George Orwell- 1984
Havia que viver- e vivia-se, graças a um hábito que se fazia instinto (…)
Guerra é paz
Liberdade é escravidão
Ignorância é força
O Ministério da Verdade; O Ministério da Paz; O Ministério do Amor; Ministério da Riqueza
Eram apenas palavras de incitamento, o tipo de palavras que se pronunciam no fragor da batalha, palavras que não se distinguem individualmente mas que restauram a confiança pelo facto de serem ditas.
Nada pertencia ao indivíduo, com exceção de alguns centímetros cúbicos dentro do crânio.
Ele não passava dum fantasma solitário exprimindo uma verdade que ninguém jamais ouviria. Mas enquanto a exprimisse, a continuidade não seria interrompida. Não é fazendo ouvir a nossa voz mas permanecendo são de mente que preservamos a herança humana.
Se o Partido tem o poder de agarrar o passado e dizer que este ou aquele acontecimento nunca se verificou - não é mais aterrorizante do que a simples tortura e a morte?
"Quem controla o passado," dizia o lema do Partido, "controla o futuro: quem controla o presente controla o passado." E no entanto o passado, conquanto de natureza alterável, nunca fora alterado. O que agora era verdade era verdade do sempre ao sempre. Era bem simples. Bastava apenas uma série infinda de vitórias sobre a memória. Chamava-se "Controle da realidade", ou duplipensar.
Seu espírito mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a subtileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do acto de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra "duplipensar" era necessário usar o duplipensar.
(…) Havia toda uma série de departamentos autónomos que tratavam de literatura, música, teatro e divertimentos proletários em geral. Neles eram produzidos jornalecos ordinários que continham pouca coisa, notícias de desporto, polícia e astrologia, sensacionais novelazitas de cinco centavos, filmes transbordando de sexo, e cançõezitas sentimentais compostas inteiramente por meios mecânicos(…)
Qualquer dia, reflectiu Winston, com convicção profunda e repentina, Syme será vaporizado. É inteligente demais. Vê demasiado claro e fala sem subterfúgios. O Partido não gosta de gente assim. Um dia ele desaparecerá.
Mas os proles, se de algum modo adquirissem consciência do seu poderio, não precisariam conspirar. Bastava-lhes levantarem-se e sacudir-se, como um cavalo sacode as moscas. Se o quisessem, poderiam demolir o Partido no dia seguinte. Mais cedo ou mais tarde, isso lhes haveria de ocorrer. No entanto... !
Não se revoltarão enquanto não se tornarem conscientes, e não se tornarão conscientes enquanto não se rebelarem.
O Partido proclamava, naturalmente, ter libertado os proles da servidão. Antes da Revolução eram oprimidos pelos capitalistas, tinham sido chicoteados e submetidos à fome, as mulheres forçadas a trabalhar nas minas de carvão (na verdade, as mulheres ainda trabalhavam nas minas), as crianças vendidas às fábricas com a idade de seis anos. Simultaneamente, fiel aos princípios do duplipensar, o Partido ensinara que os proles eram naturalmente inferiores, que deviam ficar em sujeição, como animais, pela aplicação de algumas regras simples. Pouquíssimo se sabia a respeito dos proles. Não era necessário saber muito. Contanto que continuassem a trabalhar e a reproduzir-se, não tinham importância as suas outras atividades. Abandonados a si mesmos, como gado solto nas planuras argentinas, haviam regressado a um modo de vida que lhes parecia natural, uma espécie de tradição ancestral. Nasciam, cresciam nas sargetas, iam para o trabalho aos doze, atravessavam um breve período de floração da beleza e do desejo sexual, casavam-se aos vinte, atingiam a maturidade aos trinta, e em geral morriam aos sessenta. O trabalho físico pesado, o trato da casa e dos filhos, as briguinhas com a vizinhança, o cinema, o futebol, a cerveja e, acima de tudo, o jogo, enchiam-lhes os horizontes. Mantê-los sob controlo não era difícil. Alguns agentes da Polícia do Pensamento estavam sempre entre eles, soltando boatos, marcando e eliminando os poucos indivíduos julgados capazes de se tornar perigosos; mas não se tentava doutriná-los com a ideologia do partido. Não era desejável que os proles tivessem sentimentos políticos definidos. Tudo que se lhes exigia era uma espécie de patriotismo primitivo ao qual se podia apelar sempre que fosse necessário levá-los a aceitar rações menores ou maior expediente de trabalho. E mesmo quando ficavam descontentes, como às vezes acontecia, o descontentamento não os conduzia a parte alguma porque, não tendo ideias gerais, só podiam focalizar a animosidade em ridículas reivindicações específicas. Os males maiores geralmente fugiam-lhes à observação. A grande maioria dos proles nem tinha teletelas em casa. Até a polícia civil interferia pouquíssimo com eles. Havia enorme criminalidade em Londres! todo um mundo subterrâneo de ladrões, bandidos, prostitutas, vendedores de narcóticos e contraventores de todo tipo; mas como tudo se passava entre os próprios proles, não tinha importância. Em todas as questões morais, permitia-se-lhes obedecerem ao código ancestral. O puritanismo sexual do Partido não lhes era imposto. A promiscuidade não era punida, e o divórcio era permitido. Nesse particular, até a adoração religiosa teria sido permitida se os proles demonstrassem algum sintoma de desejá-la ou dela carecerem. Ninguém desconfiava deles. Como dizia o lema do Partido: "Os proles e os animais são livres."
De repente achou que as únicas coisas verdadeiramente típicas da vida moderna não eram nem a crueldade nem a insegurança, mas apenas a nudez, a miséria, o desânimo.
O ideal criado pelo Partido era enorme, terrível, luzidio - um mundo de aço e cimento, de monstruosas máquinas e armas aterrorizantes - uma nação de guerreiros e fanáticos, marchando avante em perfeita unidade, todos tendo os mesmos pensamentos e gritando as mesmas divisas - trezentos milhões com a mesma cara - trabalhando perpetuamente, lutando, triunfando, perseguindo.
A realidade eram cidades caindo em ruinas, escuras, onde o populacho subnutrido perambulava com sapatos furados, vivendo em remendadas casas do século dezanove que sempre cheiravam a repolho e latrinas de mau funcionamento. Parecia ter uma visão de Londres, vasta e arruinada, uma cidade de um milhão de latas de lixo, e misturada com ela a figura da sra. Parsons, mulher de cara enrugada e cabelo ralo, lidando sem esperança com um cano de esgoto.
… Era uma equação única com duas incógnitas…
O passado não podia apenas ser modificado, podia ser mudado continuamente. O que mais o afligia, com uma sensação de pesadelo, era nunca compreender com clareza por que se iniciara a tremenda impostura. Eram óbvias as vantagens imediatas da falsificação do passado, mas os motivos finais eram misteriosos. Ele tornou a pegar a caneta e escreveu: Compreendo COMO: não compreendo PORQUE. Indagou de seus botões, como fizera muitas vezes, se não era lunático ele próprio. Talvez um lunático seja apenas uma minoria de um só. Antigamente, fora sinal de loucura acreditar que a terra gira em torno do sol; hoje, crer que o passado é inalterável. Podia ser o único a ter aquela crença, e ser sozinho, lunático. A ideia de ser lunático, porém, não o perturbava grandemente. O horror era estar enganado.
No fim, o Partido anunciaria que dois e dois são cinco, e todos teriam que acreditar. Era inevitável que o proclamasse mais cedo ou mais tarde: exigia-o a lógica de sua posição. Sua filosofia negava tacitamente não apenas a validez da experiência como a própria existência da realidade externa. O bom senso era a heresia das heresias. E o que mais aterrorizava não era que matassem o cidadão por pensar diferente, mas a possibilidade de terem razão. Por que, afinal de contas, como sabemos que dois e dois são quatro? Ou que existe a lei da gravidade? Ou que o passado é inalterável? Se tanto o passado como o mundo externo só existem na mente, e se a mente em si é controlável... então? Mas não!
(…)O Partido ordenava que o indivíduo rejeitasse a prova visual e auditiva. Era a sua ordem final, essencial.
(…)A liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Admitindo-se isto, tudo o mais decorre.
(…) A coisa é que esses capitalistas, mais alguns advogados e padres, e gente assim, que viviam à custa deles, eram os senhores da terra. Tudo existia para o gozo deles. O povinho comum, os trabalhadores, eram escravos deles. Podiam fazer o que bem entendessem (…)
Os sobreviventes do povo eram, como a formiga, que pode ver pequenos objetos, mas não enxerga os grandes. E quando a memória falhava, e os registos escritos eram falsificados - era forçoso aceitar a assertiva do Partido de que tinham melhorado as condições da vida humana, porque não existia, nem jamais poderia existir, qualquer padrão de comparação.
Pensou, com uma espécie de assombro, na inutilidade biológica da dor e do medo, na traição do corpo humano que sempre se congela na inércia, no momento exacto em que dele se exige esforço especial. Poderia ter silenciado a moça morena se conseguisse agir com rapidez, mas precisamente por causa do perigo extremo que corria perdera a capacidade de agir. Ocorreu-lhe que, em momentos de crise, nunca se luta com um inimigo externo, mas com o próprio organismo. (…)E o mesmo acontece em todas as situações aparentemente heróicas ou trágicas. No campo de batalha, na câmara de tortura, num navio que naufraga, as causas por que lutamos são sempre secundárias, esquecidas, porque o corpo incha, e avoluma-se até ocupar todo o universo, e mesmo quando não nos paralisa o medo, nem gritamos de dor, a vida é uma luta, minuto a minuto, contra a fome, o frio, a insónia, contra uma dor de estômago ou de dentes.
O Partido talvez estivesse podre sob a crosta superior; seu culto da severidade é a auto-negação podiam ser apenas uma máscara da iniquidade. Se pudesse infeccioná-los todos com lepra ou sífilis, com que prazer o faria! Tudo que servisse para apodrecer, debilitar, minar!
Respeitando as leis menores podia infringir as maiores.
Ao contrário de Winston, ela percebera o sentido íntimo do puritanismo sexual do Partido. Não era apenas pelo facto do instinto sexual criar um mundo próprio, fora do controle do Partido e que portanto devia ser destruído, se possível. O mais importante era a privação sexual que provocava a histeria, desejável porque podia ser transformada em febre guerreira e adoração dos chefes. Ou como explicava Júlia:
- Quando amas, gastas energia; depois, ficas contente, satisfeito, e não te importas com coisa alguma. Eles não gostam que te sintas assim. Querem que estoures de energia o tempo todo. Todas essas coisas de marchar para cima e para baixo, dar vivas, agitar bandeirolas, é sexo que azedou. Se estás contente contigo mesmo, por que havias de admirar o Grande Irmão, os Planos Trienais e os Dois Minutos de ódio e todo o resto da maldita burrice?
