OS GÉMEOS - 21

.

 

(continuação)

 

Havia duas noites que a meio da madrugada escutava ruídos estranhos lá para os lados das estufas. Ali à volta o silêncio descia com a escuridão sobre a lezíria e adensava-se uma calma imperturbada nem pelos bandos de aves que de dia era frequente a visitarem em formações velozes e de desenhos caprichosos. Apenas o vento em certas alturas do ano soprava um zumbido sibilante ao passar por entre os contentores e as grandes casotas envidraçadas, como se andasse em anunciada missão de controlo do acampamento. Por isso, qualquer pequeno barulho adquiria um eco despropositado e acabava por despertar gritos assustados dos pássaros e, pela inércia da natureza, ondas de murmurada agitação nos densos canaviais que, com tempo e liberdade, se tinham ido apropriando dos montículos de aluvião espalhados entre o arrozal.

Poderia ser Hana, a vagabundear por lá, espertada pela vigília, ou, muito provável, incapaz de suster a sua infinita curiosidade investigadora, colhendo resultados de experiências programadas sob condições de nocturnidade. Ou poderia ser o próprio subconsciente dele em transe de discussão crítica, à procura de caminhos inexplorados. Ou apenas a sua imaginação.

Na madrugada seguinte impacientou-se. Hana não devia estar a aperceber-se de que o acordava com as suas inusitadas pesquisas, e o melhor seria tentar fazer-se convidado, para pelo menos poder tirar também proveito dos assaltos de espertina que ela provocava. Saltou da cama, enfiou um roupão por cima do pijama, pôs os óculos, movendo-se na obscuridade levemente quebrada pela luz difusa dos números digitais do seu despertador, e em chinelos saiu para o relento.

Apanhado pelo golpe de ar fresco da noite encolheu-se, e ao fechar a porta por descuido deixou-a embater com um barulho disparado que ribombou pelas cercanias. E veio-lhe de algum sítio um ladrar avisador. Ah! Um cão!... O desgraçado devia ter-se perdido de Lameira Grande e agora vadiava por ali a dar-lhe cabo das noites. Era evidente que Hana nunca teria tão pouco cuidado nas suas andanças. Sendo assim, não tinha outro remédio se não voltar para a cama e aguentar. Andar atrás do bicho àquela hora causaria ainda mais burburinho. E enregelar-se-ia de frio.

Sem sono, resolveu sentar-se à sua mesa de trabalho. Pegou num livro e começou a registar anotações. Aquela hora era apropriada em especial para se debruçar sobre o estudo de fenómenos espectaculares. Muito embora sabendo que debaixo do Sol nada há de novo, todo o cientista é cioso da sua capacidade imaginativa, e já muitos se queixaram de que, por coincidência ou não, ideias interessantes aparecem a público não muito depois de eles as terem pensado. Se existia transmissão de pensamento, àquela hora solitária, só muito longe dali alguém teria hipótese de lhe captar a sua concentração, disse-se, procurando consolo para a insónia.

Leu: “Qualquer espécie animal é o último elo de uma cadeia evolutiva que remonta, através de milhares de espécies, ao início da vida... O cérebro e o corpo humanos não evoluíram ao longo de uma directa e inevitável escada, mas sim ao longo de uma via contorcida e tortuosa, talhada por adaptações surgidas por razões diversas e fortuitamente adequadas às necessidades futuras... O derradeiro desenvolvimento do homem dependeu, por assim dizer, de algo como um milhão de modificações diferentes, cada uma delas de um tipo especial, dependente de outras alterações anteriores nos ambientes orgânicos e inorgânicos, ou em ambos. A probabilidade de uma série de modificações particulares de tal modo grande poder repetir-se novamente... é quase infinita.”

Era um biólogo da corrente mecanicista e as suas experimentações no campo da biologia das superfícies celulares, dispensavam qualquer filosofia mística. Bastava-lhe que na biologia não existisse, como não existia na realidade, nada que contradissesse as leis da física e da química. Como entrosaria Hana, a sua anímica crença religiosa e as liminares constatações transgénicas da espécie Oryza Sativa, arroz que ele recentemente obtivera por bem sucedida manipulação laboratorial? E como iria ela reagir quando o visse passar para as espécies animais?

