A profecia

A escuridão abraçava com ternura, sob o pálido reflexo da lua, aqueles amantes furiosos e sedentos do mar que os enfeitiçara. Após a troca de corpos, presenciaram algo que não tinham experimentado antes: o vazio profundo do mesmo mar que os acolhera em vagas intensas, cuja maré descia agora lânguida e com ela arrastava a realidade que se escondia dentro deles.
Wecta olhou-o nos olhos com o seu olhar de felina incitando-o a repetir. Dos seus lábios brotavam ainda pequenas marcas do desejo consumado e não saciado.
A ânsia apoderava-se dela. E se ele não voltar amanhã, pensava.
Não, não pode ser. Tenho de o ter outra vez.
-Ó mar salgado, que me vestes nas noites de luar, atira-me as tuas ondas e deixa-me sentir mais e mais uma vez esse teu gosto.

E nas areias batidas pelo mar como se a mão esquerda da Criação ouvisse os seus apelos, Aegir, O Deus do mar voltou a moldar o homem que Wecta desejava. Antes que Wecta o acolhesse em seus braços, Aegir surgiu, exigindo um pacto que selava um desígnio sobrenatural.
- Por agora deixo-vos entregues ao teu apelo, sussurrou. Na próxima maré eu virei e tu me concederás o meu tributo e assim me apaziguarás.