Era bem verdade, pensou ele. Havia uma ligação direta e íntima entre a castidade e a ortodoxia política. Como poderiam ser mantidos no tom o medo, o ódio e a credulidade lunática que o Partido necessitava nos seus membros, a não ser pelo engarrafamento de um poderoso instinto, usado como força motriz? O impulso sexual era perigoso ao Partido e o Partido transformara-o em vantagem a seu favor.
A um truque semelhante tinham submetido o instinto da paternidade. Como não era possível abolir a família (ao contrário, os pais eram incitados a gostar dos filhos quase à moda antiga) as crianças eram sistematicamente atiradas contra os pais, e ensinadas a espioná-los e a denunciar os seus desvios. Dessa forma a família se tornara uma extensão da Polícia do Pensamento. Era um meio pelo qual todos podiam ser cercados, noite ou dia, por delatores que os conheciam intimamente.
Viver dia a dia, semana a semana, esticando um presente que não tinha futuro, parecia um instinto irresistível, como os nossos pulmões sempre procuram inspirar, enquanto existe ar.
De certo modo, o ponto de vista do Partido impunha-se com mais êxito às pessoas incapazes de compreendê-lo. Aceitavam as mais flagrantes violações da realidade porque jamais percebiam inteiramente a enormidade do que se lhes exigia, e não estavam suficientemente interessadas para observar o que acontecia. Graças à falta de compreensão permaneciam sãs de juízo. Apenas engoliam tudo, e o que engoliam não lhes fazia mal, porque não deixava resíduo, do mesmo modo que um grão de milho passa, sem ser digerido, pelo corpo de uma ave.
Quando se ama alguém, ama-se, e quando não se tem nada mais para lhe dar, ainda se lhe dá amor.
(…) Eram governados por lealdades particulares que não punham em dúvida. O que importava eram as relações individuais, e podia ter valor em si um gesto completamente irrelevante, um abraço, uma lágrima, uma palavra dita a um moribundo. De repente, ocorreu-lhe que os proles tinham continuado assim. Não eram leais a um partido, país ou ideologia, eram leais aos seus semelhantes. Pela primeira vez na vida não desprezou os proles nem pensou neles apenas como força inerte que um dia ganharia vida e regeneraria o mundo. Os proles tinham continuado humanos. Não se haviam endurecido por dentro. Haviam conservado as emoções primitivas que ele próprio tivera de reaprender por esforço consciente.
(…)Eles podiam reconstitui-los procedendo a averiguações ou e arrancá-los ao preso pela tortura. Mas se o objetivo era não tanto continuar vivo como continuar humano, que diferença poderia fazer, no fim? Não podiam alterar os sentimentos do indivíduo: nem ele próprio o consegue, mesmo que o deseje. Podiam desnudar, nos mínimos detalhes, tudo quanto houvesse feito, dito ou pensado; mas o mais fundo do coração, cujo funcionamento é um mistério para o próprio indivíduo, continuava inexpugnável.
Desde que se começou a escrever a história, e provavelmente desde o fim do Período Neolítico, tem havido três classes no mundo, Alta, Média e Baixa. Têm-se subdividido de muitas maneiras, receberam inúmeros nomes diferentes, e sua relação quantitativa, assim como sua atitude em relação às outras, variaram segundo as épocas; mas nunca se alterou a estrutura essencial da sociedade. Mesmo depois de enormes comoções e transformações aparentemente irrevogáveis, o mesmo diagrama sempre se restabeleceu, da mesma forma que um giroscópio em movimento sempre volta ao equilíbrio, por mais que seja empurrado deste ou daquele lado.
Os objetivos desses três grupos são inteiramente irreconciliáveis…
O objectivo da Alta é ficar onde está. O da Média é trocar de lugar com a Alta. E o objetivo da Baixa, quando tem objectivo - pois é característica constante da Baixa viver tão esmagada pela monotonia do trabalho quotidiano que só intermitentemente tem consciência do que existe fora de sua vida - é abolir todas as distinções e criar uma sociedade em que todos sejam iguais.
Assim, por toda a história, trava-se repetidamente uma luta que é a mesma em seus traços gerais. Por longos períodos a Alta parece firme no poder, porém mais cedo ou mais tarde chega um momento em que, ou perde a fé em si própria ou a sua capacidade de governar com eficiência, ou ambas. É então derrubada pela Média, que atrai a Baixa ao seu lado, fingindo lutar pela liberdade e a justiça. Assim que alcança sua meta, a Média joga a Baixa na sua velha posição servil e transforma-se em Alta. Dentro em breve, uma nova classe Média se separa dos outros grupos, de um deles ou de ambos, e a luta recomeça.
Das três classes, só a Baixa nunca consegue, nem o êxito temporário, na obtenção dos seus ideais.
Seria exagero dizer que não se regista na história progresso material. Mesmo hoje, neste período de declínio, o ser humano comum é fisicamente melhor do que há alguns séculos. Mas nenhum progresso em riqueza, nenhuma suavização de maneiras, nenhuma reforma ou revolução jamais aproximou um milímetro a igualdade humana.
Do ponto de vista da Baixa, nenhuma modificação histórica significou mais do que uma mudança do nome dos amos.
Por volta dos fins do século dezanove, a recorrência do ciclo se tornara óbvia- a muitos observadores. Surgiram então escolas filosóficas que interpretavam a história como um processo cíclico e protestavam que a desigualdade era a lei inalterável da vida humana.
Essa doutrina, naturalmente, sempre teve seus adeptos, mas na maneira pela qual foi então exposta havia uma transformação significativa. No passado, fora uma doutrina especificamente da Alta a necessidade de uma forma hierárquica de sociedade. Fora pregada por reis, aristocratas e sacerdotes, advogados, etc., que a parasitavam, e fora geralmente amaciada por promessas de recompensa num mundo imaginário de além-túmulo. A Média, enquanto lutou pelo poder, sempre fez uso de termos tais como liberdade, justiça e fraternidade.
Agora, todavia, o conceito de fraternidade humana começou a ser assaltado pelos que ainda não se encontravam em posições de mando, porém esperavam conquistá-las em breve. No passado a Média fizera revoluções sob a bandeira da igualdade, estabelecendo nova tirania assim que derrubava a antiga. Com efeito, os novos grupos Médios proclamavam antecipadamente sua tirania. O socialismo, teoria aparecida no início do século dezanove é o último elo duma cadeia de pensamento que se iniciava nas rebeliões dos escravos antigos, ainda estava profundamente impregnado pelo Utopismo do passado.
Mas em cada variante de Socialismo que apareceu de 1900 para cá, o propósito de estabelecer a liberdade e a igualdade ia sendo abandonado cada vez mais abertamente.
Os novos movimentos, que apareceram em meados do século, o Ingsoc na Oceânia, o Neo-bolchevismo na Eurásia, o Culto da Morte, como é comumente chamado, na Lestásia, tinham o propósito consciente de perpetuar a desliberdade e a desigualdade.
Esses novos movimentos, naturalmente, surgiram dos mais antigos e tenderam a conservar o nome e a render tributo à sua ideologia. Mas o propósito de todos era deter o progresso e congelar a história num dado momento. O movimento familiar do pêndulo deveria ter lugar mais uma vez, e depois parar. Como de hábito, a Alta devia ser posta abaixo pela Média, que então se tornaria a Alta; desta vez porém a Alta, por meio de uma estratégia consciente, conseguiria manter permanentemente sua posição.
As novas doutrinas nasceram em parte por causa do acúmulo de conhecimento histórico, e o crescimento do sentido histórico, que mal existira antes do século dezanove. O movimento cíclico da história era agora inteligível ou parecia ser; e, sendo inteligível, era alterável. Mas a causa principal, subexistente, era que, desde o começo do século vinte, a igualdade humana se tornara tecnicamente possível. Verdade ainda que os homens não eram iguais nos seus talentos inatos e que as funções tinham de ser especializadas de maneira que favoreciam uns indivíduos contra outros; porém não havia mais nenhuma necessidade real de distinção de classe nem de grandes diferenças de fortuna.
Em épocas anteriores, as distinções não tinham sido apenas inevitáveis como desejáveis. A desigualdade era o preço da civilização. Todavia, com o desenvolvimento da produção à máquina, alterou-se o caso. Mesmo que ainda fosse necessário aos seres humanos desempenhar diferentes tipos de profissão, já não era preciso que vivessem em diferentes níveis sociais ou económicos.
Portanto, do ponto de vista dos novos grupos que se preparavam a tomar o poder, a igualdade humana não era mais um ideal a atingir, era um perigo a evitar.
Em épocas mais primitivas, quando de facto não era possível uma sociedade justa e pacífica, fora bem fácil acreditar nela. A ideia de um paraíso terreno em que os homens vivessem juntos num estado de fraternidade, sem leis nem trabalho brutal, incendiara durante milhares de anos a imaginação humana. E essa visão tinha certo fascínio mesmo sobre os grupos que realmente se beneficiaram de cada mudança histórica. Os herdeiros das revoluções inglesas, francesa e americana haviam parcialmente acreditado nas suas próprias frases a respeito dos direitos do homem, liberdade de palavra, igualdade perante a lei, e quejandas, e até haviam permitido que sua conduta fosse por elas influenciada, dentro de certos limites.
Mas ao advir a quarta década do século vinte, eram autoritárias todas as principais correntes de pensamento político. O paraíso terreno desacreditara-se no momento exato em que se tornara realizável. Cada nova teoria política, fosse qual fosse o seu rótulo, conduzia de novo à hierarquia e à arregimentação.
E no endurecimento geral de atitudes verificado por volta de 1930, práticas que há longo tempo tinham sido abandonadas, em alguns casos durante séculos - prisão sem julgamento, uso de prisioneiros de guerra como escravos, execuções públicas, tortura para arrancar confissões, o uso de reféns e deportação de populações inteiras - não só voltaram a ser comuns como eram toleradas e até defendidas por pessoas que se consideravam esclarecidas e progressistas.
Os grupos governantes foram sempre infestados, até certo ponto, de ideias liberais, e contentavam-se em deixar as pontas soltas por toda parte, considerando apenas o acto patente e desinteressando-se pelo raciocínio dos seus súditos. Em parte a razão deste facto residia na impossibilidade dos governos do passado manterem sob constante vigilância os seus cidadãos.
A invenção da imprensa, contudo, tornou mais fácil manipular a opinião pública, processo que o filme e a rádio levaram além. Com o desenvolvimento da televisão, e o progresso técnico que tornou possível receber e transmitir simultaneamente pelo mesmo instrumento, a vida particular acabou. Cada cidadão, ou pelo menos cada cidadão suficientemente importante para merecer espionagem, passou a poder ser mantido vinte e quatro horas por dia sob os olhos da polícia e ao alcance da propaganda oficial, fechados todos os outros canais de comunicação. Existia pela primeira vez a possibilidade de impor não apenas a completa obediência à vontade do Estado como também a completa uniformidade de opinião em todos os súbditos.