Ela sabia tão bem como ele, que, no princípio, há muitos e muitos milhões de anos, todas as formas de vida eram células sem núcleo que se reproduziam em processo assexuado, fazendo cópias de si mesmas tal como agora, mas então contendo cada uma o todo do material genético. E conhecia também o desenvolvimento dos seus trabalhos, meticulosos e descritivos, primeiro comprovadores, com a célebre Arisaema triphyllum, e depois especulativos, com as estruturas masculinas e femininas da dita Oryza, até conseguir obter nesta também a mudança de sexo em ambos os sentidos.

Como ele, Hana tinha uma curiosidade insaciável. E ele não queria esconder-lhe nada, mas receava que ela não fosse capaz de absorver sem choque o impacto do alcance intrínseco dos fenómenos, para além da proficiência da técnica e das simples vantagens materiais dos resultados. Tinha a esperança de que para Hana o conceito de profanação estivesse limitadamente confinado a rituais ou liturgia sagrada.

Esquecera-se quase de Louise, o que lhe valeu espantar-se de como Hana com eficiência substituíra a nominal indispensabilidade da secretária-governanta, e ficou agradado por ouvi-la ao telefone. Até porque viera a propósito de o acordar. Adormecera muito tarde e perdera quase toda a manhã na cama.

— William, está tudo bem?

— Olá, Louise! Está tudo bem... A não ser eu, que dei em dorminhoco. Estas últimas noites tem andado por aí um cachorro a fazer barulho a desoras, tira-me o sono e eu acabo por só começar a repousar muito tarde. E por aí? Novidades?

— Estranhei que demorasse tanto a atender... estava num sono pesado! Nem a Dra. Hana ouviu o toque do telefone!

— Se calhar também ainda está a dormir. Isto aqui não tem patrão..
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— Pois é... Há mais de quinze dias que não aparece em Lameira Grande, William! Será que há alguém que não está a obedecer às minhas indicações e anda a visitá-lo à socapa, e depois você desculpa-se com um cachorro?

— Não, claro que não...

“Não, claro que não...”, ela bem o sabia. Zirá não era, porque quase não tinha descanso, dividida entre o afã com que partilhava com ela inúmeras tarefas na administração da cerealífera e a sua aperreada vidinha caseira. Zeca regressara inopinadamente, talvez seduzido pelo progresso que grassava em Lameira Grande, e, deparando com a mulher industriada e investida de uma invejável eficiência como assistente executiva nos vastos negócios de mameselle Louise, enciumara e estava a tornar-se impossível de aturar. Essa, não tinha tempo nem oportunidade, pois, para visitar William. E quanto ao outro arranjinho, a Amélia, era garantido que não teria arrojo para ir ao complexo. Com William dentro de portas Amélia não hesitava — era tão público que levava William para a cama, que Louise duvidava se o não seria também em relação a Zirá... Até quando Zeca andaria cego? — mas fora de casa não arriscaria ir à procura de William.

Era estranho. Um cachorro! A cerca de arame que delimitava a área da RICE não seria violável por um cão! Para mais, se ele andasse lá dentro de dia, William ou Hana já o teriam notado.

Se William voltasse a queixar-se teria de mandar averiguar sem demora o assunto.

No dia seguinte telefonou-lhe outra vez, e confirmou a ocorrência. Era um cão, era, dizia ele, mas ele já estava a habituar-se às horas de sono trocadas e até aproveitava bem a vigília trazida pelo noctívago canino. Que não se preocupasse.

Chamou Zirá e pediu-lhe que se metesse no jipe e fosse investigar o que se passava. Não queria ver o sono do Dr. William perturbado. Era também um pretexto para a mulher ir lá dentro, e, quem sabe, entreter Willy por um bocado... Já deviam estar os dois com bom desejo de “pecado”, ao tempo que não se encontravam... era preferível assim, reflectiu ela, do que atreverem-se debaixo do teto do Zeca.

Horas depois ia-se arrependendo da ideia que tivera. Zirá apareceu-lhe cheia de aflição e de inconfessável suspeita. Fora lá, o Dr. William estava bem, mas ela própria é que não, porque ficara muito impressionada ao descobrirem, junto a uma das estufas, o Baubau, de pernil esticado. Estava morto o desgraçadinho, aparentemente sem motivo, e ela não sabia como é que o bicho pudera entrar lá para dentro, porque não havia nenhum buraco na cerca, confirmara isso à ida e à vinda, e o animal não podia ter ido lá parar sozinho, mas a cancela também estava fechada, como sempre, e o Zeca ia ficar danado quando soubesse tudo, e ia disparatar. O que fazer?

 

 
(continua)

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

 

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Friday, May 3, 2013 - 12:12

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