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OS GÉMEOS - 23

.

 

(continuação)

 

Pela primeira vez estava a observar Hana, em pêlo. Um modo de dizer, pensou, sorrindo-se, semicerrando os olhos para melhor isolar a imagem dela a espadanar a água, a pouca distância, alegre, tomando banho no rio. Já eram cerca de seis horas da tarde e ainda fazia calor que dava para transpirar por todos os poros.

Hana não resistira à tentação de uns mergulhos. Como não tinha fato de banho, cozera parte da barra da saia de uma camisa de noite de seda branca, deixando uns buracos largos para passar as pernas, cortara-lhe as mangas e enfiara-se lá dentro, suposta em apresentação decorosa. — Talvez que se ele não andasse por ali, ela tivesse até ousadia para se atirar à água completamente nua... — E mal deu o primeiro mergulho ficou como despida aos olhos de William, porque o improvisado fato-macaco-camiseta tornou-se quase transparente, fundindo a sua alvura com o amorenado da pele dela ao colar-se-lhe ao corpo com epidérmica justeza, todas as formas a desenharem-se com provocatória nitidez e a água a reluzir e a escorrer por ela, borbulhando com esplendor.

Julgou que ela iria ficar aborrecida pela indiscrição permitida por aquele improvisado fato de banho, ou pelo menos embaraçada, mas viu que não. De facto ela estava vestida desde o pequeno decote em volta do pescoço até aos joelhos... e era a intenção que contava no seu espírito. O resto — a descoberta a surpreendê-lo e a excitá-lo, porque ela tinha elegância, corpo bem feito e um sopro de virgindade — era ele que via.

Hesitou um bom bocado antes de também ir para a água. No princípio do mundo, ao que se dizia, também fora assim... um homem, uma mulher e um recanto do paraíso, talvez ali... A beleza e a virtude — o que seria isso?

O costumeiro bando de patos bravos esvoaçava baixinho de caniçal em caniçal, deixando-lhes um rumor grasnado a misturar-se com o riso dos dois e o chapinar da água entre a brincadeira deles. Reconheceram-se. Eram seres para quem o amor só tinha significado em função do instante, e então transbordava com a intensidade dos sentidos, e por isso comportaram-se como forças da natureza.

Se mais tarde lhe perguntassem como conseguira despir-lhe aquela incrível camiseta, ou em que local certo a tinha possuído, ou o que ela preparara com muito primor para jantarem, ou se a desvirginara — não, isso lembrava-se, ela já não era virgem — ou porque tinham andado pomposamente nus, registos de experiências na mão, a visitar estufa por estufa, anotando e avaliando resultado por resultado, ou porque, já tardíssimo, cada qual tinha ido para a sua própria cama repousar, ou porque não se tinham perdido de paixão um pelo outro, tal o encanto que perfumara todos momentos da sua comunhão de alma, não saberia ou não conseguiria precisar.

Mas recordava-se de muitas outras coisas sobre ela, como o azulado escuro do olhar, quantos milímetros tinham em média os grãos da mais recente clonagem de oryza que ela conseguira obter, o refrão quase todo — Hao di fang... — da melancólica canção que ela entoara a terminar a conversa antes de irem dormir, e o que então dissera, como se envergonhada, corpo e alma inocentes, esta quase exalando nostalgia, aquele, lasso, abandonado à contemplação de William:

— Não tive paciência para aturar o cachorro... Nem tinha a certeza que era um cachorro. Era um bicho qualquer, impertinente, e até capaz de se introduzir nas estufas e causar sérios estragos nos nossos trabalhos. Se soubesse que era um cão, imagino que não teria dado cabo dele, um bicho que na minha terra é um petisco!... Mas que horror!... o Ocidente tem-me modificado imenso a maneira de pensar... já não sei bem se o pouparia por ser saboroso, ou por humanidade! Lao Tse, sábio, disse o santo ocupa-se do ventre, o Camarada Mao, inteligente, recordaria que cão que ladra não ferra, e você, prático, empreende a fabricação de mutantes. Tanta objectividade, e eu vacilante e confusa, a ressuscitar valores místicos de permeio com gastronomia!