Depois do período revolucionário de 1950 a 1970, a sociedade reagrupou-se, como sempre, em Alta, Média e Baixa. Mas a nova Alta, ao contrário das antecessoras, não agia por instinto: sabia o que era preciso para garantir sua posição. Havia muito tempo que se percebera que a única base segura da oligarquia é o colectivismo. A riqueza e o privilégio são mais fáceis de defender quando possuídos em conjunto. A chamada "abolição da propriedade privada", que se verificou em meados do século, significou, com efeito a concentração da propriedade em número muito menor de mãos, mas com a diferença de que os novos donos eram um grupo em vez de uma massa de indivíduos. Individualmente, nenhum membro do Partido possui coisa alguma, excepto ninharias pessoais. Colectivamente, o Partido é dono de tudo na Oceania, porque tudo controla, e dispõe dos seus produtos como bem lhe parece. Nos anos que se seguiram à Revolução, conseguiu galgar quase sem oposição esse posto de comando, porque todo o processo foi apresentado como ato de coletivização. Sempre se imaginara que se a classe capitalista fosse expropriada, o Socialismo adviria: e inquestionavelmente os capitalistas tinham sido expropriados. Fábricas, minas, terras, casas, transporte - tudo lhes fora tomado: e dado que -não eram mais propriedade particular, evidentemente deviam ser propriedade pública. O Ingsoc, que brotou do movimento socialista anterior e dele herdou a fraseologia, com efeito executara o principal do programa socialista. E o resultado, previsto e pretendido antecipadamente, fora tornar permanente a desigualdade económica.
Mas vão mais fundo os problemas de perpetuar a sociedade hierárquica. Só há quatro modos de um grupo governante abandonar o poder. Ou é vencido de fora, ou governa tão ineficientemente que as massas são levadas à revolta, ou permite o aparecimento de um grupo médio forte e descontente, ou perde a confiança em si e a disposição de governar. Essas causas não funcionam de per si, e via de regra as quatro se apresentam em diferentes proporções.
Uma classe dominante que e possa salvaguardar contra as quatro permaneceria eternamente no poder. No fim de contas, o fator determinante é a atitude mental da própria classe dominante.
Depois de meados deste século, desapareceu o primeiro perigo. As três potências em que o mundo se dividiu são de fato invencíveis, e só poderiam se tornar vulneráveis por meio de lentas mutações demográficas que um governo com amplos poderes consegue evitar facilmente. O segundo perigo, também é apenas teórico. As massas nunca se revoltarão espontaneamente, e nunca se revoltarão apenas por serem oprimidas. Com efeito, se não se lhes permite ter padrões de comparação -nem ao menos se darão conta de que são oprimidas. As crises económicas decorrentes do passado eram totalmente desnecessárias e hoje já não se podem verificar, mas podem suceder outros deslocamentos igualmente grandes, sem que haja resultados políticos, por não existir maneira de articular o descontentamento e dar-lhe vasão. No que tange ao problema da superprodução, latente na nossa sociedade desde o desenvolvimento da técnica da máquina, é resolvido por meio do método da guerra contínua (vide Capítulo 3), também útil para manter o moral público no diapasão desejado. Do ponto de vista dos nossos actuais governantes, portanto, os únicos perigos genuínos são a formação de um novo grupo de gente capaz, sem muito trabalho, e faminta de poder, e o crescimento do liberalismo e do cepticismo nas suas fileiras governamentais.
Isto é, o problema é educacional. É um problema de moldar continuamente a consciência tanto do grupo dirigente como do grupo executivo, mais amplo, que fica logo abaixo dele. - A consciência das massas precisa ser influenciada apenas de modo negativo.
Dados estes esclarecimentos, poder-se-ia inferir, se já não se conhecesse, a estrutura geral da sociedade oceânica. No alto da pirâmide está o Grande Irmão. O Grande Irmão é omnipotente. Cada sucesso, realização, vitória, descobrimento científico, toda a sabedoria, sapiência, virtude, felicidade, são atribuídos directamente à sua liderança e inspiração. Ninguém nunca viu o Grande Irmão. É uma cara nos tapumes, uma voz das teletelas. Podemos ter razoável certeza de que nunca morrerá, e já existe considerável incerteza da data em que nasceu. O Grande Irmão é a forma em que o Partido se resolveu apresentar ao mundo. Sua função é a de ponte focal para o amor, medo, reverência, emoções que podem mais facilmente ser sentidas em relação a um indivíduo do que a uma organização. Abaixo do Grande Irmão vem o Partido Interno, com os seus seis milhões de membros, ou seja, menos de dois por cento da população da Oceânia. Abaixo do Partido Interno vem o Externo, que pode ser chamado de mãos do Estado, se ao primeiro se atribuir o papel de cérebro. Abaixo dele vem a massa muda a que nos referimos habitualmente por "proles" e que talvez constitua oitenta e cinco por cento da população. Nos termos da nossa classificação anterior, os proles são a Baixa. Em princípio, não é hereditária a participação em qualquer dos três grupos. Filho de pais do Partido Interno não é, em teoria, a ele filiado. A admissão a qualquer das esferas do Partido faz-se por exame, prestado aos dezasseis anos. Não há nenhuma discriminação racial, nem qualquer pronunciado domínio de uma província sobre outra. Encontram-se judeus, negros, sul-americanos de puro-sangue índio nos postos mais elevados do Partido, e os administradores regionais são sempre convocados dentre os naturais da área. Em nenhuma parte da Oceânia têm os habitantes a impressão de ser colonia administrada de uma longínqua capital. A Oceânia não tem capital, e o seu chefe titular é uma pessoa cujo paradeiro todos ignoram. Não é centralizada de modo algum, à excepção da língua franca, que é o inglês, e da Novilíngua, que é o idioma oficial. Seus governantes não são ligados por laços de consanguinidade mas pela obediência a uma doutrina comum. É verdade que a nossa sociedade é estratificada, e muito rigidamente, segundo o que - à primeira vista - parecem ser linhas hereditárias. Há muitíssimo menos movimento de vai e vem entre os grupos diferentes do que acontecia no capitalismo ou mesmo nos períodos pré-industriais.
Entre os dois ramos do Partido existe certa dose de intercâmbio, cujo único propósito, porém, é permitir a exclusão dos fracos do Partido Interno e a neutralização dos mais ambiciosos militantes do Partido Externo, guindados a uma esfera mais elevada.
Na prática, os proletários não têm direito de entrar para o Partido. Os mais bem dotados, que poderiam se tornar núcleos de descontentamento, são simplesmente assinalados pela Polícia do Pensamento e eliminados. Mas esse estado de coisas não é necessariamente permanente, nem é questão de princípio.
O Partido não é uma classe no antigo sentido da palavra. Não tem por objetivo transmitir o poder aos próprios filhos; e se não houvesse outro meio de conservar os mais capazes nos postos de comando, estaria perfeitamente disposto a recrutar toda uma geração nova das fileiras do proletariado.
Nos anos cruciais, muito contribuiu para neutralizar a oposição o facto de o Partido não ser um organismo hereditário. O antigo tipo de socialista, treinado a lutar contra o que às vezes se chamava "privilégio de classe," supunha que o que não fosse hereditário não podia ser permanente. Não percebia que a continuidade de uma oligarquia não precisava ser física, nem fazia pausa para reflectir que as aristocracias hereditárias sempre tiveram vida curta, enquanto que organizações auto-renovantes, como a Igreja Católica, às vezes duram centenas e mesmo milhares de anos.
A essência do jugo oligárquico não é a herança de pai para filho, mas a persistência de certo ponto de vista em face do mundo e de certa maneira de viver, imposta aos vivos pelos mortos. Um grupo dominante só continua mandando enquanto consegue nomear os seus sucessores. O Partido não se interessa pela perpetuação do seu sangue, mas pela perpetuação da entidade. O que importa não é quem maneja o poder, contanto que permaneça sempre a mesma a estrutura hierárquica.
Todas as crenças, hábitos, gostos, emoções e atitudes mentais que caracterizam a nossa época são realmente destinados a sustentar a mística do Partido e impedir que se perceba a verdadeira natureza da sociedade actual.
A rebelião física não é possível no momento, nem qualquer preliminar de rebelião.
Dos proletários nada há a temer. Entregues a si mesmos, continuarão, de geração em geração e de século a século, trabalhando, procriando e morrendo, não apenas sem qualquer impulso de rebeldia, como sem capacidade de descobrir que o mundo poderia ser diferente do que é. Só poderiam ficar mais perigosos se o progresso da técnica industrial tornasse necessário educá-los mais; porém, como a rivalidade militar e comercial já não tem importância, declina o nível da educação popular. As opiniões das massas, ou a ausência dessas opiniões, são alvo da máxima indiferença. Não é possível dar-lhes liberdade intelectual porque não possuem intelecto.
Num membro do Partido, por outro lado, não se pode tolerar nem o menor desvio de opinião a respeito do assunto menos importante. O membro do Partido vive, do berço à cova, sob os olhos da Polícia do Pensamento. Mesmo quando está sozinho jamais pode ter certeza do seu isolamento. Onde quer que esteja, dormindo ou acordado, trabalhando ou descansando, no banho ou na cama, pode ser examinado sem aviso e sem saber que o examinam. Nada do que ele faz é indiferente. As suas amizades, os seus divertimentos, a sua conduta em relação à esposa e aos filhos, a expressão de seu rosto quando está só, as palavras que murmura no sono, e até os movimentos característicos do seu corpo, é tudo ciosamente analisado. É certo que descobrem não apenas as mais minúsculas infrações, como qualquer excentricidade, por pequena que seja, qualquer modificação de hábitos, qualquer maneirismo nervoso que possa ser o sintoma duma luta íntima. Não tem liberdade de escolha em direção alguma.
Por outro lado, seus actos não são regulados pela lei nem por nenhum código legal, claramente formulado. Na Oceânia não existe lei. Pensamentos e actos que, descobertos, resultariam em morte certa, não são formalmente proibidos, e os intermináveis expurgos, prisões, torturas, detenções e vaporizações não são infligidos como castigo por crimes realmente cometidos, mas são apenas a liquidação de pessoas que poderiam talvez cometer um crime no futuro.
O membro do Partido não só deve ter as opiniões certas, como os instintos certos. Muitas das crenças e atitudes dele exigidas nunca são declaradas abertamente, e não poderiam ser esmiuçadas sem pôr a nu as contradições inerentes do Ingsoc. Se for uma pessoa naturalmente ortodoxa (em Novilíngua bem-pensante), saberá, em todas as circunstâncias, sem precisar raciocinar, qual é a verdadeira crença e a emoção desejável. Mas, de qualquer maneira, um trabalhoso treino mental, a que se submeteu na infância, e que gira em torno das palavras novilinguísticas crimedeter, negrobranco e duplipensar, faz com que ele não tenha nem disposição nem capacidade para pensar a fundo em coisa alguma.