Wecta estremeceu de pavor, mas o desejo que sentia por aquele homem sobrepunha-se a todo o receio do que o Deus do mar lhe viesse a exigir.
Entregou-se aos braços daquele ser fenomenal, sem recear e sem questionar qual seria o tributo a pagar, por mais um desejo concedido.
As bocas ávidas uniram-se numa valsa compulsiva sem fim. O corpo másculo dele fazia pressão sobre o dela, que deitada na areia se deixava embalar pela doce e suave melodia dos sussurros dele. E num intenso espasmo de libertação os dois corpos fundiram-se como um só.
Aegir, que assistia sereno á comunhão, sorria em ondas de espuma que os banhava em salgados beijos de ternura e expectativa.
Na madrugada, o Deus do mar sussurrou aos ouvidos da mulher saciada, dizendo-lhe:
- Tens em ti o fruto do amor concebido por nós e esse fruto será um ser como nunca existiu antes. Um dia quando ele estiver pronto virei reclamá-lo, e tu Mulher, o libertarás dos teus laços. Esse é o teu tributo.
O homem criado para essa noite mágica foi reclamado por Aegir,e sob as ondas de espuma branca, serpenteou e voltou a transformar-se em areia.
A lua, que agora se recolhia, observava-os num tom pálido, semeando pela praia uma luz esvanecida, como se atemorizasse perante a imposição de Aegir.
Wecta abandonou a praia sem se voltar para trás. Não podia faze-lo, pois nos seus olhos adejava um brilho intenso, carregado de triunfo e confiança.
Em Midgard, o despertar súbito iniciava-se cedendo lugar ao sol que despontava despedindo-se das chamas das tochas que ardiam, expondo a urbe à sua cruel luz que tudo revelava, como uma película diáfana, encobrindo e iludindo quem lá vivia.
Wecta, caminhava distraída por entre as árvores de Iron Wood, a floresta velha e escura de Midgard e das torres de pedra erigidas muito antes de todos os tempos. Os seus passos guiaram-na ao único lar que resistia ao torpor cinzento que envolvia a cidadela, para lá dos limites da claridade ilusionista. O Castelo da Colina Branca, acolhia-a no seu aconchego.
Kvasira, a sua fiel companhia, aguardava a sua chegada. Diz o povo de Kobold, que nas noites de lua cheia, Kvasira se dedica a rituais de magia só regressando a casa quando a lua cede o seu lugar ao sol. O que é certo é que ela sabia sempre tudo e mesmo com o passar dos anos, as rugas nunca lhe tocaram a tez rosada e macia.
- Esperava a tua chegada - disse-lhe Kvasira. Tens o teu aposento preparado para um banho e depois temos muito que conversar. Espero por ti no salão dentro de uma hora. Dito isto, voltou-lhe as costas e desapareceu por uma porta.
Wecta, dirigiu-se ao quarto e começou a encher a tina com a água morna e as ervas de cheiro que Kvasira havia cuidadosamente preparado para ela. Despindo-se do traje amarrotado da noite, Wecta inalou uma última vez o cheiro nacarado que ainda estava arreigado na sua pele, antes de entrar no banho. De olhos fechados concentrando-se no aroma das ervas a dissolverem-se na água, deixou-se cair num profundo torpor. A infusão entrava pelos poros do seu ser e o espírito libidinoso deu lugar a um sono agitado por visões e premonições fortes. Uma voz ecoava no âmago do seu ser…
“Filha, tu és fruto da minha união com Odin, Pai de todos, protector dos poetas, dos guerreiros, dos estadistas e o Deus da morte, da Guerra e da Magia. Eu sou Frigg, Deusa da Fertilidade e tua mãe. Tens um trono em Asgard, mas fui obrigada a tornar-te mortal e enviar-te para Midgard ao cuidado de Kvasira. Fi-lo para te salvar do Ragnarok, a grande luta final entre o bem e o mal, pois tu foste gerada para cumprir uma profecia criada antes de todos os tempos.
O advento de Ragnarok, foi o fim do mundo entre os Deuses e os homens, mas tu foste concebida para o nosso renascimento. E a tua barriga agora prenhe indica que daqui a nove luas estarás a cumprir o teu destino. Em tempos, houve uma ponte de arco-iris que ligava os nossos Mundos, mas até isso ruiu com a guerra. Procura as Nornes que guardam Yggdrassil, o eixo do mundo, a árvore que sustenta Midgard. Elas ajudar-te-ão na tua missão. Poderás invocar o povo de Hamingjur uma única vez durante o teu percurso. Agora tenho de ir, filha amada. O mar é meu carcereiro, tal como hoje foi teu amante! Que o poder de Odin esteja sempre contigo.”
Wecta acordou a tremer. As palavras reveladas no sono acudiam-lhe à memória numa aflição tremenda. Vestiu-se o mais rápido que pode, e foi a correr ter com Kvasira ao salão. Ainda ia longe e já se conseguia ouvir o eco do cântico ressoando pelas paredes do castelo:
“gjarna drekka bjór á hátt með Ásum minn dagur endaði í þessum heimi sem ég hlæja að dauða” 1
Wecta, não conseguiu entender uma única palavra apesar do idioma lhe parecer familiar. De repente a chuva começou a cair e com ela trazia o odor conhecido do mar. O bater da chuva contrastava agora com o cântico sussurrado de Kvasira. Num frémito de que algo estava a acontecer, Wecta assomou á janela e viu um arco-iris com cores majestosas, jamais vistas, mesmo no céu. O cheiro da terra húmida acabada de regar pela chuva, entranhava-se nas suas narinas produzindo um efeito balsâmico sobre Wecta. Cativada pelas cores do arco-iris, lembrou-se do seu sonho e do caminho para Asgard, revelado por sua mãe.
Ao fim de um tempo Kvasira pediu-lhe que se sentasse e que a escutasse. Colocou algumas ervas a queimar que de imediato libertaram fumo no salão. Pegou numa taça que entregou a Wecta para que bebesse.
- Está na hora de partir. A minha missão aqui em Midgard está terminada e de bom grado regresso à Planície de Ida. Daqui a nove luas terás o teu destino cumprido. Midgard será povoada e terás estabelecido o seu equilíbrio entre Asgard. Tu és a única esperança do teu povo, porque és portadora de uma luz incomparável que a tua mãe te cedeu quando te enviou para Midgard. Tudo o que tu vês, e tudo que te rodeia, são meras ilusões criadas por um poder supremo num acto derradeiro de salvação, quando o advento de Ragnarok aconteceu. Foram longos anos de fogo consumindo a ponte que unia os mundos e todos os Deuses com os seres humanos. Cabe-te a ti o destino de restabelecer o equilíbrio entre os Mundos e perpetuar a existência de todos os seres.

1- Câtico fúnebre que significa “De bom grado beberei cerveja/ nas alturas com os Aesir/Os meus dias neste mundo terminaram/rio-me ao morrer (tradução do Finlandês)

 

© Paula Moreira  (excerto de  "Asgard e a Saga dos 9 reinos")
(Todos os direitos reservados)
 

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Wednesday, May 18, 2011 - 16:35

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