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A Prisão de Rafael Tobias de Aguiar
Paulo Monteiro
Há alguns dias recebi do presidente da Academia Sorocabana de Letras, Geraldo Bonadio, um exemplar do seu livro “Sorocaba: a cidade industrial (Espaço urbano e vida social sob o impacto da atividade fabril)”, bela obra sobre aquele município, cuja história se confunde com a de Passo Fundo. Conhecemo-nos em Cruz Alta, há poucas semanas, apresentou meu nome aos seus confrades de academia e fui eleito membro correspondente daquela casa de cultura.
À leitura do livro de Geraldo Bonadio seguiu-se um mergulho na clássica “História de Sorocaba”, de Aluísio de Almeida, levou-me à conclusão de que se Cruz Alta recebe o título de “cidade-mãe”, é mais do que justo chamar Sorocaba de “cidade-parteira de Passo Fundo”. Podemos até datar a união entre os dois municípios: 23 de dezembro de 1637. Nesse dia uma bandeira paulista, comandada por André Fernandes de Oliveira, filhos dos fundadores de Santa Ana de Piratininga, e seu irmão Baltasar Fernandes, que pouco tempo depois fundaria a atual Sorocaba, irromperam na Redução de Santa Teresa del Curiti.
Num assalto fulminante, aprisionaram mais de quatro mil índios, dominaram os jesuítas espanhóis, que acabaram definitivamente expulsos do território passo-fundense, estabelecendo por algumas décadas domínio paulista sobre a região. Esta, porém, é uma história para desdobramentos futuros. Depois, dois sorocabanos, Antonio de Mascarenhas Camelo Júnior e Antonio Gomes Pinheiro Machado, exilados da Revolução Liberal de 1842, unidos ao rio-pardense Antônio de Mello e Albuquerque, acordaram a emancipação de Passo Fundo, concretizando o sonho de Joaquim Fagundes dos Reis.
Outro sorocabano ilustre que acabou ligando as duas cidades é Rafael Tobias de Aguiar. Seu sobrenome é um dos muitos de origem paulista que há bem mais de um século, a exemplo de tantos outros comuns entre os velhos moradores do velho e extenso município de Sorocaba, estão presentes em Passo Fundo.
Rafael Tobias de Aguiar nasceu em Sorocaba no dia 4 de outubro de 1794 e faleceu em 1857, quando viajava de barco, no litoral fluminense. Filho de uma rica família de fazendeiros e comerciantes de animais. Político militante exerceu importantes cargos públicos em São Paulo, chegando, por duas vezes, à presidência da Província. Em plena Revolução Liberal de 1842, num lance de folhetim, casou com Domitila de Castro Canto e Melo, com quem vivia maritalmente, há anos, e com a qual já contava meia dúzia de filhos. Domitila é a famosa Marquesa de Santos, ex-amante de Dom Pedro I, que lhe dera quatro filhos.
Dizem as más línguas – e nem mesmo os grandes homens delas conseguem escapar-se – que o brigadeiro deixou-se ficar em Sorocaba desfrutando a lua-de-mel enquanto seus comandados levavam 15 dias para chegar às proximidades de São Paulo (Sítio do Pejussara) percurso que poderia ter sido feito em 3 dias.
Assis Cintra, que estudou a bibliografia disponível sobre a Revolução de 42, até 1936, citando João Baptista de Moraes descreve a marcha das forças liberais:
“A coluna caminhava em curtas etapas, sem ordem, sem organização alguma militar. Antes de se iniciar a marcha, perdia-se enorme tempo em pegar e arrear os animais que conduziam os mantimentos e formavam (que cousa irrisória) a vanguarda. Inúmeros cargueiros conduziam mantimentos, galinhas, leitões, cabritos e (parece piléria) até perus”.
O início das marchas era precedido de terço, ladainhas e longo sermão, pregado pelo padre França.
Enquanto isso, Luis Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, que comandava a repressão ao movimento revolucionário, marchava com a maior celeridade possível.
