A Igreja dos Negros
Paulo Monteiro
A Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, foi uma quartelada. Os militares, representando as camadas urbanas da população, que se avolumavam, acompanhando o processo universal de urbanização, depuseram Don Pedro II, abrindo caminho para algumas reformas consolidadas apenas meio século depois, com a Revolução de 30.
Uma das primeiras e mais radicais dessas mudanças foi a separação da Igreja do Estado. Até a República o Catolicismo era a região oficial do Estado, o que implicava em regras de convivência social muito diferentes das que praticamos atualmente. Sirva uma de exemplo: havia dois tipos de cemitérios, um para os católicos; outro para os acatólicos. A maioria das pessoas, hoje, não sabe, que no espaço mais ou menos compreendido entre a avenida General Netto e as ruas Coronel Chicuta, Independência e General Canabarro situava-se o Cemitério Católico e, na frente do antigo quartel do Exército, na rua Teixeira Soares, o Cemitério dos Acatólicos.
Depois da República, independente da crença religiosa, as pessoas são sepultadas nos mesmos campos-santos. Não parece, mas isso significa muito.
As reformas republicanas foram antecedidas e influenciadas por outra, talvez, ainda maior, a Abolição da Escravatura, em 13 de maio de 1888.
Em Passo Fundo, embora se possa minimizar a importância da contribuição do negro foi muito grande. Antonino Xavier e Oliveira, nascido em 5 de setembro de 1836 e falecido a 10 de junho de 1959, conta que o primeiro colonizador, Manuel José das Neves, aqui chegou em 1827 “trazendo a família, escravos e gado”.1 Da mesma forma, escravos acompanhava os demais povoadores, que o seguiram, o que contribuiu para a presença marcante de afro-descendentes desde os primeiros tempos da colonização passo-fundense.
A união entre Igreja e Estado gerava divisões sociais que iam além da vida e a economia escravagista manifestava essa segregação no dia-a-dia. Exemplo: a existência de igrejas de brancos e igrejas de negros.
Dentro da Igreja Católica Apostólica Romana essas separações se manifestavam, inclusive, no culto mariano. Em todas as cidades surgidas durante a Colônia e o Império encontramos essa divisão. Nas comunidades de portugueses e seus descendentes – e Passo Fundo é uma delas – essa divisão se manifesta, particularmente, com a presença de uma igreja consagrada a Nossa Senhora da Conceição e outra a Nossa Senhora do Rosário. A primeira uma devoção tipicamente portuguesa; a segunda eminentemente africana.
O uso do rosário ou Santo Rosário é muito antigo. É possível que se prenda aos “mistérios” da Antigüidade e seus cultos às deusas da Fertilidade. A ligação desses mistérios com a devoção mariana é, porém, um assunto para a meta-história. Reconhecidamente antiga é a devoção a Nossa Senhora do Rosário, que se espalha a partir do ministério de São Domingos de Gusmão (1170-1221), fundador da Ordem dos Dominicanos.
Os discípulos do santo espanhol levaram a adoração da Virgem do Rosário para o Congo, onde fez muitos devotos entre os naturais que se cristianizavam. Daquele território africano, em conseqüência da marcante presença portuguesa em Angola, vieram elevados contingentes escravizados para o Brasil, aqui popularizando e perpetuando a adoração à santa de que era devoto São Domingos de Gusmão. Assim, foram sendo edificadas igrejas à santa e, junto a cada templo, uma “Irmandade dos Homens Pretos”, muitas destas chegaram, ainda atuantes, aos dias de hoje, como a de São João de-Rei, no Estado de Minas Gerais, que é de 1708.
A popularidade à Virgem do Rosário estendeu-se pelo Brasil, durante o período colonial. Atestam-na os trinta sermões reunidos em quatro dos quinze volumes com o sermonário do padre Antonio Vieira. Aliás, o grande orador jesuíta, ali, traça um verdadeiro panorama da sociedade brasileira em que viveu, especialmente dos segmentos mais humildes, denunciando as mazelas sociais da época.
Antonino Xavier e Oliveira, historiando as festas religiosas da Passo Fundo antiga, assim se expressa: “As festas da espécie, então, eram a do Divino, a de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, a de Nossa Senhora do Rosário e a de São Miguel, sendo que a penúltima era feita pelo elemento ex-escravo, com o concurso dos Brancos”.2
Portanto, os negros, em tempos pretéritos, festejavam a “sua santa”, na capela erguida às margens da “antiga estrada para Soledade”, como pode ser lido em escrituras antigas, a atual Rua Ireno Grespan, na Vila Carmem. Ali persiste a velha devoção, num prédio de alvenaria construído há poucos anos, com o apoio de católicos alemães.
Um livro de atas daquela capela, aberto em 1º de outubro de 1984, começa pelas seguintes palavras textuais: “Segundo moradores das proximidades da Capela N. S. do Rosário, que a muitos anos residem no local, esta comunidade teve tempos áureos. A Capela N. S. Do Rosário é das primeiras da Cidade de Passo Fundo. A cinquenta anos atrás as Festas em honra à N. S. Do Rosário atraiam muita gente, à exemplo da Capela de São Miguel na época e que hoje se transformou numa verdadeira Romaria à São Miguel, no dizer do povo”.
O testemunho oral comprova a ancestralidade da capela e reafirma a concorrência popular às festividades conforme registrado pelo “pai da história passo-fundense”. O mesmo historiador lembra a presença de índios na coxilha da Vila Luiza.3 E essa presença era bastante freqüente, tanto que Antonino, em outra obra4, relata a execução, por “índios coroados”, de dois moradores que tinham ido comer jabuticabas num mato existente onde hoje se situam as “vilas Luiza e Carmem”. Uma “escolta” de moradores saiu em perseguição aos selvagens e foi batê-los, às margens do Taquari (Capingüí), num local que, por isso, ficou conhecido como Mortandade.
Ora, o local em que os “dois moradores” foram mortos pelos índios, ao que tudo indica, é onde foi erguida a Igreja do Rosário. É possível que dois “homens pretos” tenham ido à coleta das frutas, a pedido de alguma sinhazinha, sequiosa de um refresco, acabando vitimados pelos índios. Em sendo assim, terços rezados por seus parentes “pretos” levaram à construção de uma pequena capela e o local passou a ser ponto de adoração à santa... Dessa forma explica-se a antigüidade e a localização da igreja consagrada à padroeira dos “homens pretos”, em Passo Fundo. E esta seria, em termos de precedência, a segunda igreja do município.
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