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OS GÉMEOS - 6
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No dia seguinte ainda pensou em ir comprar jornais para ler as aventuras de James, mas pôs a ideia terminantemente de lado. Era melhor nada saber. Foi antes buscar aprovisionamentos para levar para o apartamento de Marte.
Passou uma semana de nababo: amar, dormir, amar, comer, dormir, amar. Embora de vez em quando se apoquentasse um pouco, porque não sabia, e procurava não calcular, se Jimmy quereria as coisas assim. — Estando na clandestinidade, como é que ele depois vai dar continuação ao caso com Marte? Talvez se lembre de me pedir mais esse favor... A rapariga está a assar-me os miolos, e nem precisa de me abrir a cabeça para os tirar e regir numa frigideira, basta-lhe meter-me na cama!
Domingo de manhã acordou cedo, com uma instigação mirabolante. Deixou-a a dormir a sono solto e foi ver as instalações do Banco, que tinham sido assaltadas. Passou em frente, em andar rápido, alheado, sem reparar em nada, e depois de mais adiante tomar um café foi direito para sua própria casa, a bocejar com o sono que entretanto, durante aquele passeio quase de lunático, tornara a apoderar-se dele.
Assim se evadiu da vida de Marte, e dos seus lençóis. Uns dias mais tarde ainda teve de esforçar-se por apagar a imagem dela, beleza nua, rosto escondido na posição meia enrolada sobre a cama, as madeixas do arruçado cabelo comprido espalhadas no travesseiro, a recender intensamente a sexo, tal como a abandonara.
— Elas vêm e elas vão... "saboreia-me bem a pequena que ela é um amor e gosta dos meus mimos"... — disse-se, parafraseando James, e à procura de uma íntima desculpa para não se sentir tão só.
Era verão, e a casa parecia-lhe desconfortável e abafada. E como não se atreveria a frequentar os lugares habituais da sua pacata boémia, sob risco de ser disfrutado, acerca da sua televisiva presença na manif dos metalúrgicos, resolveu ir fazer campismo no sul, nas margens do Alzette. No fundo, buscava um isolamento ainda maior. A existência desresponsável e de preguiçosa malandrice começava a pesar-lhe como inutilidade. O homem precisa de estar sempre a tentar desenvolver a sua inteligência. E como uma das maneiras de possibilitar esse desenvolvimento era através da leitura, levou com ele uma porção de livros. A verdade é que já tinha saudade dos tempos de estudo. Gostaria de continuar a sua formação, porém não conseguia distinguir em que área prosseguir. Além disso, o dinheiro da indemnização já desaparecera quase todo. Mas de uma coisa estava seguro: não queria nada com os agitadores, os anarquistas que, por coincidência ou não, lhe tinham abarrotado a caixa do correio com panfletos apelando à rebelião, enquanto estivera nos braços de Marte.
Só conseguiu estar fora cerca de duas semanas. A ideia de fazer campismo não tinha sido brilhante. Ou porque o calor estivesse a tornar as pessoas irrequietas, ou porque ele próprio estava a mudar de comportamentos, ou, mais certo, porque ainda não estava habituado a não ter ao pé de si a sua metade que era Jimmy, não se deu bem com o ambiente do parque que escolhera, povoado de mais com tendas e televisões portáteis, e onde já nem podia praticar naturismo sem ser incómodo para alguém. Inventou então a necessidade de voltar a casa para receber um possível apelo do irmão, e assim abdicou daquela peregrina experiência para amenizar a solidão a que não estava ainda habituado.
De facto, havia em casa um papelinho metido por debaixo da porta, onde apenas estava escrito 10,5 Kg, mas em algarismos da mão de Jimmy, sem dúvida. Há quantos dias, faltava saber... Ora pois, o clandestino dava sinal de si... De certeza que ele estava bem, caso contrário, por empatia já teria sentido as próprias entranhas a revolverem-se. Mas queria falar-lhe, estava ali a prova. Teria telefonema, portanto, às dez e trinta, mas não daquela noite, dado que já era muito tarde, ou, quem sabe, à dita hora na manhã seguinte.
E às onze da noite seguinte, estava ele a esforçar-se por ler umas linhas num manual de divulgação sobre Psicologia das Multidões, na tentativa de se aborrecer e adormecer sem ficar fixado na frustração de ter esperado em vão por James, sobressaltou-se julgando ouvir uma espécie de tamborilar de dedos na porta da entrada. Olhou para lá e incrédulo viu outro papelito a entrar pela frincha junto ao soalho! Levantou-se e aproximou-se pé ante pé. No máximo silêncio e contenção pôs a corrente de segurança e num repente abriu a porta para espreitar. Mas no patamar da escada já não havia ninguém. Apanhou o bilhete e leu: Les Trois Dauphins.
— Quando? — perguntou-se — Claro que é agora! — respondeu-se. — Será Jimmy? É evidente!... de quem é esta letra se não dele? Teria sido o irmão, ou algum camarada a deixar a mensagem? De qualquer modo, sabiam que ele já regressara a casa. Estava pois a ser vigiado. Pudera! Valera a modesta quantia de 200 milhões. — raciocinou ele, com ironia.
A caminho! Les Trois Dauphins ficava no lado oposto da cidade.
