OS GÉMEOS - 16

.

 

(continuação)

 

Zirá passou todo o jantar muito comedida. Vestira-se com a sobriedade e negrume de uma viúva recente — o regressado marido, ainda que passageiro, era mesmo uma desgraça, confortou-a William em espírito — e fazia as honras da casa com pretensa cerimónia.

Já Amélia, apresentou-se ataviada e brincou com todos, brejeira, mesmo audaciosa no decote e na justeza da saia a tornar-lhe excitante o menear das ancas — feliz porque sem dúvida ele lhe tocaria a ela nessa noite, recebera-o logo com um abraço mais amistoso do que era recomendável mas que também quereria manifestar que o Dr. William naquela casa era considerado e amigo — e teve o condão de melhorar a afabilidade do irmão, o Zeca, embrulhado num fatinho domingueiro até que Amélia o obrigou a pôr-se em mangas de camisa, que o Dr. William não era pessoa para estar a reparar nessas coisas e portanto ele escusava de estar constrangido, e a D. Louise que era uma senhora moderna, se lhe apetecesse fumar, ao olhar para ele assim enfarpelado até era capaz de julgar que tinha de pedir licença. “— Amélia, merece uma boa noite...” disse-se William a certa altura, regozijante. E ainda teve outro mérito: tinha convidado também sô Jão. A única incongruência era ter de a tratar por “minha amiga” e Zirá por D. Alzira, quando bem podia imaginá-las sentadas uma em cada perna dele a concorrerem em meiguices e atrevimentos, embora isso de certeza que nunca pudesse vir a acontecer porque eram mulheres que era preciso ter uma de cada vez, não só para as respeitar mas também para se resguardar a si próprio, que não era nenhum garanhão e para saciar a fogosidade de ambas não teria tanto para repartir.

Sô Jão era homem sensato e conquanto não se mostrasse surpreendido com a proposta de William, coisa que não seria tolice ter-lhe já passado pela cabeça, manifestou compenetrada aprovação e depois agrado sincero num brinde “à amizade do doutor William” que era um filho adoptivo de Lameira Grande, por quem ele, pessoalmente, desde que lhe cortara o cabelo à escovinha — aparte que concitou a gargalhada geral — nutria afecto e admiração. Com Zeca, o coro não contou de forma audível, pois que, tendo escutado William com muita atenção, já puxava pelo raciocínio a ver em que termos estaria em risco a sua ambição de reaver um pedaço do arrozal, e isso era patente na reservada meditação com que examinava o seu cálice de “fino”, como se as lágrimas generosas e lentas que escorriam no côncavo do vidro transparecessem de irrealidade. Mas contou com as palmas e as risadas alegres da voluptuosa Amélia, da enternecida Zirá, por momentos solta graças ao conspícuo alheamento do marido, e da divertida Louise que, sonsa, não perdia pitada das reacções das outras duas, e que a William, a propósito, já dedicara mais do que um olhar entendedor e cúmplice. Ela já sabia do arranjinho dele!... Como?... Mas sabia.

Ficou agendada uma reunião para oito dias depois, na barbearia de sô Jão, encarregado de entretanto difundir a notícia entre os Lameirenses e de fomentar a sua discussão, o que ninguém melhor do que ele estaria em posição de levar a cabo, quer por credibilidade própria quer porque a sua loja era por tradição uma permanente assembleia local.

A peripécia da noite foi a de ter de à uma da manhã dar uma saltada a Coimbra, para entregar Louise — que todo o caminho lhe dispensou conversa sem piadinhas mas com muitos subentendidos — à liberdade da noite, regressar veloz e, como nunca antes necessitara, trepar muros e por fim entrar pela janela no quarto da ansiosa Amélia. E teve sorte porque o rafeiro da casa, o Baubau, o conhecia bem...

Jimmy continuou sem dar notícias, mas ele foi para a reunião sem indecisões. Alugaria aos interessados, por preço muito abaixo do justo, mais de dois terços da lezíria, com a condição de se organizarem e a trabalharem no arroz, respeitando o espaço delimitado para ele. Poderiam ainda ter o seu apoio desinteressado, se o quisessem, na selecção de espécies e na aplicação de técnicas evoluídas e mais produtivas.

Não aceitaram!

O Zeca, o presidente político da vizinhança e um jornaleiro tinham convencido a maioria, com argumentação persuasiva, de que seria arriscado e caro e talvez mesmo desastroso, abalançarem-se numa empresa de tão grande dimensão e para além do mais usando terras que não seriam deles; e, com argumentação mais comedida e mais tímida, em sendo o proprietário o doutor William, no seu caso, se quisesse ser prestável à comunidade, venderia a terra, por preço razoável, era lógico, ou a trabalharia ele próprio, responsabilidade que lhe competia por inteiro! Votos contra, só o do sô Jão, e abstenções apenas duas. Agradeciam, mas o doutor compreenderia...

Claro que ele compreendia. — Zeca e os comparsas preferiam não ver as terras ocupadas por mais alguém, explicou-se ele a si próprio, sem irritação. — E admitia uma das alternativas: exploraria ele a lezíria. Agradecia-lhes ele também o conselho e informava desde logo que quem desejasse trabalhar para ele poderia dirigir-se a Mameselle Louise, que seria a gerente do empreendimento.

