O teatro e a vida

Dizem que a vida imita a arte... ou é a arte que imita a vida? Dizem... Ou será que vida e arte são coisas que se completam, contemplam-se e fundem-se, paralelas que passam à infinidade se cruzando, imitando-se? Vida, arte e teatro: sinônimos não legalizados pela burocrática língua.

Acordo Eu, levanto filho, embarco passageiro, caminho transeunte, atravesso na faixa, sigo colaborador, atento estudante, pai, amigo, irmão, namorado, ator social que protagoniza e coadjuva ao mesmo tempo diversos papéis ao lado duma infinidade de outros. Genuflexório mudo atento me faz cristão. No carnaval, desfilando entre outros tantos outros sou pierrô pagão. Tributo pago no balcão, duplicata em caixa, sou cidadão. Jungnianas personas que eclodem em meio a pensativos monólogos shakespearianos. Sou pessoa, sou-me. Frente ao machadiano espelho, só, sou ninguém. Nada. Meu teatro é a vida encenada sem ensaio, sem roteiro, sem frases prontas e, pior, sem deixas, sem saber a hora certa de entrar em cena. Subjetivado réu frente à platéia social, sou muitos, entre culpado e inocente.

O teatro é o oxigênio. É o oxigênio contido na água. É o oxigênio contido na água contida no aquário. É o oxigênio contido na água contida no aquário onde vive o peixe, que é dourado. É o oxigênio da água que mantém o dourado peixe vivo. O peixe vivo que vive no seu aquário-palco uma representação de ser: ser peixe dourado de estimação. O estimado peixe-ator, que desfila dourado em seu palco-aquário, repleto de pedrinhas coloridas e outros objetos de cena, representando para outro ser, enche de alegria e sentido a tola existência tediosa cotidiana de seu dono-platéia. Cercado de água contida de oxigênio-teatro, respira, alimenta-se, vive e representa o peixe-ator, dando sentido a feliz razão de ser ao seu dono-platéia, contemplando-o, com a arte de ser dourado.

O teatro é a mentira ensaiada. É a mentira que não fere. É a mentira gostosa de ver e viver. E viver uma mentira que se gosta é viver uma verdade. O teatro é a verdade, que não passa de uma mentira ensaiada. Mentira que não fere. Que é gostosa de ver e viver, porque ver e viver essa verdade é bom, faz bem.
O teatro-vida é complicado. O choro sem ensaio dói. É um choro que queima verdadeiro, e que às vezes torcemos para que essa verdade seja uma mentira ensaiada. A mentira sem ensaio dói, fere. No teatro-vida os aplausos são minguados, há mais apupos que tudo, decorrentes de sentimentos esmigalhados e poluídos no dia-a-dia, pela ausência de amor... E ausência essa que, na maioria das vezes, erroneamente, é preenchida de matéria. Às vezes é preciso deixar o teatro-vida de lado, descer do palco-mundo, despir-se do ator social que somos e sentar-se junto a platéia do teatro-arte, deixar o sonho fluir com a mentira ensaiada, cheia de calorosa verdade verdadeira, que transforma o choro-verdade que fere, em riso alegre que acolhe, meio a real sensação coletiva de felicidade. Na platéia do teatro-arte todos atuam com o papel de olhar e sentir. E eu, ator social destituído, quando desço do palco-mundo para ver atento o teatro-arte, que não só imita a vida, mas vai além dela, sinto uma alegria transcendente, que transborda o ser, e torço para que meu teatro-vida caminhe no mesmo sentido verdadeiro da representação que não fere. Vivendo esse coletivo momento feliz, farei de tudo para que no decorrer da minha peça, atuada no palco-mundo do teatro-vida, conquiste o doce beijo molhado infinito da suave e aveludada feminina boca desejada. E após o ato final, ao fecharem-se as cortinas e as luzes se acenderem, e ascenderem-me, eu receba e sinta os calorosos, acolhedores e recompensadores aplausos da platéia.

 

Submited by

Saturday, March 19, 2011 - 21:55

Prosas :

No votes yet

André Alves Braga

André Alves Braga's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 10 years 15 weeks ago
Joined: 03/07/2011
Posts:
Points: 811

Add comment

Login to post comments

other contents of André Alves Braga

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/General Planeta em rotação 0 400 03/07/2011 - 21:46 Portuguese
Poesia/General Pipa de papel 0 287 03/07/2011 - 21:45 Portuguese
Poesia/General Pessoas I 0 439 03/07/2011 - 21:44 Portuguese
Poesia/Love Pessoas 0 685 03/07/2011 - 21:44 Portuguese
Poesia/Love Perdi 0 747 03/07/2011 - 21:43 Portuguese
Poesia/Love Perdão anjo 0 426 03/07/2011 - 21:42 Portuguese
Poesia/General Paz de espírito 0 354 03/07/2011 - 21:41 Portuguese
Poesia/Love Passou 0 368 03/07/2011 - 21:40 Portuguese
Poesia/General Passado presente 0 359 03/07/2011 - 21:39 Portuguese
Poesia/Love Olhos de Cecília 0 895 03/07/2011 - 21:38 Portuguese
Poesia/General Oito anos 0 448 03/07/2011 - 21:37 Portuguese
Poesia/Passion Pecando 0 814 03/07/2011 - 21:36 Portuguese
Poesia/General O outro de tudo 0 611 03/07/2011 - 21:35 Portuguese
Poesia/Love O Feliz 0 585 03/07/2011 - 21:34 Portuguese
Poesia/Passion Delírio 0 625 03/07/2011 - 21:33 Portuguese
Poesia/Passion Na noite e na chuva 0 551 03/07/2011 - 21:32 Portuguese
Poesia/General Nomofobia 0 929 03/07/2011 - 21:31 Portuguese
Poesia/General Noites 0 479 03/07/2011 - 21:31 Portuguese
Poesia/Passion Na orla 0 637 03/07/2011 - 21:30 Portuguese
Poesia/Love Na minha morada 0 602 03/07/2011 - 21:28 Portuguese
Poesia/General Na beira 0 478 03/07/2011 - 21:27 Portuguese
Poesia/Love Minhas musas 0 461 03/07/2011 - 21:26 Portuguese
Poesia/Passion Musa 0 536 03/07/2011 - 21:25 Portuguese
Poesia/General Mundo 0 483 03/07/2011 - 21:24 Portuguese
Poesia/General Mundo muda 0 471 03/07/2011 - 21:23 Portuguese