Jean Paul Sartre- A Náusea
Isto está mau, muito mau: cá está ela, a porcaria da Náusea. (…)
Então a Náusea acometeu-me, deixei-me cair no assento, nem sequer já sabia onde estava; via as cores girarem lentamente à minha volta, tinha vontade de vomitar. E aqui está: desde então que a Náusea não me deixa; a Náusea apossou-se de mim. (…)
A Náusea não está dentro de mim: sinto-a além, na parede, nos suspensórios, em toda a parte à minha volta. Constitui um todo com o café; sou eu que estou dentro dela. (…)
A Náusea não me abandonou, e não creio que me abandone tão cedo; mas deixei de sofrer com ela, não se trata já duma doença nem dum acesso passageiro: a Náusea sou eu. (…)
A Náusea, o medo, a existência… É melhor guardar essas coisas para mim. (…)
A Náusea concede-me uma trégua curta. Mas sei que voltará: é o meu estado normal. Somente, hoje o meu corpo está cansado de mais para a suportar. Também os doentes têm fraquezas bem-vindas que lhes tiram, por algumas horas, a consciência do seu mal. Aborreço-me, é tudo. De vez em quando bocejo com tanta força que as lágrimas me correm pelas faces. É um aborrecimento profundo, profundo, o coração profundo da existência, a própria matéria de que sou feito.
É preciso não achar estranho o que não tem estranheza nenhuma.
De que há que ter receio num mundo tão regular?
Aconteceu-me qualquer coisa; já não posso duvidar. Qualquer coisa que veio à maneira duma doença, não como uma vulgar certeza, não como uma evidência; que se instalou sorrateiramente, pouco a pouco. A dada altura senti-me um tanto esquisito, algo incomodado, mais nada. Tomado o seu lugar, essa coisa não mexeu mais, ficou como estava, e pude assim convencer-me de que não tinha nada, que tinha sido um rebate falso. Mas eis que o mal começa a propagar-se.
Não acho que a profissão de historiador disponha para a análise psicológica. É um trabalho em que só se entra em jogo com sentimentos inteiros, aos quais se dão nomes genéricos, como Ambição, Interesse.
Uma infinidade de pequenas metamorfoses vai-se acumulando em mim sem eu dar por isso e depois, um belo dia, produz-se uma verdadeira revolução.
Tinha morrido a paixão que me submergia e arrastara durante anos; naquela altura sentia-me vazio. Mas não era isso o pior: defronte de mim, instalada com uma espécie de indolência, havia uma ideia volumosa e insípida. Não sei exactamente o que era, mas não podia olhá-la, a tal ponto ela me repugnava.
Se não me engano, se todos os sinais que se vão acumulando são precursores duma nova transformação brutal da minha vida, então tenho medo. Não que a minha vida seja rica, importante, nem preciosa. Mas tenho medo do que vai nascer, apoderar-se de mim - e arrastar-me... arrastar-me para onde?
(…) este homem, assim que fica sozinho, adormece.(…) Também estes, para existir, precisam de se reunir uns com os outros.
Mais ou menos depressa, uma corrente flui dentro de mim, mas não retenho nada, deixo andar. A maior parte das vezes, como não se prendem a palavras, os meus pensamentos ficam em estado de nevoeiro. Desenham formas vagas e engraçadas, depois imergem, e esqueço-me logo deles.
Estes rapazes fazem a minha admiração: contam, ao beber o seu café, histórias nítidas e verosímeis. Se lhes perguntarem o que fizeram ontem, não se perturbam: põem-nos ao corrente em duas palavras. No lugar deles, eu titubearia. É verdade que há muitíssimo tempo que ninguém se preocupa com o que faço. Quando se vive sozinho, deixa de se saber o que seja narrar: a verosimilhança desaparece ao mesmo tempo que os amigos. E os acontecimentos também: deixamo-los afundarem-se; vêem-se surgir bruscamente pessoas que se põem a falar e se retiram, mergulhamos em histórias sem pés nem cabeça: que execrável testemunha se seria nestes casos! Mas não se perde nada, em compensação, de quanto é inverosímil, de tudo em quanto, nos cafés, não se poderia acreditar.
É raro um homem só ter vontade de rir.