Parecia estar entretido a beberricar duma lata de Coca-Cola e a folhear uma revista de banda desenhada, numa das mesas centrais do café. Cabeça e sobrancelhas rapadas, e de bigode! William teve vontade de rir. Ver-se a si próprio de fato-macaco surrado, careca e de bigode, a refrescar-se com uma Cola imperialista, era caricato. A encenação atingia o auge com o maço de Camel pousado junto ao pires com o talão de pagamento. — James detestava tabaco!
Aproximou-se, e uma vez que Jimmy nem ergueu os olhos a ver quem ele era, sentou-se sem pedir licença, atirando-lhe, cada palavra bem acentuada: — O meu amigo gosta das aventuras de Tintim? Se me dá licença que lhe diga, eu também aprecio muito as histórias aos quadradinhos...
Depois disso James sorriu-se e começaram então a conversar por metáforas, usando as mais das vezes enfáticos monossílabos e acenos de cabeça: Tintim fazia muitas expedições a sítios longínquos, arriscadas mas divertidíssimas e que terminavam sempre bem. Até já dera um salto a Marte... onde encontrara uma atmosfera anormalmente quente, mas também regressara são e salvo... os impagáveis Dupond & Dupond nunca o largavam e tentando ser-lhe úteis ajudavam era a complicar... o próximo magazine traria uma aventura no Egipto, que até devia ser engraçada... estava um tremendo calor... a Coca-Cola gelada não sabia a nada mas esfriava a garganta... nunca tinha visto um poio da cadelita Milou — ah! ah! ah! — mas apostava que os devia largar em qualquer sítio, talvez dentro de um armário...
E a terminar, quase inaudível: — Willy... procura que encontrarás... tu mereces. Ouve lá, tu tens de te formar... inscreve-te em Biologia que é para isso que tens queda... Obrigado pela tua preciosa ajuda. Até daqui a algum tempo.
E em voz alta, a retirar-se: — É como lhe digo, se não são as histórias aos quadradinhos, o que é que há para a gente se cultivar? Ah!... a televisão... é chata, não é? Boa noite, meu amigo. Foi um prazer.
Talvez, talvez... a Biologia era uma das Ciências que mais o atraíam. Obter uma licenciatura... Mas com que disponibilidades financeiras? Podia tentar... se poupasse todos os tostões... ou se conseguisse descobrir um emprego em tempo parcial, para ajudar à despesa. Trabalho, claro!... aquilo que ele não desejava nada ter de fazer, para não perder a liberdade de vadiar. Mas o irmão adivinhara a sua íntima aspiração de retomar os estudos, e aconselhara-o bem...
A conversa com Jimmy tivera piada. Ficou a boiar-lhe no espírito, como uma cena colorida de fita cinematográfica, a pôr um bem-humorado sinal de distanciamento por algum tempo entre os caminhos que, por destino talvez, cada um deles percorreria até voltarem a cruzar-se.
A separação estava agora consumada, de facto. Tinha pois que desenvencilhar-se... estudo, e trabalho... e que espécie de trabalho? Não era dado a artes manuais, odiaria qualquer monótona tarefa num escritório, não teria paciência para ser vendedor... Mas, era inegável, impunha-se que arranjasse qualquer serviço limpo onde recolher dinheiro para frequentar um boa escola e terminar o curso secundário e se possível mais tarde licenciar-se.
Também podia alugar um dos quartos da casa. Sempre ajudaria a sustentar-se. A ideia conquistou-o. Antes que se arrependesse da custosa decisão de partilhar a sua privacidade, resolveu tornar a casa apresentável. Começou a arrumação. Primeiro, as coisas de James. Devia juntá-las e guardá-las no quarto do irmão, aproveitando para meter lá também outros móveis, de modo a poder dispensar o aposento que de costume lhes servia como escritório.
Uma volta pela sala e pelo quarto de banho mostrou-lhe que o irmão já levara consigo quase tudo que lhe pertencia, com excepção de alguma roupa que andava perdida pelas mais diversas gavetas e recantos. Foi buscar as caixas da embalagem do seu computador, deitou fora os sacos de plástico e os encaixes interiores de esferovite e, arrastando-as daqui para ali foi-as enchendo, numa busca sistemática dos pertences de Jimmy.
Os guarda-fatos eram os sítios mais atulhados. Camisas, calças, blusões, peúgas, camisolas, havia de tudo um pouco. Não se detinha a examinar as peças. Conhecia-as de cor e salteado, era só dobrar e acomodar nas caixas. Por isso estranhou a forma e a rigidez da pequena trouxa, atada numa camisa velha, que lhe surgiu do meio de uma confusão de sapatos e sapatilhas. Ia pôr aquilo assim mesmo numa das embalagens de cartão, e o tato através do pano confirmou--lhe que dentro havia qualquer coisa embrulhada em papel. — Fotografias... decerto. Já agora, deixa lá ver....
Desatou a camisa, e ficou imediatamente alarmado. O que quer que fosse estava empacotado no famigerado jornal que publicara a notícia do assalto. Aquele título, embora parcialmente ilegível por efeito das dobras do papel, era inesquecível. Que desassossego!... E que petulância!... E que perigoso para ele!
Escrito de acordo com a Antiga Ortografia
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