A vanguarda da “Coluna Libertadora”, que saiu de Sorocaba no dia 21 de maio de 1842 somente chegaria às margens do rio Pinheiros ao amanhecer do dia 8 do mês seguinte. O mesmo João Baptista de Moraes, citado por Assis Cintra, assim descreve o “confronto” com os soldados de Caxias:
“Na madrugada de 8 de junho os “vedetas” da Coluna chegaram a um ponto próximo ao rio dos Pinheiros, aonde até então se haviam aventurado. Dias antes havia sido queimada uma roçada nas proximidades. Quando os batedores, ao romper do dia, avistaram por entre o nevoeiro da manhã os paus enegrecidos da queimada (os tocos), convictos de que tinham diante de si os “terríveis caçadores” de Caxias, voltaram rédeas e, em galope desesperado, alcançara e atravessaram o campo, onde se achava a Coluna Libertadora, aos gritos: – “Os periquitos! Os periquitos!”
Como se sabe, os amigos dos revoltosos designavam com aquele nome os caçadores de Caxias, por usarem uniforme verde. Foi tal o pânico e o terror que se apoderou da “Coluna Libertadora”, que toda ela debandou na mais vertiginosa carreira. Apesar dos esforços do comandante, só daí a duas léguas, no Barueri, conseguiu ele deter parte diminuta da infantaria, já desfalcada pelas deserções. A cavalaria, porém, só estacou nas localidades de sua procedência, isto é, Itu, Porto Feliz e Sorocaba. Foi tal o terror, que aquelas localidades ficaram completamente abandonadas. Podemos confirmar o fato com documentos irrecusáveis, entre eles, com o preciso autógrafo que vamos transcrever do Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos, secretário do Governo de Sorocaba”.
Além da lentidão no ataque, os liberais paulistas confiavam que ocorressem levantes armados nas outras províncias. Apenas em Minas Gerais houve sublevação, que foi derrotada pelo barão de Caxias. Este, batidos os revoltosos paulistas e mineiros seguiu célere para o Rio Grande do Sul, justo a tempo de receber Rafael Tobias de Aguiar preso, em Rio Pardo, como se vê pelo documento a seguir transcrito:
“Ilmo. Sr. e Exmo. Sr.
Tenho a honra de participar a V. Exa. Que por ordem do antecessor de V. Exa. Que me foi transmitida em ofício reservado de 19 de novembro do corrente ano marchei com uma partida do Décimo Corpo a que pertenço ao ponto do Passo Fundo destinado a prender o chefe dos rebeldes de São Paulo Rafael Tobias de Aguiar; com efeito cheguei àquele ponto no dia 26 do mesmo mês de novembro aonde soube que dito Aguiar tinha já passado e seguido a estrada da Palmeira em direitura ao povo de Santo Ângelo, e posto que segui-lo fosse preciso marchar pela retaguarda dos rebeldes que ocupam o departamento da vila da Cruz Alta, contudo marchei em seu alcance duas noites e um dia e pude conseguir prender o dito Aguar no lugar denominado Guarita, de donde retrocedi a marchas forçadas tendo a fortuna de escapar às forças inimigas, chegando a esta vila ontem de tarde, dia em que fiz entrega do dito preso Rafael Tobias de Aguiar ao Sr. Coronel João Feliciano da Costa Ferreira; por este feito julgo de meu dever comunicar a V. Exa. Que o comandante militar estacionado na Serrinha, Vidal José do Pilar, se me prestou com os preciosos auxílios para o desempenho desta diligência e que também me supriu com cavalos, e no meu regresso acompanhou-me até esta vila o Tenente do Décimo Corpo Francisco de Albuquerque. Julgo ainda mais digno de consideração e louvor o procedimento do Sargento Joaquim Rodrigues da Silva e Cabo Januário Tavares, porque tendo o referido rebelde Aguiar a ousadia de oferecer-me oitocentas onças para que o soltasse ofereceu também duzentas ao sargento e cem ao cabo para o mesmo fim, cujo interesse não foi capaz de os obrigar a faltar aos seus deveres, não desmentindo assim ao bom conceito que deles formo; lisonjeio-me de ter cumprido a comissão de que fui encarregado em conformidade das ordens que recebi do antecessor de V. Exa. Deus guarde a V. Exa.
Vila do Rio Pardo, 8 de dezembro de 1842.
Ilmo. E Exmo. Sr. Barão de Caxias
Presidente e General-em-Chefe
(a) Benedito Martins França
Capitão em Comissão”
Trata-se de um dos milhares de documentos coletados por Alfredo Varela e empregados para escrever suas volumosas obras sobre a história do Rio Grande do Sul, mormente o período farroupilha. O ofício de Benedito Martins França, senhor de outros dois velhos sobrenomes paulistas, há quase duzentos anos encontráveis na região Serrana, faz parte da Coleção Alfredo Varela, pertencente ao Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, que o guarda sob a identificação CV-4923.