(…) nunca recusei estas emoções inofensivas; pelo contrário. Para as sentir, basta ficar-se sozinho um momento, só o preciso para nos desembaraçarmos, na altura oportuna, da verosimilhança.
Antes conservava-me muito perto das pessoas, à superfície da solidão, bem decidido, em caso de alarme, a refugiar-me no meio delas: no fundo, até aqui, era um amador. Agora há em toda a parte coisas como aquele copo de cerveja, além, em cima da mesa. Quando o vejo, tenho vontade de dizer: «Ferrados! Não brinco mais.» Compreendo perfeitamente que fui longe de mais. Acho que não se pode manter a solidão quietinha no seu lugar. Não quer dizer que eu vá olhar para debaixo da cama antes de me deitar, nem que receie ver a porta do quarto abrir-se bruscamente ao meio da noite. Somente, apesar de tudo, estou inquieto: há talvez meia hora que evito olhar para aquele copo de cerveja. Olho para cima, para baixo, para a esquerda, para a direita. Mas o copo, não quero vê-lo. E sei muito bem que nenhum destes homens que me cercam, solteiros como eu, pode prestar-me o menor auxílio: é tarde de mais, já não posso refugiar-me entre eles. Viriam dar-me palmadinhas nas costas, dir-me-iam: «Então, que é que tem este copo de cerveja? É como todos os outros. Biselado, com uma asa, tem gravado um escudozinho com uma pá, e por cima do escudo está escrito spatenbrüu.» Tudo isto eu sei, mas sei também que há outra coisa. Quase nada. Mas já não posso explicar o que vejo. A ninguém. É isso: vou deslizando suavemente para o fundo da água, direito ao medo.
Todos estes fulanos passam o seu tempo a explicar-se uns aos outros, a reconhecer com contentamento que são da mesma opinião. Que importância que ligam, meu Deus, ao facto de pensarem todos juntos as mesmas coisas. Basta ver a cara que fazem quando passa pelo meio deles um desses homens com olhos de paigo, que parece que andam a olhar para dentro, e com quem, de forma nenhuma, se pode chegar a acordo.
(…) não quero segredos, nem estados de alma, nem inefáveis; não sou virgem, nem padre, para brincar à vida interior.
Mas passa todo o dia cabisbaixa, cansa-se depressa e amua: "É aqui" diz ela tocando na garganta, "trago aqui um nó". Há avareza na sua maneira de sofrer. Nos seus prazeres deve haver também. Admira-me que esta mulher não tenha vontade, às vezes, de se libertar daquela dor monótona, daquele resmonear que volta a moer, assim que ela de deixa de cantar; que não deseje sofrer por uma vez, afogar-se no desespero. Mas, mesmo que quisesse, não poderia: aquele nó veda-lhe a saída ao sofrimento.
Talvez seja impossível cada um compreender a sua própria cara. Ou tudo vem talvez de que sou um homem sozinho... As pessoas que vivem em sociedade aprenderam a ver-se, nos espelhos, tal como aparecem aos seus amigos. Eu não tenho amigos: será por isso que a minha carne é tão nua? Dir-se-ia - sim, dir-se-ia a natureza sem os homens.
O tempo é largo de mais, não se deixa encher. Tudo quanto mergulha nele amolece e dá de si.
(…) Há ainda outra felicidade: fora de mim há aquela faixa de aço. a duração limitada da música que atravessa o nosso tempo de lado a lado, e o recusa, e o rasga com as suas pontas secas e agudas; há um tempo diferente. (…) nada pode interrompê-la, nada deste tempo em que o mundo se afundou; a música cessará por si própria, no momento preciso. (…)Nada pode interrompê-la e tudo pode quebrá-la. Extinguiu-se o último acorde. (…) O que acaba de suceder é que a Náusea desapareceu. (…) Bruscamente: era quase penoso tornar-se assim duro, rutilante. Ao mesmo tempo, a duração da música dilatava-se, inchava como uma tromba marinha. Enchia a sala com a sua transparência metálica, esborrachando contra a parede o nosso tempo miserável. Agora estou dentro da música.