Espera-se que o membro do Partido não tenha emoções pessoais nem lapsos de entusiasmo. Supõe-se que viva num frenesi contínuo de ódio aos inimigos estrangeiros e aos traidores internos, de gozo ante as vitórias e de auto degradação perante o poderio e a sabedoria do Partido.
Os descontentamentos produzidos por essa vida nua e insatisfatória são deliberadamente purgados e dissipados por estratagemas tais como os Dois Minutos de ódio, e as especulações que poderiam vir a induzir uma atitude de cepticismo ou de rebeldia são antecipadamente suprimidas pela disciplina aprendida na infância. O primeiro e mais simples estágio dessa disciplina, e pelo qual passam até as crianças de tenra idade, chama-se, em Novilíngua, crimedeter.
Crimedeter é a faculdade de deter, de paralisar, como por instinto, no limiar, qualquer pensamento perigoso. Inclui o poder de não perceber analogias, de não conseguir observar erros de lógica, de não compreender os argumentos mais simples e hostis ao Ingsoc, e de se aborrecer ou enojar por qualquer trem de pensamentos que possa tomar rumo herético. Crimedeter, em suma, significa estupidez protectora. Mas estupidez não basta. Pelo contrário, a ortodoxia, na sua expressão lata, exige sobre o processo mental do indivíduo controle tão completo quanto o de um contorcionista sobre seu corpo.
Em última análise, a sociedade oceânica repousa na crença de que o Grande Irmão é omnipotente e o Partido infalível. Mas como na realidade nem o Grande Irmão é omnipotente nem o Partido infalível, é preciso haver uma incansável flexibilidade, de momento a momento, na interpretação dos fatos. Aqui, a palavra chave é negrobranco. Como tantas outras palavras da Novilíngua, esta tem dois sentidos mutuamente contraditórios.
Aplicada a um adversário, caracteriza o hábito de afirmar impudentemente que o negro é branco, em contradição aos factos evidentes. Aplicada a um membro do Partido, significa leal disposição de dizer que o preto é branco quando o Partido o exige. Significa, também, a capacidade de acreditar que o preto é branco, e mais ainda, de saber que o preto é branco, e de acreditar que jamais se imaginou o contrário. Isto exige contínua alteração do passado, possibilitada pelo sistema de raciocínio que na verdade abrange tudo o mais, e que em Novilíngua se chama duplipensar.
A alteração do passado é necessária por duas razões, uma das quais é subsidiária e, por assim dizer, precautória. A razão subsidiária é de que o membro do Partido, como o proletário, tolera as condições actuais em parte por não possuir padrões da comparação. Deve ser isolado do passado, da mesma forma que deve ser isolado do estrangeiro, porque lhe é necessário crer que vive melhor que os ancestrais e que o nível médio de conforto material sobe constantemente. Todavia, a razão mais importante para o reajuste do passado é a necessidade de salvaguardar a infalibilidade do Partido. Não significa apenas que se modifiquem discursos, estatísticas e registos de todo género para demonstrar que as predições do Partido são sempre certas. É que não se pode admitir, jamais, nenhuma modificação de doutrina ou de agrupamento político.
Mudar de ideia, ou de política, é confessar fraqueza. Se, por exemplo, a Eurásia ou a Lestásia (qualquer das duas) for a inimiga de hoje, então aquele país deve ter sido sempre o inimigo. E se os factos dizem coisas diferentes, então é preciso alterá-los. Assim se reescreve continuamente a história. Essa falsificação quotidiana do passado, realizada pelo Ministério da Verdade, é tão necessária à estabilidade do regime como o trabalho de repressão e espionagem levado a cabo pelo Ministério do Amor.
A mutabilidade do passado é o dogma central do Ingsoc. Agúe-se que os acontecimentos passados não têm existência objetiva, porém só sobrevivem em registos escritos e na memória humana. O passado é o que dizem os registos e as memórias. E como o Partido tem pleno controlo de todos os registros, e igualmente do cérebro dos seus membros, segue-se que o passado é o que o Partido deseja que seja. Segue-se também que embora o passado seja alterável, jamais foi alterado num caso específico. Pois quando é re-escrito na forma conveniente, a nova versão passa a ser o passado, e nada diferente pode ter existido. Isto aplica-se mesmo quando, como acontece com frequência, o mesmo sucesso tem de ser alterado várias vezes no decurso de um ano.
Todas as vezes o Partido é detentor da verdade absoluta, e claramente o absoluto não pode nunca ser diferente do que é agora. Ver-se-á que o controle do passado depende, acima de tudo, do treino da memória. Não passa de acto mecânico certificar-se de que todos os registos escritos concordam com a ortodoxia do momento. Mas também é necessário recordar que os acontecimentos se deram da maneira desejada. E se for necessário rearranjar as lembranças de cada um, ou alterar os registros escritos, então é necessário esquecer que assim se procedeu. Esse é um truque que pode ser aprendido como se aprende qualquer outra técnica mental. É aprendido pela maioria dos membros do Partido e certamente por todos que são tão inteligentes quanto ortodoxos. Em Anticlíngua chama-se, com toda a franqueza, "controlo da realidade." Em Novilíngua, chama-se duplipensar, conquanto duplipensar abranja muita coisa mais. Duplipensar quer dizer a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias, e aceitá-las ambas.
O intelectual do Partido sabe em que direção suas lembranças devem ser alteradas; portanto sabe que está aplicando um truque na realidade; mas pelo exercício do duplipensar ele convence-se também de que a realidade não está sendo violada. O processo tem que ser consciente, ou não seria realizado com a precisão suficiente, mas também deve ser inconsciente, ou provocaria uma sensação de falsidade e, portanto, de culpa.
O duplipensar é a pedra basilar do Ingsoc, já que a acção essencial do Partido é usar a fraude consciente ao mesmo tempo que conserva a firmeza de propósito que acompanha a honestidade completa. Dizer mentiras deliberadas e nelas acreditar piamente, esquecer qualquer facto que se haja tornado inconveniente, e depois, quando de novo se tornar preciso, arrancá-lo do olvido o tempo suficiente à sua utilidade, negar a existência da realidade objetiva e ao mesmo tempo perceber a realidade que se nega - tudo isso é indispensável.
Mesmo no emprêgo da palavra duplipensar é necessário duplipensar. Pois, usando-se a palavra admite-se que se está mexendo na realidade; é preciso um novo ato de duplipensar para apagar essa percepção e assim por diante, indefinidamente, a mentira sempre um passo além da realidade.
Em última análise, foi por meio do duplipensar que o Partido conseguiu - e, tanto quanto sabemos, continuará, milhares de anos - deter o curso da história. No passado, as oligarquias caíram do poder por se ossificarem ou se amolecerem. Ou se tornaram estúpidas e arrogantes, deixando de se ajustar às novas circunstâncias, e foram derrubadas; ou se tornaram liberais e covardes, fizeram concessões quando deviam ter usado força, e por isso foram apeadas do poder. Em outras palavras, caíram pela consciência ou a inconsciência.
A grande obra do Partido é ter produzido um sistema de pensamento no qual ambas as condições podem co-existir. Não poderia ser permanente o domínio do Partido em nenhuma outra base intelectual. Para se dominar, e continuar dominando, é preciso deslocar o sentido de realidade. Pois o segredo do mando é combinar a crença na própria infalibilidade com a capacidade de aprender com os erros anteriores. Não há quase necessidade de dizer que os mais subtis praticantes do duplipensar são os que o inventaram e sabem que é um vasto sistema de fraude mental.
Em nossa sociedade, os que têm o melhor conhecimento do que sucede são também os que estão mais longe de ver o mundo tal qual é. Em geral, quanto maior a compreensão, maior a ilusão: quanto mais inteligente, menos ajuizado. Nítida ilustração desta afirmativa é o fato da histeria de guerra aumentar de intensidade à medida que se sobe na escala social.
Aqueles cuja atitude em face da guerra é mais próxima da sensatez são povos submissos dos territórios disputados. Para eles a guerra não passa de uma calamidade contínua que se diverte a jogá-los de um lado para outro como um maremoto. É-Ihes completamente indiferente saber quem está ganhando. Percebem que a mudança de donos significa apenas que farão o mesmo trabalho que antes para os novos amos, que os tratarão como os tratavam os antigos.
Os operários ligeiramente mais favorecidos a que chamamos "proles" têm consciência intermitente da guerra. Quando é necessário, são instigados e levados a frenesis de ódio e medo, mas, entregues a si próprios, são capazes de esquecer, por longos períodos, que a guerra está acontecendo.
É nas fileiras do Partido, e acima de tudo do Partido Interno, que se encontra o verdadeiro entusiasmo de guerra. Acreditam na conquista do mundo, com maior firmeza, aqueles que a sabem impossível. Essa particularíssima amálgama de opostos - sabedoria e ignorância, cinismo e fanatismo - é um dos sinais que distinguem a sociedade oceânica. A ideologia oficial abunda em contradições mesmo onde não há para elas qualquer razão prática.
Assim, o Partido rejeita e vilifica qualquer princípio originalmente defendido pelo movimento socialista, e no entanto o faz em nome do socialismo. Prega um desdém pela classe operária de que não há exemplo há muitos séculos, e todavia veste os militantes num uniforme que foi característico dos trabalhadores manuais e adotado por essa razão. Mina sistematicamente a solidariedade da família, ao passado que dá ao seu chefe um nome que é um apelo direto ao sentimento de lealdade familiar. Até os nomes dos quatro Ministérios por que somos governados ostentam uma espécie de impudência na sua deliberada subversão dos factos. O Ministério da Paz ocupa-se da guerra, o da Verdade com as mentiras, o do Amor com a tortura e o da Fartura com a fome. Essas contradições não são acidentais, nem resultam de hipocrisia ordinária: são exercícios conscientes de duplipensar. Pois é só reconciliando contradições que se pode reter indefinidamente o poder. De nenhuma outra maneira seria possível quebrar o antigo ciclo. Se é preciso impedir para sempre a igualdade humana - se, como a chamamos, a Alta deve conservar permanentemente sua posição - então a condição mental deve ser a de insânia controlada.
Mas há outra questão que, até este momento, não consideramos. E é esta: por que se deve impedir a igualdade humana? Suponhamos que tenha sido bem descrita a mecânica do processo: qual é o motivo desse vasto e bem calculado esforço para congelar a história num determinado instante? Aqui chegamos ao segredo central. Como vimos, a mística do Partido e, acima de tudo, do Partido Interno, depende do duplipensar. Mais fundo do que isto, porém, há o motivo original, o instinto jamais posto em dúvida, que primeiro levou à conquista do poder e gerou o duplipensar, a Polícia do Pensamento, a guerra contínua e todo o restante equipamento necessário. Esse motivo realmente consiste...