Há 23 anos está ao alcance dos pesquisadores, publicado à página 34, volume 9 dos Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
Embora diversas publicações citem que a prisão do esposo da Marquesa de Santos tivesse ocorrido em Vacaria, na verdade, aconteceu no então município de Cruz Alta. O local (Guarita), mais tarde passaria para Palmeira das Missões.
Os imperiais estavam muito bem informados sobre os passos do brigadeiro tanto que a ordem para que o capitão Benedito Martins França partisse de Rio Pardo (pelo velho Caminho do Botucaraí, Soledade) para Passo Fundo foi dada por Saturnino de Souza e Oliveira, antecessor de Caxias, que tomou posse no dia 11 de novembro de 1852, no governo da Província.
Mais uma vez, a rapidez de Caxias e dos imperiais surpreendia o revolucionário paulista. Saindo de Rio Pardo a 19 de novembro, no dia 26 já estava em Passo Fundo. Aqui, sabendo que Rafael Tobias de Aguiar, passara na Direção da Palmeira, seguiu no seu encalço. Em dia e meio de perseguição (duas noites e um dia) foi alcançá-lo e prendê-lo na Guarita, entre Palmeira e Santo Ângelo. O fugitivo deve ter passado incógnito pela guarda legalista, postada na Serrinha, que pertencia a Cruz Alta, depois passou para Palmeira e Cruz Alta, onde estavam os homens de Vidal José do Pillar, o sagaz fundador de Cruz Alta.
Rafael Tobias de Aguiar só foi preso pelos soldados imperiais porque era monarquista. Ao chegar em Passo Fundo e saber que Cruz Alta estava ocupada pelo coronel farroupilha José Gomes Portinho, reconhecida e assumidamente republicano, ao invés se seguir para lá, tomou a estrada da Palmeira. O que ele queria mesmo era exilar-se no Uruguai, mas quanto mais longe dos farroupilhas melhor. Tudo isso ele o disse, e com todas as letras, num manifesto que divulgou aos quatro ventos. E ali também está o local de sua prisão: Guarita.
O certo é que Rafael Tobias de Aguiar estava muito bem armado de dinheiro. Tanto estava que ofereceu 800 onças para o capitão, 200 para o sargento e 100, seus capturadores, para que o liberassem.
Interessante é que muita gente insiste em afirma que o brigadeiro foi preso em Vacaria. Aluisio de Almeida, o incansável pesquisador sorocabano, autor de uma utilíssima “História de Sorocaba”, há décadas já divulgou o local exato da prisão do comandante liberal paulista: Gorita, como à época se escrevia Guarita.
Portanto, Rafael Tobias de Aguiar, líder de Antônio de Mascarenhas Camello Júnior e Antonio José Gomes Pinheiro Machado, na Revolução Liberal de 1842, é mais um vínculo na história de nossas duas cidades. Só não foi preso pelos imperiais em Passo Fundo, por uma questão de detalhes, mas por aqui passou duas vezes, uma livre, na tentativa de juntar-se aos farroupilhas que ocupavam Cruz Alta; outra conduzido preso para Rio Pardo. Dali seguiria para a Fortaleza da Laje, onde permaneceria encarcerado até a anistia de 1844, cuidado pela mulher com quem casou, em plena Revolução de 42.
Domitila, a amante de Dom Pedro I, que um dia sonhou ser imperatriz do Brasil, dignificada pelo matrimônio, cuidou do marido, na prisão. Passou a acompanhá-lo em todos os momentos. Quando ele, já bastante adoentado, faleceu a bordo do navio Piratininga, na Baia da Guanabara, a 7 de outubro de 1857, mandou embalsamar seu corpo, que conduziu para sepultá-lo com todas as honras na cidade fundada por Baltasar Fernandes, um dos conquistadores de Santa Teresa del Curiti, a redução castelhana passo-fundense.
Nota do Autor: O texto acima é a forma mais extensa de um outro, publicado na Revista Somando (Edição 137 – Ano III – agosto/2008). O Autor acabou reduzindo para fins de adaptar-se às exigências gráficas do periódico. Trata-se, única e exclusivamente, de uma simples necessidade jornalística. O jornalista é um torturado do espaço.
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