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OS GÉMEOS - 7

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(continuação)

 

Ao abrir o jornal espalhou por todo o lado uma revoada de notas graúdas e novinhas em folha. Era preciso ter lata! Deixar aquela massa toda sem segurança alguma e ainda por cima embrulhada naquela edição do jornal! Ah!... Jimmy!

Ajoelhou-se e foi apanhando o dinheiro nota a nota, sem as contar, preocupado e também aborrecido porque eram tão novinhas que muitas vezes tinha de salivar o dedo para as conseguir levantar do soalho sem beliscaduras.

A certa altura deu com um outro papelito semelhante ao do anterior recado de James que tinha entrado lá em casa por debaixo da porta.

“Recomeça a estudar. Inscreve-te em Biologia que é para isso que tens queda.”

Comoveu-se. Por isso Jimmy lhe dissera em Les Trois Dauphins: “Procura e encontrarás.”

Continuou a não querer ler o relato do assalto, e foi a correr para a cozinha rasgar o jornal aos bocados e queimá-los dentro de uma panela. Enquanto olhava para as chamas reflectiu que quanto às notas não seria perigoso ficar com elas... James não era burro para lhe ter oferecido daquelas que embolsara no INTERCONTINENTAL, com numeração registada, e que já deviam estar debaixo de olho da polícia. Contudo, o melhor era conservá-las consigo por agora. Seria notado se fosse depositar tanto dinheiro fresco de uma só vez. Teria de fazer isso aos poucos, como se fossem rendimentos periódicos. Já agora, abriria também uma conta de poupança, bem recheada, no INTERCONTINENTAL. Graça por graça, devia honrar a desfaçatez do irmão...

O pai tinha sido um autodidacta, feito pela experiência de gentes e terras diversas numa vida errante que assim lhe proporcionara largos horizontes. Viajando, aprende-se a genuína sabedoria humana. À sua maneira era um filósofo pragmático. A prova era a sua devoção pelo famoso pensador norte-americano William James a quem fora buscar o nome que dera a um dos gémeos. Ao outro, por obsessão, chamara James-William. Morrera ingloriamente e sem ter chegado a avaliar que tipo de descendentes legara à sociedade. Mas era certo que pelo menos uma parte interessante do seu repositório genético, ou de outros antepassados de idêntico cariz, transmitira aos gémeos. Willy não se enredava com filosofias mas tinha uma natural propensão intelectiva para a especulação científica, e Jimmy era um exemplar idealista. William não entendia de outra maneira, se não por herança de sangue revolucionário, que, o pai no campo radicalista liberal, e agora o irmão em terreno oposto, se batessem por atitudes sociológicas sem realismo. Cada época tem a sua ordem moral, a sua ética e a sua decadência. Mas a mudança, em mais ou menos anos, é inevitável. Muda a aprovação e a reprovação tácitas da sociedade, mudam os actos heróicos e os crimes, e, mais tarde ou mais cedo, muda mesmo quem não quer ser diferente do que julga ser mas tem de fugir a viver em conflito com o que já não é. O que passa de sangue em sangue é a secreta e instintiva ambição de poder. Ilusória, e sob incontáveis vestes e graduações, realiza muita maldade mas é a verdadeira fórmula do desenvolvimento. Todas as tentativas para a dominar, sairão frustradas. A mudança é uma curva fractal, a sucessão de uma miríade de sobressaltos quase sem significado à escala do tempo, a tender para limites só previsíveis a muito curta distância. Bem nos poderemos afadigar ao invés, mas ela sempre ocorrerá ajustadamente à ocasião propícia.

Em relação à mãe, não tinham herdado mais do que uns poucos traços de fisionomia, e a profunda tristeza que ela tinha sempre no olhar e que neles o subconsciente artificioso escondia com recurso a uma ironia dissimuladora.

Willy fazia-lhe falta. Quando estava ao pé do irmão havia lugar para as emoções, mesmo quando ele se mantinha alheio e não compartilhava os seus actos. A sintonia psíquica, ou anímica, potenciava a afectividade, claro... Porém, constituía ao mesmo tempo uma dependência coarctante, que era necessário eliminar por diversos motivos, entre os quais as convicções políticas, e para que a personalidade de cada um pudesse crescer e manifestar-se. Sabia que nem ele nem Willy seriam capazes de eliminar a charneira psicológica que os mantinha unidos, sem uma razão imperativa e circunstancial.

Quando tirou do saco a bolinha de miolo de pão e depois, como os outros quatro camaradas, mão fechada e trémula, a guardou no bolso, tinha esperança de que fosse negra. E conservou essa esperança durante o caminho para casa.

Era corajoso — ou temerário... — e, sendo o autor do plano, devia caber-lhe a ele assumir a responsabilidade da operação. Vencido por uma directiva oriunda da cúpula da organização, submetera-se ao sorteio, por certo originado por algum dos outros recear ser designado contra a sua vontade para o acompanhar na Missão Bandeira Negra. Durante algum tempo mais ninguém estivera de acordo em realizá-la, apesar da argumentação e da insistência dele. Tinham cedido quando a célula fora privada das contribuições, frequentes mas de pouca monta, que dois camaradas, em assaltos que ele considerava ridículos e até criminosos, porque indiscriminados e ao acaso, gatunavam a comerciantes da periferia da cidade. A situação não poderia continuar assim. As pessoas eram presas, fomentavam a insegurança, ficavam com cadastro, faziam falta como agitadores, e os frutos eram escassíssimos, além de se exporem ao risco de delação por via dos receptadores. Quase nunca havia fundos para nada... Fosse para material de propaganda, fosse para praticar um mínimo de solidariedade. Um golpe só, tacticamente bem preparado, realizado por camaradas que aliassem a astúcia à competência revolucionária, resolveria tudo. Era possível fazer a revolução sem armas, mas não apenas com a força das ideias, sem ter meios para actuar. Os dirigentes não compreendiam isso? Claro!... E então?... Era arriscado? Mas valia a pena!

O seu currículo de lutador social não tinha sinuosidades: formação doutrinária rigorosa, activismo operoso, especialização em táctica e guerrilha políticas. Mas era caracterizado por uma faceta suspeita: nunca mostrara ambição de poder, e, além disso praticava uma militância que se sentia ser obediente aos cânones mas que por vezes fazia sobressair a necessidade de modernização de processos. Sabia isso. Por autocrítica. Quanto à útil modernidade de processos haveria de provar a sua razão. Ambições é que deveras julgava não ter.

A bolinha era negra. Assim, tal como ele, cada um dos outros camaradas saberia se tinha sido ou não escalado, mas o silêncio, e até o respeito, ou a prudência, impedi-los-iam de saberem quem executaria a missão.

A subsequente passagem à clandestinidade trar-lhe-ia uma vantagem acrescida: uma forma irrepreensível de se separar de Willy.

 

(continua)

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

 

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segunda-feira, abril 1, 2013 - 11:12

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Nuno Lago

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