Que fidelidade estaria ela mais próxima de respeitar? A do filósofo, a do político ou a do cientista? — perguntou-se William, sem se deter a responder a si próprio. Também não formulou essa pergunta a Louise. Nem fazia ideia de alguma vez ter abordado com ela o tema principal das suas próximas experimentações. Mas era curioso o sentido com que Hana parecia ter já definido os objectivos dele. Tinha sido de certeza o seu instinto a dar um tom mais profundo ao termo “mutantes”, pois que os seus apontamentos pessoais nunca teriam sido devassados, tanto quanto ele se podia aperceber. Na verdade, os seus ensaios e pesquisas com seres vegetais catalogavam um caminho determinado, mas esse caminho, por enquanto, não apontava mais do que a exploração da ciência numa imediata perspectiva mercantil: Investigação de Substâncias Alimentícias, ainda rezava assim a maior pasta de arquivo no laboratório principal, com pouca documentação lá dentro, é certo, mas a qual fora a precursora de uma série de outras segmentando capítulos mais específicos de estudo.

Durante mais dois anos, aquele fim de tarde com Hana foi um caso único. Talvez porque as circunstâncias nunca tivessem favorecido outra vez tão espontânea ligação, ou porque o calor, quando tem pouca subtileza e é imperioso, nunca houvesse voltado a ser tanto, ou porque Zirá o rondava pontualmente todas as semanas e lhe satisfazia em pleno as solicitações da carne, ou porque ele fora pouco a pouco, e distraído, incubando a solidão intelectual que lhe era mais produtiva, ou porque Hana, por seu lado cada vez mais aviventada na magnífica liberdade da sua existência, se deixara também reeducar pelos hábitos de Louise, cuja convivência e prestabilidade se lhe haviam mostrado valiosas nas mais diversas ocasiões de ociosidade. Mas entre as plausíveis razões para tal, não poderia constar uma possível reserva da parte de Hana, que sempre partilhou com ele uma ampla intimidade de trabalho.

Louise não mais se permitira descuidar-se dele e, apesar de estabelecida em Lameira Grande, onde continuara a sedimentar a sua influência social por via do alargamento do seu domínio económico, seguia em detalhe, pelas interpostas pessoas de Hana e de Zirá, toda a enamorada vinculação de William com a ciência.

Lameira Grande ganhara ares de vila, com poder freguês, não regular, mas popularmente investido num pequeno Conselho do Povo, figura política inexistente no papel mas que disso não precisava porque mandava mesmo, pela sua força económica e prestígio na povoação. Bem gerida, a ECLG dava bom lucro, mas cresceu apenas enquanto serviu de motor para fomentar a iniciativa local. Dela, irradiou primeiro um pequeno supermercado, destinado a abastecer os trabalhadores que estavam ligados às diversas fases da produção do arrozal, muitos dos quais se iam radicando no povoado à medida que as possibilidades de habitação iam aumentando, sector em que alguns ex-emigrantes em breve começaram a apostar. Depois, o supermercado, com regularidade semestral, foi colocando em funcionamento, por convite adequado à gente mais empreendedora da terra e em regime de exploração associada, um novo módulo: padaria, talho, materiais de construção, tecidos, e por aí fora. Em quatro anos o espaço inicial esgotou-se, mas as diligências de Louise e o espírito comercial das pessoas persistiram. Os Gonçalves abriram à beira da estrada um típico café-restaurante com esplanada e grande salão de bilhares. Estava encontrada a sala-de-estar de Lameira Grande, e as próprias sessões do Conselho do Povo passaram a ter lugar aí. Logo a seguir deixou de ser permitida construção sem regras, que existiam mas que as autoridades oficiais nunca tinham conseguido impor, e muito embora tais regras fossem apenas aparentadas com um simulacro de ordenamento urbanístico, implantou-se a farmácia e foram alcatroadas as ruas principais, por recurso a um imposto geral, em materiais, trabalho ou dinheiro, aprovado consoante as posses públicas de cada morador. Por sorte que, quer o presidente da freguesia quer o pároco mais próximos, não gozavam ali de aceitação fácil, eram preguiçosos e tinham compreensão lenta, como bendizia Louise.

De cada vez que William se deslocava a Lameira Grande deparava com alguma obra nova, o que o fazia sorrir com um ar circunspecto. As pessoas estavam a erguer com grande afã o desassossego... não longe vinha já o dia em que reparariam que entre elas se teriam despertado exigências e costumes que transformariam de forma radical a sua simplicidade e em particular a sua tranquilidade. E ele, de forma bem directa, fora o causador da mudança. Os rostos desconhecidos com que recentemente deparava, remetiam-no já à dimensão de forasteiro e apesar de a notoriedade não lhe fazer falta começava a sentir uma apreensão íntima por tanta gente estar a ocupar um espaço quase vizinho do isolamento dele. Por quanto tempo mais não se intrometeriam com a sua privacidade?
 


 
(continua)

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

 

.
 

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quarta-feira, maio 8, 2013 - 12:04

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Nuno Lago

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