Ontem provei a Lua e soube-me a vinho

Ontem saí à rua, de noite. Andei às voltas comigo mesmo, modesta companhia. Não vi rostos nem pessoas. Não vi nada. Senti os gatos nas janelas e vi de soslaio o seu brilho dos olhos por entre arbustos no jardim. Era eu e o mundo.
Ao descer pela calçada escorregadia, ouvia o zunido das luzes dos candeeiros de rua que me cumprimentavam ao passar com a sua melodia. Uma aragem trouxe o som longínquo do comboio que passava vazio lá em baixo. Minutos depois, sentei-me num banco de jardim que ali estava, descascado pelo tempo e humedecido pelo suor da noite. Estava sozinho. Perdido no meio do jardim escuro à minha espera. Numa conversa muda, queimámos cigarros e sorrisos. Contámos sonhos e invejas e devaneios. Fazia-se tarde... Já a Lua nos sorria alto e ambos tínhamos sono. Havíamos perdido a noção das horas e o céu já estava a fechar.
Encostei o ouvido à madeira de casca verde e trocámos os segredos que nunca ninguém ouviu.
Dos céus desciam gotas e as gotas que nos acertavam eram mornas. Suaves. Desciam devagar como carícias.
O cheiro da terra molhada embalou-nos e tapou-nos com o jornal da manhã que o velho deitou fora sem ler, amachucado. O dia brotou quente. Voltaram os passos e as buzinas. Todo o barulho que dormia de noite acordou em alvoroço. O meu banco amigo tinha-se calado. Calou-se. Mudo. Mal conseguia eu abrir os olhos quando uma menina passou e me sorriu. Porquê? Porque razão iria sorrir uma criança ao avistar uma pessoa que, aos seus inocentes olhos, aparenta ser mendigo? Ao devolver-lhe o sorriso senti o sabor a vinho fugir-me da garganta. Roubado. Surripiado pelo brilho de uma criança desconhecida que sorriu sem razão. Desapareceu na dobra da esquina por trás do sol. Ao longe ainda se ouviu ecos de um tímido sorriso de menina aos pulos. E amanheceu. Nesse dia amanheceu tarde, mais tarde que de costume.
No caminho de volta para casa vi que os gatos já não estavam nas janelas. As árvores estavam nuas como se tivessem sido despidas à pressa e os candeeiros apagados, sozinhos ao longo do passeio. Nada era o mesmo. Ninguém sabia o que se tinha passado. Ninguém ouvira os segredos. Apenas eu. Ninguém ouvira o banco, ou a música dos candeeiros. Apenas eu…
Então voltei para casa a pensar: Ontem provei a Lua e soube-me a vinho. E como uma criança, sorri, sem porquê.

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Monday, March 1, 2010 - 19:25

Ministério da Poesia :

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