certo dia

Certo dia não me levantei,

levantas-te tu por mim,vestiste-te a minha pele,

calçaste os meus pés e saíste á rua

tentado fazer melhor do que eu fiz

em todos os outros dias,

a meio do caminho aconchegaste o meu estômago com torrada e meia,

barraste manteiga apenas uma vez,

mostraste-te preocupada com o meu colesterol,

sorriste ás pessoas e elas estranharam, quase destruías o teu disfarce

ao mostrares sentido de humor ao motorista de autocarro que calçava meias de gesso,

procuraste o sol, contiveste-te a meio da nuvem com forma de nuvem, nunca olho para o céu,

olho sempre para o chão, a merda espreita a cada retalho de cada pedra de cada passeio de cada rua que caminho, a merda agarra-se ao sapato e por mais que esfregues na gravilha a beira de uma infindável obra municipal,

na berma de uma linha de comboio

ou num qualquer ninho de ervas que brota de dentro do cimento da cidade,

nunca desaparece realmente, vais ficar todo o dia com aquela comichão no nariz, com aquela alergia a cheiros, vais repetir-te perguntado:

- nao cheira a merda?

até chegares a casa e ai descalçares-te e acabares por perceber que tens gramas ínfimas de merda a tornarem-se parte da borracha da sola do sapato

como mexilhão nas costas de uma baleia;

certo dia não era o dia certo.