Tive verdadeiras aventuras. Não me lembro dos pormenores, mas percebo o encadeamento rigoroso das circunstâncias. Atravessei os mares, deixei cidades ficar para trás, e subi os rios ou penetrei pelas florestas, e buscava sempre outras cidades. Possuí mulheres e joguei à pancada com homens; e nunca podia voltar atrás, como um disco não pode girar ao contrário. E tudo isso me levava aonde? A este minuto, a este assento, a esta bolha de claridade (…) estou aqui, a viver o mesmo segundo que estes jogadores de manilha…
Estou farto das coisas vivas, dos cães, dos homens, de todas as massas moles que se movem espontaneamente.
Lucie emite um pequeno gemido. Leva a mão à garganta, arregalando os olhos espantados. Não, não é a si própria que vai buscar força para sofrer tanto. A força vem-lhe do exterior... é este boulevard (têm mesmo poças de água que nunca secam excepto um mês por ano, em Agosto). Era preciso agarrá-la pelos ombros, levá-la para as luzes, para o meio das pessoas, para as ruas doces e cor-de-rosa: aí não se pode sofrer tanto; ela amoleceria, recobraria o seu ar positivo e voltaria ao nível habitual dos seus sofrimentos.
Acabo de perceber qual é o método do Autodidacta: vai-se instruindo por ordem alfabética. (…) Atrás dele, adiante dele, há um universo. E aproxima-se o dia em que dirá para consigo, fechando o último volume da ultima prateleira da extrema esquerda: «E agora?»
É isso o tempo, o tempo inteiramente nu, que acede lentamente à existência que faz esperar, e que, quando chega, nos enfastia, porque conhecemos então que já estava ali havia muito.
Nunca tive tão nitidamente como hoje o sentimento de ser o meu corpo, sem dimensões secretas, de me reduzir aos pensamentos leves que sobem dele como bolhas. Construo as minhas recordações com o meu presente. Sou repelido para o presente, abandonado lá. Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir da minha prisão.
Pode-se dizer, com Pascal, que o hábito é uma segunda natureza?
Acho que se podia definir a aventura assim: um acontecimento que sai do ordinário, sem ser forçosamente extraordinário. Fala-se da magia das aventuras. O senhor acha a expressão adequada?
(…)
Não tive aventuras. Sucederam-me histórias, acontecimentos, incidentes, tudo o que se quiser. Mas aventuras, não. Não é uma questão de palavras; começo a compreender. Há qualquer coisa que eu prezava mais que tudo o resto - sem dar bem por isso. Não era o amor, oh, não!, nem a glória, nem a riqueza. Era... Enfim, tinha imaginado que, em certos momentos, a minha vida podia ganhar uma qualidade rara e preciosa. Não eram precisas circunstâncias extraordinárias: tudo quanto eu pedia era um pouco de rigor. (…) Alguma coisa começa para acabar: a aventura não admite prolongamentos artificiais; só da sua morte lhe vem o sentido. Sem possibilidade de voltar atrás, sou arrastado para essa morte, que talvez seja também a minha. Cada instante só aparece para trazer os que se lhe seguem. Sinto-me ligado a cada um, do fundo do coração: sei que ele é único, insubstituível - e não faria, porém, um gesto para o impedir de voltar ao nada. Um último minuto que passo - em Berlim, em Londres- nos braços de certa mulher encontrada na antevéspera - minuto que amo com paixão, mulher que estou perto de amar -, esse minuto vai acabar, bem sei. Daqui a nada partirei para outra terra. Não voltarei a encontrar esta mulher, nem esta noite, nunca mais. Debruço-me sobre cada segundo, tento esgotá-lo; nada se passa que eu não note, que não fixe em mim para todo o sempre nem a ternura fugitiva destes lindos olhos, nem os ruídos da rua, nem a claridade dissimulada da manhãzinha: e entretanto o minuto corre, e não o retenho; gosto que passe. E depois, bruscamente, parte-se qualquer coisa. A aventura acabou, o tempo retoma a sua moleza quotidiana. Viro-me; atrás de mim, uma bela forma melódica mergulha inteira no passado: diminui, contrai-se ao declinar; já o fim se lhe confunde com o princípio. Ao seguir com os olhos esse ponto de ouro, penso que aceitaria -mesmo se tivesse estado em perigo de morrer, se tivesse perdido uma fortuna ou um amigo - reviver tudo, nas mesmas circunstâncias, dum extremo ao outro. Mas uma aventura não recomeça, nem se prolonga. Sim, é isso que eu pretendia - ah!, é o que ainda pretendo. Experimento uma felicidade tão grande ao ouvir cantar uma preta: a que cumes não me alçaria se a minha própria vida constituísse a matéria da melodia?! A Ideia ainda ali está, a inominável! À espera, tranquilamente. Agora tem um ar de quem diz: «Sim? É isso que tu querias? Pois é precisamente o que nunca tiveste (lembra-te: enganavas-te a ti próprio com palavras, chamavas aventuras ao ouropel das viagens, a amor de mulheres, a brigas, a missanga) e o que não terás nunca - nem tu nem ninguém.» Mas porquê? PORQUÊ? (…)Reconsiderei as minhas reflexões de ontem. Ontem estava seco de todo: era-me indiferente que não houvesse aventuras. O que eu queria saber era apenas se não podia haver.