Cada um destes superestados é tão vasto que possui em seu próprio território quase todos os materiais de que necessita. Na medida em que a guerra tem um objetivo económico direto, é uma guerra pela mão-de-obra.(…) Todos os territórios disputados contêm valiosos minerais, e alguns produzem importantes produtos vegetais, tais como borracha, que nos climas mais frios é necessário sintetizar por métodos relativamente caros. Acima de tudo, porém, contêm uma prodigiosa reserva de mão-de-obra barata. (…) dispõe de massas de dezenas ou centenas de milhões de peões diligentes e mal pagos.
(…) a histeria guerreira é contínua e universal em todos os países, e actos tais como estupros, pilhagens, matança de crianças e escravização de povoações inteiras, e represálias contra prisioneiros que chegam a incluir a morte pela água fervente e o enterro de seres vivos, são considerados normais, e até meritórios, quando cometidos pelos amigos, e não pelo inimigo. Os motivos já parcialmente presentes nas grandes guerras do início do século vinte tornaram-se, dominantes e são agora reconhecidos conscientemente, e levados em consideração.
Desde que a máquina surgiu, tornou-se claro a todos que sabiam raciocinar que desaparecera em grande parte a necessidade do trabalho braçal do homem e, portanto, a da desigualdade humana. Se a máquina fosse deliberadamente utilizada com esse propósito, a fome, o excesso de trabalho, a sujeira, o analfabetismo e a doença poderiam ter sido eliminados em algumas gerações. E na verdade, sem ter sido usada com esse propósito, porém por uma espécie de processo automático -ao produzir riqueza por vezes impossível de não distribuir - a máquina elevou grandemente o padrão de vida do ser humano comum, num período de uns cinquenta anos, ao fim do século dezanove e no começo do vinte.
Tornou-se também claro que o aumento total da riqueza ameaça a destruição - com efeito, de certo modo era a destruição - de uma sociedade hierárquica. Num mundo em que todos trabalhassem pouco, tivessem bastante que comer, morassem numa casa com w.c. e frigorífico, e possuíssem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a riqueza não conferia distinção. Era possível, sem dúvida, imaginar uma sociedade em que a riqueza, no sentido de posse pessoal de bens e luxos, fosse igualmente distribuída, ficando o poder nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas na prática tal sociedade não poderia ser estável. Pois se o lazer e a segurança fossem por todos fruídos, a grande massa de seres humanos normalmente estupidificada pela miséria aprenderia a ler e aprenderia a pensar por si; e uma vez isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde veria que não tinha função a minoria privilegiada, e acabaria com ela.
De maneira permanente, uma sociedade hierárquica só é possível com base na pobreza e na ignorância.
Regressar ao passado agrícola, como imaginaram alguns pensadores no começo do século vinte, não era solução praticável. Entrava em conflito com a tendência para a mecanização, que se tornara quase que instintiva em todo o mundo, e além disso, qualquer país que permanecesse industrialmente atrasado ficaria indefeso militarmente e estaria fadado a ser dominado, directa ou indirectamente, pelos rivais mais progressistas.
Tampouco era solução satisfatória manter as massas na miséria restringindo a produção de bens. Isto aconteceu, em grande parte, durante a fase final do capitalismo, mais ou menos entre 1920 e 1940. Permitiu-se que estagnasse a economia de muitos países, a terra deixou de ser cultivada, não se investiu nos equipamentos de base, grandes grupos da população foram impedidos de trabalhar e mantidos no extremo da sobrevivência por meio de caridade estatal. Mas isto também provocava debilidade militar, e sendo as privações infligidas manifestamente desnecessárias, a revolta tornava-se inevitável. O problema era manter em movimento as rodas da indústria sem aumentar a riqueza real do mundo. Era preciso produzir bens, porém não distribui-los. E, na prática, a única maneira de o realizar é pela guerra contínua.
O essencial da guerra é a destruição, não necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos do trabalho humano. A guerra é um meio de despedaçar, ou de libertar na estratosfera, ou de afundar nas profundezas do mar, materiais que doutra forma teriam de ser usados para tornar as massas demasiado confortáveis e portanto, com o passar do tempo, inteligentes. Mesmo quando as armas de guerra não são destruídas, sua manufatura ainda é um modo conveniente de gastar mão-de-obra sem produzir nada que se possa consumir.
Uma Fortaleza Flutuante, por exemplo, contém trabalho suficiente para construir várias centenas de navios cargueiros. Depois de algum tempo é desmantelada, por obsoleta, sem ter trazido benefício material a ninguém, e com novo e enorme esforço, constrói-se outra.
Em princípio, o esforço bélico é sempre planeado de maneira a consumir qualquer excesso que possa existir depois de satisfeitas as necessidades mínimas da população.
Na prática, as necessidades da população são sempre subestimadas, e o resultado é haver uma escassez crônica de metade dos essenciais mas isto é considerado vantagem. É uma política consciente manter perto do sofrimento até os grupos favorecidos porquanto o estado geral de escassez aumenta a importância dos pequenos privilégios e assim amplia a distinção entre um grupo e outro.
Pelos padrões do início do século vinte, até mesmo um membro do Partido Interno leva vida austera e laboriosa. Não obstante, os poucos luxos de que goza, o apartamento espaçoso e bem mobiliado, a melhor qualidade da sua roupa, a superioridade da sua comida, bebida e fumo, seus dois ou três criados, seu automóvel ou helicóptero particular, colocam-no numa esfera diferente de um membro do Partido Externo, que por sua vez tem vantagens semelhantes em comparação com as massas submersas a que chamamos "proles".
A atmosfera social é de uma cidade sitiada, onde a posse de um pedaço de carne de cavalo diferencia entre a riqueza e a pobreza. E, ao mesmo tempo, a consciência de estar em guerra e portanto em perigo, faz parecer natural a entrega de todo o poder a uma pequena casta: é uma inevitável condição de sobrevivência.
Veremos que a guerra não apenas realiza a necessária destruição como a efectua de maneira psicologicamente aceitável. Em princípio, seria bastante simples gastar o excesso de mão-de-obra construindo templos e pirâmides, cavando buracos e tornando a enchê-los, ou mesmo produzindo grandes quantidades de mercadorias e queimando-as. Mas isso só daria a base económica, mas não a emocional, de uma sociedade hierárquica. Trata-se aqui não do moral das massas, cuja atitude não tem importância, contanto que sejam mantidas no trabalho, mas do moral do Partido.
Espera-se que até mesmo o mais humilde membro do Partido seja competente, industrioso e inteligente, dentro de estreitos limites. Porém é também necessário que seja um fanático crédulo e ignorante, cujas reações principais sejam medo, ódio, adulação e triunfo orgiástico. Em outras palavras, é necessário que tenha a mentalidade apropriada ao estado de guerra. Não importa que de facto que haja uma guerra e, como não é possível uma vitória decisiva, pouco importa que a guerra vá bem ou mal. O que importa é que possa existir o estado de guerra.
A divisão intelectual que o Partido exige dos seus membros, e que é mais fácil de obter numa atmosfera de guerra, é agora quase universal, porém, quanto mais se sobe nos quadros, mais nítida se torna. É precisamente no Partido Interno que a histeria de guerra e o ódio ao inimigo são mais fortes. Na sua posição de administrador, muitas vezes é necessário a um membro do Partido Interno saber se esta ou aquela notícia de guerra é falsa, e muitas vezes, ele pode perceber que a guerra inteira é uma fraude e que, ou não está sendo travada, ou está sendo travada por objetivos diferentes dos declarados: mas essa consciência é facilmente neutralizada pela técnica do duplipensar. Entrementes, nenhum membro do Partido Interno hesita por um instante na sua crença mística de que a guerra é real, que está fadada a terminar pela vitória, ficando, a Oceânia senhora indisputável do mundo inteiro.
Todos os membros do Partido Interno creem, como num artigo de fé, nessa vitória futura. Será obtida quer pela aquisição gradual de território e, consequentemente, acúmulo de esmagadora preponderância de força, quer pelo descobrimento de uma nova arma irrespondível. A busca de novas armas prossegue sem cessar, e é uma das poucas atividades restantes em que o espírito inventivo ou especulativo se pode expandir.
Atualmente, na Oceania, a ciência quase cessou de existir, no sentido antigo. Em Novilíngua não existe palavra para "ciêncía". O método empírico de raciocínio, no qual se basearam todos os desenvolvimentos científicos passados, se opõe aos princípios fundamentais do Ingsoc. E mesmo o progresso tecnológico só se verifica quando os seus produtos podem ser, de alguma forma, utilizados para limitar a liberdade humana.
Em todas as artes úteis o mundo ou está parado ou retrocede. Os campos são cultivados com arados de tração animal, enquanto os livros são escritos por máquinas. Mas nos assuntos de importância vital - ou seja, a guerra e a espionagem policial - ainda é incentivado o sistema empírico, ou pelo menos tolerado.
As duas metas do Partido são conquistar toda a superfície da terra e extinguir de uma vez para sempre qualquer possibilidade de pensamento independente.
Há, portanto, dois grandes problemas que o Partido deve resolver. Um deles é descobrir o que pensa outro ser humano, e o outro é matar várias centenas de milhões de pessoas em alguns segundos, sem dar aviso prévio. É o assunto da pesquisa científica que ainda subsiste. O cientista de hoje ou é uma mistura de psicólogo e inquisidor, estudando com extraordinária minúcia o significado das expressões faciais, dos gestos, e tons de voz, e verificando os efeitos reveladores das drogas-daverdade, terapia de choque, hipnose e tortura física; ou é quimico, físico ou biólogo só interessado pelos ramos da sua profissão ligados à supressão da vida.
Nos vastos laboratórios do Ministério da Paz, e nas estações experimentais ocultas nas florestas brasileiras ou no deserto australiano, ou nas ilhas perdidas da Antártida, os grupos de peritos continuam a sua missão, infatigáveis. Alguns ocupam-se, simplesmente, de planear a logística de futuras guerras; outros de inventar maiores e ainda maiores bombas-foguete, explosivos cada vez mais poderosos, blindagens mais e mais resistentes; outros buscam novos gases, mais letais, ou venenos solúveis capazes de ser produzidos em quantidades tais que destruam a vegetação de continentes inteiros, ou culturas de germes maléficos imunizados contra todos os anticorpos possíveis; outros se esforçam para produzir um veículo que abra caminho sob a terra como um submarino por baixo de água, ou um aeroplano tão independente da base como um navio de vela; outros ainda exploram possibilidades mais remotas, tais como focalizar os raios do sol através de lentes suspensas a milhares de quilómetros da terra, ou provocar terremotos e maremotos artificiais pela alteração do calor no centro do planeta. Mas nenhum desses projetos jamais se aproxima da realização.
O que é mais notável é que as três já possuem, na bomba atômica, uma arma muito mais poderosa do que as suas actuais pesquisas lhes permitirão descobrir. (…)
A bomba atómica convenceu os grupos dominantes de todos os países de que mais algumas bombas atómicas significariam o fim da sociedade organizada, e consequentemente o do seu próprio poder.
