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OS GÉMEOS - 20


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(continuação)

 

Hana sentiu-se de imediato conquistada pela bucólica tranquilidade da lezíria. Tinha ali ressuscitada a beleza entranhada das suas reminiscências de criança. A sua infância assentara num mundo lamacento e rural, inesquecível de matizes, sonoridades, costumes ancestrais e fraternidade sustentada na labuta dos arrozais.

A proposta de William contivera a esperança sonhada de um retorno a esse tempo, e a realidade estava de facto a devolvê-la às suas raízes, ainda com mais encantamento. Agora, não pedia mais nada à vida, a não ser a possibilidade de ficar ali, a crescer interiormente, recuperando a sua negada juventude, arrebanhada que ela lhe fora no turbilhão da Revolução Cultural, se bem que compreendesse quanto, mesmo cruel, apesar de tudo, de algum modo esta profunda perturbação contribuíra para revivificar o seu povo.

Depois da licenciatura na Universidade do Povo de Xangai, e por obra de uma inesperada abertura política do regime, fora recrutada para frequentar uma especialização na Europa, incluída num programa de intercâmbio cultural. A pouco mais de meio dessa pós-graduação, as portas da China recomeçaram a cerrar-se, por efeito da justa mas contraproducente pressão externa em matéria de respeito de direitos humanos. Confusão. Não queria já regressar, apenas porque seria um desperdício deixar assim incompleto o seu desenvolvimento disciplinar a nível científico, quando nem sequer estava em causa no momento a necessidade, sempre inibidora, de precisar de apoio económico. Fez-se desentendida perante as ameaças de retaliação política e concentrou toda a sua energia no estudo. Mostrou-se brilhante e veio a ser convidada para se candidatar a fazer uma pós-graduação. Mas, que frustrante! Afinal, não tendo mais o apoio da diplomacia oficial, também a pretensa solidariedade universitária internacional se escusara então a auxiliá-la com os fundos indispensáveis. Era incompreensível! Contudo, a experiência de saborear, ainda que à revelia, o gosto da liberdade, impôs-lhe logo a decisão de se exilar por algum tempo. Desistiu de prosseguir a carreira académica e empenhou-se em sobreviver. Pelo menos não lhe foi difícil encontrar emprego. Não era daquele lugar, tão distante e tão diferente, mesmo em substância, da sua origem e do seu ambiente próprio, mas aceitava-o resignada, e respeitadora, como um local de passagem marcado pelos deuses, do mesmo modo que lhe tinham atribuído a flexibilidade de um ser consciencioso e determinado ou o espanto que lhe incutia o sentido de descoberta através da ciência da Biologia.

Habituada a praticar a humildade, Hana ocupou com satisfação as cómodas instalações organizadas por Louise no contentor que antes lhe servira a ela de aposento. Na ausência de William a directora da ECLG não se agradara de ficar sozinha no complexo e mudara-se em definitivo para Lameira Grande, o que aliás já tinha planeado fazer antes, mas fora adiando enquanto ele não tivesse por perto outra companhia. Não porque desejasse ser substituída junto de William — continuaria a assegurar-lhe, menos em pessoa, mas do mesmo modo interessado, todo o apoio operacional — mas porque a administração da cerealífera, que era agora o seu trabalho principal, tinha exigências indescuráveis e por relação com elas a sua própria vida privada tomava novos rumos.

Tal como William previra, a transformação da vilória estava a processar-se com a pertinácia quase feroz com que o progresso usa apossar-se das pessoas e das coisas mal se lhe dá uma possibilidade concreta para se infiltrar nos lugares onde antes reina a simplicidade das almas e da natureza. Louise era industriosa e servia-se de todos os meios para fazer avançar o desenvolvimento local, encarando a sua actividade como um divertimento lúdico, um jogo cujo controlo tinha de lhe pertencer porque se assim não acontecesse a ambição alheia depressa se atreveria a interferir com a paz de William. Nunca sopesara tanto o fascínio com que podia inquietar ou seduzir os homens, agitar ou congregar as mulheres, estabelecendo as regras, distribuindo o poder, construindo uma comunidade ao talhe da sua imaginação. Cuidando sempre de mostrar um entusiasmo participativo mas justo, desinteresseiro, ia fomentando as iniciativas que lhe parecia poderem melhorar a qualidade de vida em Lameira Grande. E fazer isso sem atrair a atenção dos políticos das redondezas era obra. — Dêem a uma mulher de fibra a possibilidade de ela governar, e hão-de ver!... — aprovava sô Jão, apreciando o incessante crescer da sua aldeia sob a laboriosa canseira de mameselle Louise.

Hana era necessária a William, sabia Louise, mas representava uma incógnita. Nunca a fraca aparência física seria impedimento suficiente de que qualquer mulher pudesse assenhorar-se da vida de um homem. Apoquentou-a logo a possibilidade de estar a surgir-lhe uma rival.

E de certa maneira teve razão porque, decorridos escassos meses durante os quais Hana foi absorvendo o espírito do lugar, readquirindo a sua ligação à natureza, empossando-se com organização nos trabalhos que lhe tinham sido atribuídos, ganhando passo a passo a pequena distância que ali a separava da realização vocacional, Louise veio a descobrir-lhe um domínio assumido da RICE, a eufemística designação do complexo laboratório que William fora instalando com pertinácia ao longo de meia dúzia de anos.

Sem contar, em pouco tempo encontrou em Hana uma mulher confiada na competência e no poder com que, disciplinada, exercia uma ampla investigação experimental, a disfrutar de intimidade em todos os aspectos do quotidiano de William — ainda que revestida de sonsa impessoalidade, que a ela não iludia — e exibindo afinal, e sem timidez, uma delicada graciosidade rústica.

A gestão do grupo de negócios centrado na cerealífera, e a sua intromissão prudente e hábil na vida colectiva de Lameira Grande, roubando-a ao convívio frequente com William e Hana haviam-na feito perder, imperceptivelmente, a sua posição de matriarca.  Restava-lhe agora seguir os dois com discreta atenção — sem ciúme, porque apesar de tudo o conhecia bem a ele e sabia que por mais amor que fizesse, fosse com quem fosse, tinha uma identidade afectiva muito impermeável — para manter William livre de qualquer eventual perversidade da outra, que ousasse afastá-lo da lucidez com que ele deveria perseguir a convocação da ciência.

 


 
(continua)

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

 

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Submited by

quarta-feira, maio 1, 2013 - 12:11

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