Eis o que pensei: para o acontecimento mais banal se tornar uma aventura, é preciso, e é bastante, que nos ponhamos a contá-lo. É o que engana as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias: vive cercado das suas histórias e das de outrem, vê tudo quanto lhe sucede através delas; e procura viver a sua vida como se estivesse a contá-la. Mas é preciso escolher: viver ou contar.
Quando se vive, não sucede nada. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem; é tudo. Nunca há princípios. Os dias sucedem aos dias, sem tom nem som; é um alinhamento interminável e monótono. De vez em quando tira-se um total parcial; diz-se: «Há três anos que ando a viajar, há três anos que estou em Bouville.» E fins também não há: nunca se deixa uma mulher duma só vez, nem um amigo, nem uma cidade. E depois tudo se parece: Xangai, Moscovo, Argel, ao fim de quinze dias, é tudo o mesmo. Em certos momentos - raras vezes - deitam-se contas à vida, percebe-se que estamos ligados a uma mulher, que nos metemos num bom sarilho. Como um clarão, o momento passa. Então o desfile recomeça, voltamos a alinhar as horas e os dias. Segunda-feira, terça, quarta. Abril, Maio, Junho. 1924, 1925, 1926. Viver é isto.
Mas quando se conta a nossa vida, tudo muda; somente, é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como se pudesse haver histórias verdadeiras! Os acontecimentos produzem-se num sentido e contamo-los no sentido inverso. Dir-se-ia que começamos pelo princípio. «Era numa linda tarde de Outono, em 1922.» E na realidade foi pelo fim que começámos. O fim já está nessas poucas palavras, invisível e presente; é ele que lhes dá a pompa e o valor dum princípio. «Andava a passear, tinha saído da vila sem dar por isso, a pensar nas minhas dificuldades de dinheiro.» Esta frase, tomada simplesmente pelo que é, quer dizer que o homenzinho estava absorto, deprimido, a cem léguas duma aventura, precisamente no género de humor, em que se deixam passar os acontecimentos sem lhes dar atenção. Mas o fim já está nela a transformar tudo. Para nós, o homenzinho é, desde já, o herói da história. A sua depressão, as suas dificuldades de dinheiro, são muito mais preciosas do que as nossas; doura-as a luz das paixões futuras. E a narração prossegue ao contrário: os instantes cessaram de se empilhar ao acaso uns por cima dos outros, morde-os o fim da história, que os atrai, e cada um deles atrai, por sua vez, o instante que o precede: «Estava escuro na rua deserta.» A frase é atirada com negligência, traz um jeito de supérflua; mas não caímos no logro e pomo-la de reserva: é uma informação, cujo valor aparecerá mais tarde. E temos o sentimento de que o herói viveu todos os pormenores dessa noite como anunciações, como promessas, ou até de que só vivia os que eram promessas, cego e surdo em relação a tudo quanto não anunciasse a aventura. Esquecemos que o futuro ainda não estava com ele; o homenzinho andava a passear numa noite sem presságios, que lhe oferecia à matroca as suas riquezas monótonas, e que ele não escolhia.
Quis que os momentos da minha vida se seguissem e se ordenassem como os duma vida que se rememora. O mesmo, ou quase, que tentar apanhar o tempo pelo rabo.