A partir daí, embora nunca se tenha chegado a selar, ou sequer sugerir, qualquer acordo, suspenderam os lançamentos. Todas as potências continuam simplesmente a produzir bombas atómicas e a armazená-las para algum momento decisivo, que todas esperam vir a ter, mais tarde ou mais cedo.
Atrás disto tudo há um fato que se não menciona jamais em voz alta, mas que é tàcitamente compreendido e usado como orientação: ou seja, o de que as condições de vida, nos três super-estados, são mais ou menos as mesmas. Na Oceania, a filosofia dominante é chamada Ingsoc, na Eurásia é chamada Neo-Bolchevismo, e na Lestásia é conhecida por uma palavra chinesa em geral traduzida por Culto da Morte, mas que se poderia melhor chamar Obliteração do Eu. O cidadão da Oceânia não pode saber coisa alguma a respeito dos fundamentos das outras duas filosofias, aprendendo porém a execrá-las como bárbaros ultrajes à moralidade e ao sentido comum.
Na verdade, as três filosofias mal se distinguem umas das outras, e os sistemas sociais de que são base não se distinguem de modo algum. Por toda a parte há a mesma estrutura piramidal, a mesma adoração de um chefe semi-divino, a mesma economia que existe para a guerra contínua. Segue-se que os três super-estados não só não podem vencer um ao outro, como não levariam vantagem se o fizessem. Ao contrário, enquanto continuarem em conflitos, amparam-se uns aos outros, como três fuzis num sarilho.
E, como é praxe, os grupos dominantes das três potências ao mesmo tempo sabem e ignoram o que estão fazendo. Dedicam a vida à conquista do mundo, mas também sabem que é necessário continuar a guerra, sem fim e sem vitória.
Entrementes, o fato de não haver perigo de conquista torna possível a negação da realidade (…)
No passado a guerra era, quase por definição, algo que mais cedo ou mais tarde chegava ao fim, em geral em inconfundível vitória ou derrota. Também no passado, a guerra era um dos instrumentos pelo qual as sociedades humanas se mantinham em contacto com a realidade física. Todos os governantes de todas as épocas têm tentado impor aos seus adeptos uma falsa visão do mundo, mas não se podiam dar ao luxo de encorajar nenhuma ilusão que tendesse a prejudicar a eficiência militar. Considerando que a derrota significava a perda de independência, ou outro resultado geralmente julgado indesejável, era preciso tomar sérias precauções contra a derrota. Não se podia ignorar os fatos físicos.
Na filosofia, religião, ética, ou política, dois e dois podem ser cinco, mas quando se desenha um canhão ou um aeroplano, somam quatro. As nações ineficientes eram vencidas, mais cedo ou mais tarde, e a luta pela eficiência era inimiga das ilusões. Além do mais, para ser eficiente, era necessário saber aprender do passado, o que exigia conhecimento bastante exacto do que sucedera nesse passado. Naturalmente, os jornais e livros de História sempre foram parciais, e coloridos por diversos pontos de vista, mas seria impossível a falsificação na escala hoje praticada.
A guerra assegurava solidamente a lucidez e no que toca às classes dominantes, talvez até mais do que tudo o resto. Quando as guerras se ganhavam ou perdiam nenhuma classe dominante se furtava de todo à responsabilidade.
Quando a guerra é contínua, deixa também de ser perigosa, desaparecem os imperativos militares. O progresso técnico pode cessar e os factos mais palpáveis podem ser negados ou desprezados. Como vimos, as pesquisas que poderiam ser chamadas científicas são ainda levadas a cabo, com finalidades bélicas, mas são, em essência, um sonho vão, e não importa que não dêem o menor resultado. A eficiência não é mais necessária, nem mesmo a eficiência militar.
A realidade só exerce a sua pressão através das necessidades da vida quotidiana - comer e beber, morar e vestir, evitar engolir veneno, cair de janelas do último andar, e coisas semelhantes. Entre a vida e a morte, e entre o prazer físico e a dor física, ainda há uma distinção, mas é só o que subsiste. Sem contacto com o mundo externo e com o passado, o cidadão da Oceania é como um homem no espaço interestelar, que não tem meios de saber se está com a cabeça para baixo ou para cima.
(…)A julgar pelos padrões das guerras passadas, a guerra de hoje é, portanto, uma impostura. É como os combates entre certos ruminantes, cujos chifres são dispostos em ângulo tal que não se podem ferir um ao outro. Entretanto, apesar de irreal, ela tem sentido. Devora os excedentes dos artigos de consumo, e ajuda a conservar a atmosfera mental especial que uma sociedade hierárquica exige.
A guerra, como veremos, é agora assunto puramente interno. No passado, os grupos dominantes de todos os países, não obstante pudessem reconhecer seu interesse comum e, em consequência, limitassem o poder destruidor da guerra, de facto combatiam, e o vencedor sempre saqueava o vencido. Em nossos dias, eles não se combatem uns aos outros. A guerra é travada, pelos grupos dominantes, contra os seus próprios súbditos, e o seu objetivo não é conquistar territórios, nem impedir que os outros o façam, mas manter intacta a estrutura da sociedade.
Daí, o se haver tornado equívoca a própria palavra "guerra." Seria provavelmente correcto dizer que a guerra deixou de existir ao se tornar contínua. A pressão que exerceu sobre os seres humanos entre a Idade Neolítica e o começo do século XX desapareceu e foi substituída por algo bem diferente. O efeito seria mais ou menos o mesmo se os três super-Estados (Oceânia, Eurásia, Lestásia), ao invés de se guerrearem, concordassem em viver em paz perpétua, cada qual inviolado dentro das suas fronteiras. Pois nesse caso ainda seria um universo contido em si próprio, para sempre livre da influência moderadora do perigo externo. Uma paz verdadeiramente permanente seria o mesmo que a guerra permanente. Este - embora a vasta maioria dos membros do Partido só o compreendam num sentido mais raso - é o significado profundo do lema do Partido: Guerra é Paz.
Havia verdade e havia mentira, e não se está louco porque se insiste em se agarrar à verdade mesmo contra o mundo todo. (…)"A sanidade mental não é questão de estatística"
Fitando a mulher na sua atitude característica, os braços grossos alcançando o varal, as ancas muito salientes, fortes, como as de uma égua, ele achou, pela primeira vez, que ela era bonita. Antes, nunca lhe havia ocorrido que pudesse ser belo o corpo de uma mulher de cinquenta anos, ampliado a monstruosas dimensões pelos partos sucessivos, depois enrijada, calejada pelo trabalho até ficar grosseira como um nabo muito maduro. Mas era, e afinal, pensou ele, por que não? O corpo sólido, sem contornos, como um bloco de granito, e a pele vermelha arrepiada, representavam o mesmo, em relação ao corpo de Júlia, que o fruto de uma rosa brava junto à rosa de jardim. Por que seria o fruto considerado inferior à flor?
(…)Tivera a sua floração momentânea, um ano talvez, de beleza de rosa brava, e depois, inchara de repente, como um fruto fertilizado, tornando-se dura, vermelha e rústica, e a sua vida fora apenas lavar, esfregar, remendar, cozinhar, varrer, polir, consertar, esfregar, lavar, primeiro para os filhos, depois para os netos, durante trinta anos sem interrupção. E no fim ainda cantava….
Era curioso pensar que o céu era o mesmo para todos... E o povo que vivia sob o céu era também muito parecido - por toda a parte, em todo o mundo, centenas ou milhares de milhões de pessoas exatamente assim, ignorantes da existência dos outros, separadas por muralhas de ódios e mentiras, e no entanto quase exactamente iguais - gente que nunca aprendera a pensar mas guardava no coração, no ventre e nos músculos a força que um dia revolucionaria o mundo. Se esperança havia, estava nos proles!
E poderia ter a certeza de que, quando chegasse o momento, o mundo que construiriam não lhe seria tão alheio, quanto o mundo do Partido? Sim, porque ao menos seria um mundo de sanidade mental. Onde há igualdade, há sanidade. Mais cedo ou mais tarde aconteceria: a força se transformaria em consciência. Os proles eram imortais. Por fim chegaria o seu despertar. E até que isso acontecesse, nem que levasse mil anos para acontecer, aguentariam vivos contra tudo, como os pássaros, transmitindo de corpo a corpo a vitalidade que o Partido não possuía e que não podia matar.
Os pássaros cantavam, os proles cantavam, o Partido não cantava. No mundo inteiro (…)
(…) a figura sólida (mulher de um prol), invencível, que o trabalho e os partos sucessivos haviam tornado monstruosa, trabalhando desde o nascer até morrer, e sempre cantando. Daqueles corpos robustos viria um dia uma raça de seres conscientes. O futuro era deles. Mas era possível participar desse futuro mantendo o espírito vivo como eles mantinham o corpo, e passar adiante a doutrina secreta de que dois e dois são quatro.
(…)Nunca, por nenhuma razão, se poderia desejar que a dor aumentasse. Da dor, só se podia desejar uma coisa, que parasse. Nada no mundo era tão horrível como a dor física. Em face da dor não há heróis.
O passado existe concretamente, no espaço? Existe em alguma parte um mundo de objetos sólidos, onde o passado ainda acontece?
- Não.
- Então onde é que existe o passado, se é que existe?
- Nos registos. Está escrito.
- Nos registros. E em que mais?
- Na memória. Na memória dos homens.
- Na memória. Muito bem. Nós, o Partido, controlamos todos os registros, e controlamos todas as memórias. Nesse caso controlamos passado, não é verdade?
- Mas como podes impedir que a gente se lembre das coisas? É involuntário. Está fora do indivíduo. Como podes controlar a memória?
- Foste tu que não a controlaste. Por isso estás aqui. Estás aqui porque fracassaste em humildade, em disciplina. Não queres fazer o acto de submissão que é o preço da sanidade. Preferiste ser lunático, minoria de um. Só a mente disciplinada pode enxergar a realidade. Crês que a realidade é algo objetivo, externa, que existe de per si. Acreditas também que é evidente a natureza da realidade. Quando te iludes, e pensas enxergar algo, julgas que todo mundo vê a mesma coisa. Mas eu digo-te, a realidade não é externa. A realidade só existe no espírito, e em nenhuma outra parte. Não na mente do indivíduo, que pode se enganar, e que logo perece. Só na mente do Partido, que é coletivo e imortal. O que quer que o Partido afirme que é verdade é verdade. É impossível ver a realidade excepto pelos olhos do Partido. É esse o facto que deves reaprender. Exige um ato de auto-destruição, um esforço da vontade. Deves-te humilhar antes de recobrar o juízo.
Lembras-te de escreveres no teu diário: "liberdade é a liberdade de escrever que dois e dois são quatro?"
- Lembro.
O'Brien mostrou a mão esquerda, de dorso para Winston, com o polegar oculto e mostrando quatro dedos. - Quantos dedos tenho aqui, Winston?
- Quatro.
- E se o Partido disser que não são quatro, mas cinco... quantos?
- Quatro. A palavra acabou numa exclamação de dor. O ar rasgava-lhe os pulmões e saia de novo em profundos gemidos que nem mesmo trincando os dentes ele conseguia calar.
