — pairavam-lhe no espírito, agravando a indecisão.

À sua volta, o azulado da luminosidade do meio da manhã era algo quase tão palpável como as luxuosas peças do mobiliário ou a beleza imprecisa dos arabescos da alcatifa, a condizerem com o acetinado viçoso da folhagem que James mandara colocar sob os pequenos Modigliani que decoravam os escassos espaços de parede, tão poucos no semicírculo de amplas janelas que definiam a sala.

Deixara-o organizar tudo como bem entendesse e agora tinha ali um gabinete de Director-geral. Não devia queixar-se. Era confortável e havia de habituar-se-lhe... Um cientista não tem, obrigatoriamente, de viver em austeridade monástica. E depois de alguns anos a trabalhar no interior de contentores metálicos e em estufas de vidraças cobertas com pinceladas toscas de caliça, só por romantismo poderia desprezar a presente comodidade.

Jimmy tinha razão. As investigações estavam num ponto em que seria imprudente manter uma visibilidade tão acessível. Jimmy, algumas vezes tinha razão... Além de meios e de poder. E tinha Madeleine... Que caldeava a exuberância e a temeridade dele e, compreendia William, também os excessos de ambição.

O grilar manso do telefone apanhou-o a olhar o rosto sorridente, que parecia que o contemplava a partir da fotografia emoldurada a metal, em cima da pequena mesa dos jornais. O retrato era mais uma "gracinha" de Jimmy... A querer dizer-lhe que estava ali, presente, não a vigiá-lo, claro, mas a lembrar-lhe que poderia contar sempre com ele. Gracinha, era uma maneira de dizer, porque quem olhasse para a foto via-o a ele, William, e não a James, e decerto se interrogaria com curiosidade, acerca da razão porque alguém que possuía uma cabeleira tão abundante e anelada, como aparentava naquela foto, passara a usar, persistentemente, o cabelo cortado à escovinha.

Ter um irmão gémeo ocasiona sempre alguns equívocos.

No Laboratório, a existência do seu gémeo, Jimmy, era quase desconhecida. Deliberadamente ocultada, ali e em quase todo o lado, e por mútuo acordo, aliás.

Desde pouco tempo depois de terem completado dezassete anos que raras pessoas os tinham visto juntos mais alguma vez, embora fosse apenas ao irmão que tal comportamento parecesse valioso. A ele, não importava. Concordava, porque na prática não existia entre eles um afastamento real. E no fundo sabia que ambos eram um só, quer dizer, duas metades do mesmo ser. Quase indistinguíveis em figura, se bem que independentes na personalidade, eram quase iguais em afectividade e de uma semelhança que os completava em matéria de organização mental. De facto, a personalidade, moldada por uma ínfima variação genética e desenvolvida por circunstâncias aleatórias, é que os diferenciava.

O toque do telefone silenciou quase logo, por troca com o piscar de uma luzinha verde. Louise sabia que ele detestava ouvir ruídos insistentes e arranjara agora uma central de chamadas menos agressiva.

De todas as vezes tinha a certeza antecipada quando era James quem lhe queria falar e por isso esperava com curiosidade a primeira ocasião em que falhasse no vaticínio. Então, seria certo que alguma coisa muito inesperada deveria suceder na sua vida. Isto era um raciocínio de superstição! Pois... O que para um céptico como ele tinha um certo ressaibo a insegurança de convicções. Mas não era preocupante. E ele ainda não desistira de encontrar a complexa fronteira entre o paranormal e o instinto.

— O Dr. James quer fala-lhe, William. Faço a ligação? — transmitiu-lhe Louise, no timbre de voz misterioso com que sempre lhe anunciava as chamadas de Jimmy, talvez porque ela era uma das tais raras pessoas que conheciam a estreita relação de parentesco entre eles, e avaliava, compenetrada, isso que sabia. Até que ponto tal conhecimento influenciava de facto o comportamento de Louise como sua dedicada secretária? E como mulher, que ele, aliás, nunca ousara seduzir para além da amizade? — a interrogação surgiu-lhe no pensamento com uma tensão nada habitual. — Agora todas estas pequenas coisas começavam a ganhar importância. Não costumava deter-se em observações tão pessoais, apesar das recomendações subtis de Jimmy, mas na realidade a situação adquirira contornos que exigiam uma atenção particular.

— Tu és impossível, William! Já estás a trabalhar! — Foi a reprimenda, em tom de serena bonomia, que recebeu de James logo após o click que estabeleceu a ligação telefónica. O irmão estava algures — ignorância que nunca lhe aguçava a curiosidade — com muita probabilidade a milhares de quilómetros, mas a sua voz chegava-lhe com precisão estereofónica. O aparelho demonstrava uma excepcional fidelidade acústica! Se acaso mais alguém, fortuitamente ou não, estivesse na linha, poderia até notar-se-lhe o arfar da respiração! — Bem, seria aflitivo se desse agora em desconfiar de tudo e de nada. A mania da perseguição era uma paranóia que dispensava. Não podia deixar-se aprisionar em preocupações infundadas.

— Então? Estás bem instalado? Gostas disso?

— Excelente... Mas isto não é um Laboratório! — respondeu, jocoso. — Espero a todo o momento que alguém repare na minha bata branca e ainda me considere um investigador.

— Isso é um problema que tens de resolver tu.  Ou continuas a assumir-te apenas como o Orientador do Projecto Arroz Gigante... E se calhar, nesse papel já não convences ninguém... Ou convertes a tua imagem na de um poderoso e distante gestor de negócios. Tens aí um invejável polo de desenvolvimento de biotecnologia, mas não precisas de mexer um dedo para o veres a funcionar, se preferires passar os dias agarrado a um microscópio. Escolhe o que te apetecer. Desculpa lá, mas estou com pressa. Volto a falar-te para a semana. Dá um ai e a Louise leva-te um calmante, ou rápido te disponibiliza tudo o que precisares... Até um batalhão de fotógrafos e jornalistas à espera da sua primeira conferência de imprensa, meu caro Dr. William-J. B. Ryswick. Beijos da Madeleine.

— Sempre a brincar. Obrigado, Jimmy. Beijos para ela também. Não te preocupes. Por aqui está tudo bem. Até para a semana!

 

(continua)

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

 

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segunda-feira, março 18, 2013 - 12:14

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Nuno Lago

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