Os três gabirus, que se haviam refugiado num silêncio farisaico, logo se mostraram agitados. Era demais! O doutor William lá saberia em que se iria meter!... E ele aproveitou então para tecer uma pequena vingança: — Uma vez que todos nós apostamos num futuro próspero, esta ocasião é adequada para lançar um repto, melhor... para exigir à autoridade administrativa aqui presente, que mande arranjar os caminhos miseráveis e esburacados que ladeiam o arrozal, de modo a torná-los transitáveis por aqueles de vós que lá quererão ir trabalhar. Só será possível enriquecer Lameira Grande melhorando as condições de vida e de trabalho das pessoas. Basta de ilusões! Não faça mais promessas, senhor administrador!... Quer-se o que é indispensável. Todos ficarão a ganhar.

Sô Jão disparou um “— Viva Lameira Grande!” contagiante e os aplausos que chegaram aos populares apinhados à porta da barbearia repercutiram-se em gestos de efusividade e felicitações à passagem de Louise e de William, quando se retiraram.

No regresso ao acampamento Louise conduzia com um ar compenetrado, de vez em quando suspenso por ligeiro pigarrear ou olhares de soslaio para William. Aquele homem tinha tudo a seu favor para se tornar num político caciqueiro e conquistar poder... e só queria ser cientista! Ainda bem. Agora, ela tinha a oportunidade, a obrigação e a responsabilidade de exercer um empresariado de sucesso. E fá-lo-ia, sim senhora. Era um desafio!

William pensava consigo: “Daqui a uns dois anos esta vilória pode estar a tornar-se irreconhecível! Eles querem o progresso... e vão tê-lo. Louise não se saciará sem deixar aqui marcas indeléveis. Espero que ela continue a ter tempo para os seus passeios em pêlo em noites enluaradas... gosto desses momentos! James ainda vai acabar por aparecer e tomar conta da política local... ou irá recriminar-me por ter terminado com o sossego inestimável desta gente? Mas o povo quer progresso! E tem direito a usufruí-lo. Dê-se-lhe o progresso, para que eu tenha paz..."

— Louise... Vai precisar de colaboradores empenhados. Posso dar uma sugestão? Contrate a D. Alzira para sua assistente.

— Mas é claro, Dr. William! Estava mesmo a pensar nela! Que me diz também de alugar a loja de sô Jão para montar as áreas administrativa e comercial? Vou ter de desencantar para lá uma linha telefónica. Que tal a denominação social de Empresa Cerealífera de Lameira Grande? Ou antes RICE - Research In Creative Ecology? ... Não, por enquanto não será necessário mudar-me para a aldeia.

— Deixo isso tudo consigo, contanto que não me abandone em definitivo. Esses nomes são bons! Você fica com a exploração da ECLG e eu adopto para mim a marca RICE... Prepare-se para produzir e comercializar Giant RICE, Ground RICE, RICE Pudding e até RICE Paper...

— Gosto desse bom humor... Aih!... ai, ai, ai!...

Com uma violenta guinada do volante Louise atirou o jipe contra os silvados da berma, deixando-o com o pára-choques do seu lado enfaixado num murete de pedras. Atemorizador foi mais o barulho rangente da chapa a esmolgar-se nos calhaus. O pneu da frente, do lado de William, perdera subitamente a pressão e para compensar o desequilíbrio do carro, a saltitar meio desgovernado sobre os altos e baixos esburacados da estrada, a opção fora parar o embalo chocando contra o muro. A travagem atirou-lhe para cima o corpo de William, desprevenido, que se lhe agarrou espantado, olhos arregalados de susto, e buscando protecção. Abraçou-o. Também para se acalmar. Deixaram-se ficar assim por um pedaço de tempo, a sentirem-se, a observarem o muro, especulando com os seus sentimentos, acerca daquele abraço casual e do que poderia seguir-se-lhe. Depois, Louise começou a rir-se denunciando uma embaraçosa excitação, e ele também, mas não se desabraçaram.

— Isto já terá sido obra dos nossos adversários?

— Que pensamento tão maldoso, Louise!

— Talvez não tanto assim. São poucos, ao que parece, mas podem ser duros...

— Poucos, os que deram a cara... Mas não. Não creio que sejam maus...

— De qualquer modo não vão ter muito tempo para nos assustarem. Vou começar depressa a minha missão, e vou fazer trabalho profundo...

— É uma maçada termos de ir trocar a roda.

— É... uma maçada, e uma pena... Na verdade, gosto de estar nos seus braços!

— En... eu também, quer dizer, na verdade... gosto de a sentir assim.

— Vamos lá, antes que alguém apareça e nos case de vez... É engraçado como a ideia de que somos marido e mulher se instalou naquela gente e se tem mantido!

— É gente simples. O que vê é aquilo que imagina... Vamos lá. Isto é histórico! Vou pela primeira vez servir-me de um macaco!

— Para tudo há uma primeira vez, não há?

— A senhora empresária faz favor de estar descansada que eu trato disso num minuto.

— Brinque, William... brinque!


 
(continua)

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

 


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Monday, April 22, 2013 - 11:10

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