O'Brien observava-o, com os quatro dedos ainda estendidos. Puxou a alavanca. Desta vez a dor apenas diminuiu um pouco. - Quantos dedos, Winston?
- Quatro. O ponteiro (que media a dor) subiu a sessenta.
- Quantos dedos, Winston?
- Quatro! Quatro! Não posso dizer outra coisa! Quatro! Os dedos estavam na sua frente como colunas, enormes, e pareciam vibrar, mas não havia dúvida de que eram quatro.
- Quantos dedos, Winston?
- Quatro! Pára, pára! Como podes continuar a puxar a alavanca? Quatro! Quatro!
- Quantos dedos, Winston?
- Cinco! Cinco! Cinco!
- Não, Winston. Assim não adianta. Estás mentindo. Ainda achas que são quatro. Quantos dedos, por favor?
- Quatro! Cinco! Quatro! O que quiseres. Mas pára, pára a dor!
- Aprendes devagar, Winston, disse O'Brien, gentilmente.
- Que posso fazer? - choramingou. - Como posso deixar de ver o que está diante dos meus olhos? Dois e dois são quatro.
- Às vezes, Winston. Às vezes são cinco. Às vezes são três. As vezes são as três coisas ao mesmo tempo. Deves fazer maior esforço. Não é fácil recobrar a razão.
- Outra vez - disse O'Brien. A dor percorreu o corpo de Winston. A agulha devia ter atingido setenta, ou setenta e cinco. Desta vez ele fechara os olhos. Sabia que os dedos ainda estavam ali e que ainda eram quatro. A única coisa que importava era continuar vivo até passar o espasmo. Deixou de perceber se chorava ou não. A dor tornou a diminuir. Ele abriu os olhos. O'Brien puxara a alavanca.
- Quantos dedos, Winston?
- Quatro. Imagino que sejam quatro. Veria cinco, se pudesse. Estou tentando ver cinco.
- Que desejas? Convencer-me de que vês cinco, ou de facto vê-los?
- Vê-los de fato.
- Outra vez. O ponteiro devia ter ido a oitenta…noventa talvez. Winston só intermitentemente podia se lembrar porque a dor acontecia. Atrás das pálpebras cerradas, uma floresta de dedos parecia movimentar-se numa espécie de dança, entrando e saindo, desaparecendo atrás dos outros e tornando a aparecer. Tentava contá-los, mas não se lembrava porquê. Só sabia ser impossível contá-los, e que isto se devia à misteriosa identidade entre o quatro e o cinco. A dor diminuiu de novo. Quando abriu os olhos foi verificar que ainda via o mesmo. Inúmeros dedos, como árvores movediças, corriam em todas as direções, cruzando e recruzando seu campo de visão. Tornou a fechar os olhos.
- Quantos dedos estou a mostrar, Winston?
- Não sei. Não sei. Matas-me, se me infligires dor outra vez. Cinco, quatro, seis... sinceramente, não sei. Está melhor.
(…) -Sabes por que te trouxemos? Não é apenas para te extrair uma confissão, nem para te punir. Queres que diga porque foste trazido aqui? Para te curar! Para te salvar da loucura! Compreenderás, Winston, que ninguém, dos que trazemos a este lugar, sai de nossas mãos sem estar curado? Não estamos interessados nos estúpidos crimes que cometeste. O Partido não se interessa pelo ato físico; é com os pensamentos que nos preocupamos. Não apenas destruímos nossos inimigos; nós os modificamos. Compreendes o que quero dizer?
Leste a história das perseguições religiosas na Idade Média, quando havia a inquisição. Foi um fracasso. Tinha por intuito erradicar a heresia, e por fim só conseguiu perpetuá-la. Por cada herege queimado na fogueira, surgiram milhares de outros. Por quê? Porque a inquisição matava os inimigos abertamente, e matava-os quando ainda não se haviam arrependido; com efeito, matava-os porque não se arrependiam. Os homens morriam por se recusarem a abandonar as suas verdadeiras crenças. Naturalmente, toda a glória pertencia à vítima e a vergonha ao Inquisidor que a queimava.
Mais tarde, no século vinte, houve os chamados totalitários. Os nazistas alemães, e os comunistas russos. Os russos perseguiram a heresia mais cruelmente que a inquisição. Imaginavam ter aprendido com os erros do passado; sabiam, ao menos, que era preciso não fazer mártires. Antes de exporem as suas vítimas ao julgamento público, procuravam destruir-lhes deliberadamente a dignidade. Abatiam-nos pela tortura e a solidão, até se transformarem em desprezíveis réprobos, confessando o que lhes fosse posto na boca, cobrindo-se de infâmia, acusando-se e abrigando-se atrás dos outros, choramingando misericórdia. E no entanto, apenas alguns anos mais tarde, a mesma coisa acontecia de novo. Os mortos haviam-se transformado em mártires, e fora esquecida a sua degradação. Mais uma vez, por quê? Em primeiro lugar, porque as confissões que haviam feito eram obviamente extorquidas e falsas.
Nós não cometemos erros desse gênero. Todas as confissões feitas aqui são verdadeiras. Nós as tornamos verdadeiras. E, acima de tudo, não permitimos que os mortos se levantem contra nós. Deves deixar de pensar que a posteridade te reivindicará, Winston. A posteridade jamais ouvirá falar de ti. Serás totalmente eliminado da história. Havemos de te transformar em gás e te soltar na estratosfera. Nada restará de ti: nem um nome num registo, nenhuma lembrança na mente. Serás aniquilado no passado como no futuro. Não terás existido nunca.
Então por que se dá ao trabalho de me torturar? pensou Winston, num momento de amargura.
- És uma falha na urdidura, Winston. És uma nódoa que precisa ser limpa. Não acabei de te dizer que somos diferentes dos promotores do passado? Não nos contentamos com a obediência negativa, nem mesmo com a mais abjecta submissão. Quando finalmente te renderes a nós, deverá ser por tua livre e espontânea vontade. Não destruímos o herege porque nos resista; enquanto nos resiste, nunca o destruímos. Convertemo-lo, capturamos-lhe a mente, damos-lhe nova forma. Nele queimamos todo o mal e toda a alucinação; trazemo-lo para o nosso lado, não em aparência, mas genuinamente, de corpo e alma. Tornamo-lo um dos nossos antes de matá-lo. É-nos intolerável que exista no mundo um pensamento erróneo, por mais secreto e inerme que seja. Nem mesmo no instante da morte podemos admitir um desvio. No passado, o herege caminhava para a fogueira ainda herético, proclamando sua heresia, nela se glorificando. Até a vítima dos expurgos russos conseguia levar a rebelião selada no crânio, enquanto ia pelo corredor à espera do tiro. Mas nós tornamos perfeito o cérebro do individuo antes de matá-lo. A ordem dos antigos despotismos era "tu não farás." Os totalitários -mudaram para "tu farás". Nossa ordem é "tu és." Ninguém, dos que trazemos a este lugar, se volta contra nós.
Não imagines que te salvarás, Winston, por mais completamente que te rendas. Quem se desvia uma vez não é nunca poupado. E mesmo que resolvamos permitir que vivas até ao fim normal da tua vida, não nos escaparás. O que acontece aqui dura para sempre. Compreende isso, antecipadamente. Havemos de te esmagar até ao ponto de onde não se volta. Vão-te acontecer coisas das quais não te poderias recuperar nem que vivesses mil anos. Nunca mais poderás sentir sensações humanas comuns. Tudo estará morto dentro de ti. Nunca mais serás capaz de amor, ou amizade, ou alegria de viver, riso, curiosidade, coragem, ou integridade. Serás oco. Havemos de te espremer, de te deixar vazio, e então saberemos como te encher.
(…)Que o Partido não buscava o poder em seu próprio benefício, mas pelo bem da maioria. Que procurava o poder porque os homens da massa eram criaturas débeis e covardes que não podiam suportar a liberdade nem enfrentar a verdade, e que deviam ser dominados e sistematicamente defraudados por outros, mais fortes que eles. Que para o gênero humano a alternativa era liberdade ou felicidade e que, para a grande maioria, era preferível a felicidade. Que o Partido era o eterno guardião dos fracos, uma seita dedicada fazendo o mal para que o bem pudesse reinar, sacrificando sua própria felicidade à felicidade alheia.
O Partido procura o poder por amor ao poder. Não estamos interessados no bem-estar alheio; só estamos interessados no poder. Nem na riqueza, nem no luxo, nem em longa vida de prazeres: apenas no poder, poder puro. Somos diferentes de todas as oligarquias do passado, porque sabemos o que estamos fazendo. Todas as outras, até mesmo as que se assemelhavam connosco, eram covardes e hipócritas. Os nazistas alemães e os comunistas russos muito se aproximaram de nós nos métodos, mas nunca tiveram a coragem de reconhecer os próprios motivos. Fingiam, talvez até acreditassem, ter tomado o poder sem querer, e por tempo limitado, e que bastava dobrar a esquina para entrar num paraíso onde os seres humanos seriam iguais e livres. Nós não somos assim. Sabemos que ninguém jamais toma o poder com a intenção de largá-lo. O poder não é um meio, é um fim em si. Não se estabelece uma ditadura com o fito de salvaguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a ditadura. O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder. Agora começas a me compreender? (…)Estás a pensar que falo do poder, e no entanto não consigo deter a deterioração do meu próprio corpo. Não podes compreender que o indivíduo é apenas uma célula? O cansaço da célula é o vigor do organismo. Acaso morres quando aparas as unhas? Afastando-se da cama e pôs-se a passear de um lado para outro, com a mão na algibeira. - Somos os sacerdotes do poder - disse. - Deus é poder. Mas no momento, para ti, poder é apenas uma palavra. É tempo de teres uma ideia do que significa poder.
A primeira coisa que deves entender é que o poder é coletivo. O indivíduo só tem poder na medida em que cessa de ser indivíduo. Conheces o lema do Partido: "Liberdade é Escravidão." Já te ocorreu que é reversível? Escravidão é liberdade. Sozinho, livre, o ser humano é sempre derrotado. Assim deve ser, porque todo ser humano está condenado a morrer, que é o maior dos fracassos. Mas se puder realizar uma submissão completa, total, se puder fugir à sua identidade, se puder fundir-se no Partido então ele é o Partido, e é omnipotente e imortal.
A segunda coisa que deves entender é que poder é o poder sobre todos os entes humanos. Sobre o corpo mas, acima de tudo, sobre a mente. O poder sobre a matéria - realidade externa, como a chamarias -não é importante. E o nosso poder sobre a matéria já é absoluto.
- Mas como podes controlar a matéria? - explodiu. - Não consegues nem dominar o clima nem a lei da gravidade. E há a doença, a morte, a dor... O'Brien calou-o com um gesto.
- Controlamos a matéria porque controlamos a mente. A realidade está dentro da cabeça(…)
- O verdadeiro poder, o poder pelo qual temos de lutar dia e noite, não é o poder sobre as coisas, mas sobre os homens.
- Como é que um homem afirma o seu poder sobre outro?
- Fazendo-o sofrer.
- Exatamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta. A menos que sofra, como podes ter certeza de que ele obedece à tua vontade e não à dele? O poder reside em infligir dor e humilhação. O poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender. Começas a distinguir que tipo de mundo estamos criando? É exatamente o contrário das estúpidas utopias hedonísticas que os antigos reformadores imaginavam. Um mundo de medo, traição e tormento, um mundo de pisar ou ser pisado, um mundo que se tornará cada vez mais impiedoso, à medida que se refina. O progresso em nosso mundo será o progresso no sentido de maior dor. As velhas civilizações proclamavam-se fundadas no amor ou na justiça. A nossa funda-se no ódio. Em nosso mundo não haverá outras emoções além do medo, fúria, triunfo e auto-degradação. Destruiremos tudo mais - tudo. Já estamos liquidando os hábitos de pensamento que sobreviveram de antes da Revolução. Cortamos os laços entre filho e pai, entre homem e homem, entre mulher e homem. Ninguém mais ousa confiar na esposa, no filho ou no amigo. Mas no futuro não haverá esposas nem amigos. As crianças serão tomadas das mães ao nascer, como se tiram os ovos da galinha. O instinto sexual será extirpado. A procriação será uma formalidade anual como a renovação de um talão de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Nossos neurologistas estão trabalhando nisso. Não haverá lealdade, excepto lealdade ao Partido. Não haverá amor, excepto amor ao Grande Irmão. Não haverá riso, excepto o riso de vitória sobre o inimigo derrotado. Não haverá nem arte, nem literatura, nem ciência. Quando formos onipotentes, não teremos mais necessidade de ciência. Não haverá mais distinção entre a beleza e a fealdade. Não haverá curiosidade, nem fruição do processo da vida. Todos os prazeres concorrentes serão destruídos. Mas sempre... sempre haverá a embriaguez do poder, constantemente crescendo e constantemente se tornando mais subtil. Sempre, a todo momento, haverá o gozo da vitória, a sensação de pisar um inimigo inerme. Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota pisando um rosto humano - para sempre. E lembra-te de que é para sempre. O rosto estará sempre ali para ser pisado. O herege, o inimigo da sociedade, ali estará sempre, para ser sempre derrotado e humilhado. Tudo que sofreste desde que estás em nossas mãos - tudo continuará, e pior. A espionagem, as traições, as prisões, as torturas, as execuções, os desaparecimentos jamais cessarão. Será tanto um mundo de terror quanto de triunfo. Quanto mais poderoso o Partido, menos tolerante: mais débil a oposição ,mais rígido o despotismo. Goldstein e as suas heresias viverão sempre. Todo o dia, a todo momento, serão derrotados, desacreditados, ridicularizados, cuspidos - e no entanto sempre sobreviverão. Este drama que representei contigo durante sete anos será representado inúmeras vezes, geração após geração, sempre em formas mais subtis. Sempre teremos aqui o herege à nossa mercê, gritando de dor, quebrado, desprezível - e no fim completamente arrependido, salvo de si próprio, rastejando aos nossos pés por sua própria vontade. É esse o mundo que estamos preparando, um mundo de vitória após vitória, de triunfo sobre triunfo: infinda pressão, pressão sobre o nervo do poder. Vejo que começas a perceber o que será o mundo. Mas no fim farás mais do que compreender. Tu o aceitarás, aplaudirás, farás parte dele. Winston recobrara-se o suficiente para falar.
- Não podes! - disse, dèbilmente.
- Que queres dizer com isso?
- Não podes criar um mundo como o que descreveste. É um sonho. É impossível. - Por quê?
- É impossível fundar uma civilização sobre o medo, o ódio e a crueldade. Nunca poderia durar.
- Por que não?
- Não teria vitalidade. Desintegrar-se-ia. Suicidar-se-ia.
-Tolice. Tens a impressão de que o ódio cansa mais do que o amor. Por que cansaria mais? E se cansasse, que diferença faria? Suponhamos que resolvemos gastar-nos mais depressa. Suponhamos que aceleramos o ritmo da vida humana, de modo que estejamos senis aos trinta anos. Que diferença faria? Não podes compreender que a morte do indivíduo não é morte? O Partido é imortal.
- Não sei... não me importa. De algum modo, haverá de falhar. Algo vos derrotará. A vida vos derrotará.
-Nós controlamos a vida, em todos os seus níveis. Imaginas que existe uma coisa às vezes chamada natureza humana, que se enfurece como o que fazemos e que se voltará contra nós. Mas nós criamos a natureza humana. Os homens são infinitamente maleáveis. Ou talvez tenhas voltado à velha ideia de que os proletários ou os escravos se levantarão e nos derrubarão. Perde a esperança. São inermes, como os animais. A humanidade é o Partido. Os outros estão de fora... não contam.
- Não me importa. No fim haverão de vos derrotar. Mais cedo ou mais tarde verão o que sois, e então vos estraçalharão.
- Vês algum sinal de que isso aconteça? Alguma razão para que aconteça?
- Não. É o que acredito. Sei que falhareis. Há algo no universo - não sei o que, um espírito, um princípio - que nunca podereis vencer.
-Acreditas em Deus?
- Não.
Então o que é esse princípio que nos derrotará?
-Não sei. O espírito do Homem.
E tu consideras-te homem?
-Sim.
Se és homem, és o último homem. A tua raça está extinta. Nós somos os herdeiros. Entendes que estás sozinho? Estás fora da história, tu és não-existente. E tu consideras-te moralmente superior a nós, com nossas mentiras e nossa crueldade?!
- Sim, eu me considero superior.
(…)- Em si, a dor nunca é suficiente. Há ocasiões em que o ser humano resiste à dor, mesmo sob risco de morte. Mas para todos há algo insuportável - algo que não pode ser contemplado. A coragem e a covardia nada têm com isso. Se estás caindo de um lugar alto, não é covardia agarrares-te a uma corda. Se vens de águas profundas, não é covardia encheres os pulmões de ar. É apenas um instinto que não pode ser desobedecido. É o mesmo com as ratazanas. Para ti, são insuportáveis. São uma forma de pressão que não podes aguentar, nem que queiras. Farás o que se te exige.
- Mas o que é, o que é? Como fazê-lo se não sei o que é?
O'Brien apanhou a gaiola com as ratazanas e trouxe-a para a mesa mais próxima. Colocou-a cuidadosamente sobre o feltro verde. Eram ratazanas enormes. Tinham a idade em que ficam com o focinho rombudo e o pelo pardo, em vez de cinzento.
- O rato - disse O'Brien, dirigindo-se à plateia invisível - embora roedor, é carnívoro. Bem o sabes. Ouviste falar das coisas que acontecem nos bairros pobres desta cidade. Em algumas ruas, uma mulher não ousa deixar o filhinho em casa, por cinco minutos que seja. É certo que os ratos o ataquem. Dentro de muitíssimo pouco tempo devoram tudo, só deixam ossos. Também atacam pessoas doentes, e moribundos. Demonstram espantosa inteligência, descobrindo quando um ser humano está indefeso. O'Brien aproximou a gaiola. Estava a menos de um metro do rosto de Winston.
- Apertei a primeira alavanca - disse O'Brien. - Compreendes a construção desta gaiola. A máscara adapta-se à tua cabeça, sem deixar saída. Quando eu apertar esta outra alavanca, a porta da gaiola correrá. Os monstros famintos saltarão por ela como balas. Já viste um rato pular no ar? Pularão sobre o teu rosto e começarão a devorá-lo. Às vezes, atacam primeiro os olhos. Às vezes abrem caminho pelas bochechas e devoram a língua. A gaiola estava mais próxima; cada vez mais.
Winston ouviu uma série de guinchos agudos que pareciam vir de cima, de sobre sua cabeça. Mas lutou furiosamente contra o pânico. Pensar, pensar, mesmo que lhe restasse uma fração de segundo - pensar na única esperança. De repente o fedor mofado dos brutos atingiu-lhe as narinas. Dentro dele houve uma violenta convulsão de náusea, e quase perdeu os sentidos. Tudo enegrecera. Por um instante, sentiu-se louco, um animal a gritar. Entretanto, saiu das trevas trazendo uma ideia. Só havia um, um único meio de se salvar. Precisava colocar outro ser humano, interpor o corpo de outro ser humano diante da gaiola. O círculo da máscara era suficientemente grande para tapar a visão de tudo mais. A porta de arame estava a alguns palmos do seu rosto. Os ratos sabiam o que ia acontecer. Um deles dava pulos no ar, e o outro, um escamoso veterano dos esgotos, se levantou, com as patas rosadas nas grades, fungando ferozmente. Winston pôde ver os bigodes e os dentes amarelos. De novo o pânico negro o possuiu. Estava cego, indefeso, insano.
- Um castigo comum na China imperial - disse O'Brien, mais pedagogicamente do que nunca.
A máscara aproximava-se. O arame tocou-lhe o rosto. E então... não, não era alívio, apenas esperança, um minúsculo fragmento de esperança. Tarde demais, tarde demais talvez. Mas compreendera de repente que no mundo inteiro só havia uma pessoa a quem transferir seu castigo - um corpo que podia colocar diante dos ratos. E pôs-se a berrar freneticamente, repetidamente:
- Faz isto com Júlia! Faz com Júlia! Comigo não! Júlia! Não me importa o que faças a ela. Arranca-lhe a cara, desnuda-lhe os ossos. Não comigo! Com Júlia! Comigo não! Estava caindo para trás, vertiginosamente, afastando-se dos ratos. Ainda estava amarrado à cadeira, mas caíra através do soalho, através das paredes do edifício, através da terra, dos oceanos, da atmosfera, do espaço exterior, no vácuo entre as estrelas - sempre longe, longe, longe dos ratos. Estava a uma distância de anos-luz, porém O'Brien continuava de pé ao seu lado. Sentia ainda na face o toque frio do arame. Mas dentro da escuridão que o envolvera ouviu outro estalido metálico, e soube que a porta da gaiola se fechara, não se abrira.
(…)- Às vezes, - disse ela – ameaçam-nos com uma coisa... com coisas que não se pode aguentar, não se pode nem pensar. E então dizemos "Não faças isso comigo, faz com outra pessoa, faz com Fulano e Sicrano." Mais tarde, talvez finjas que se tratava apenas de um estratagema, de mandar que o fizessem a outro, e que não era a sério. Mas não é verdade. Na hora em que acontece fala-mos a sério. Pensamos que não há outra maneira de nos salvarmos; e dispomo-nos a salvar de qualquer modo. Nós queremos que a coisa aconteça ao outro. Não importa que o outro sofra. Só importamos nós. Só nós é que temos importância. (…)E depois disso, já não se sente o mesmo pela outra pessoa.
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