A mulher está muito ocupada a depositar graciosamente os caroços na colher. O marido, de olhos no tecto, tamborila na mesa um ritmo de marcha. Dir-se-ia que o estado natural de ambos é o silêncio, e a palavra uma febre benigna que às vezes lhes dá.
Em alguns rostos, mais abandonados, julguei ler um pouco de tristeza: mas não, aquela gente não estava triste, nem alegre: repousava. Os seus olhos muito abertos e fixos reflectiam passivamente o mar e o céu. Daí a pouco iriam para casa, beberiam uma chávena de chá, em família, na mesa da casa de jantar. De momento pretendiam viver sem se gastar, economizar os gestos, as palavras, os pensamentos, boiar: tinham apenas um dia para apagar as suas rugas, os seus pés-de-galinha, os vincos amargos que dá o trabalho da semana. Apenas um dia. Sentiam os minutos esgueirar-se-lhes por entre os dedos; teriam tempo para acumular mocidade bastante para recomeçar tudo na segunda-feira de manhã? Dilatavam os pulmões, porque o ar do mar vivifica: só o seu respirar, regular e profundo como o de quem dorme, dava sinal de viverem.(…) O domingo que findou deixou-lhes um gosto de cinza, e já o pensamento se lhes vira para a segunda-feira.
Estava sozinho, mas caminhava como um rancho que descesse sobre uma cidade.
Talvez não preze nada no mundo como o sentimento de aventura. Mas ele vem quando quer; e abandona-me tão depressa! E fico tão seco quando se vai embora. Far-me-á ele estas curtas visitas irónicas para me mostrar que falhei na vida?
Tenho necessidade de me lavar com pensamentos abstractos, transparentes como água.
Decididamente, o sentimento de aventura não vem dos acontecimentos: a prova está tirada. É antes a maneira como os instantes se encadeiam. Eis, creio eu, o que se passa: bruscamente sente-se que o tempo corre, que cada instante conduz a outro instante, esse outro a um terceiro, e assim sucessivamente; que todos os instantes se aniquilam, que é inútil tentar reter algum, etc., etc. E então atribui-se essa propriedade aos acontecimentos que nos aparecem dentro dos instantes; o que pertence à forma é trasladado para o conteúdo. Em suma, esse famoso correr do tempo, fala-se muito dele, mas quase não se vê. Vê-se uma mulher, pensa-se que ela será velha um dia, somente não a vemos envelhecer. Mas em certos instantes parece que a vemos envelhecer e que nos sentimos envelhecer com ela: é o sentimento de aventura.
Chama-se a isso, se bem me lembro, a irreversibilidade do tempo. O sentimento de aventura seria, muito simplesmente, o da irreversibilidade do tempo. Mas porque é que não o temos constantemente? O tempo não será constantemente irreversível? Há momentos em que podemos fazer o que queremos - ir para diante ou voltar para trás, que tanto faz uma coisa como outra; e há outros em que se diria que as malhas se apertaram, e, nesse caso, impõe-se não falhar a cartada, porque a ocasião não se repetiria.
Patife, sem dúvida: quem não o é? Mas grande patife ou pequeno?
Enquanto nos amámos não permitimos que o mais ínfimo dos nossos instantes, a mais leve das nossas dores, se desligasse de nós e ficasse para trás. Os sons, os odores, os matizes do dia, até os pensamentos que não tínhamos confessado, levávamos tudo e tudo ficava ao vivo; não cessavam de nos fazer gozar ou sofrer no presente. Recordações, nenhuma: um amor implacável e tórrido, sem sombras, sem recuo, sem refúgio. Três anos presentes ao mesmo tempo. Foi por isso que nos separámos: não tínhamos bastante força para suportar tal fardo. E então, quando Anny me deixou, duma só vez, todos juntos, os três anos desmoronaram-se e caíram no passado. Nem sequer sofri: sentia-me vazio. Depois o tempo pôs-se de novo a correr, e o vazio aumentou.(…) E pronto; o meu passado é apenas um buraco enorme.
O passado é um luxo de proprietário. Onde havia eu de conservar o meu? Não se mete o passado na algibeira; é preciso ter casa para o arrumar. Possuo apenas o meu corpo; um homem sozinho, só com o seu corpo, não pode reter as recordações; elas passam através dele. Não devia queixar-me: tudo quanto quis foi ser livre.
Como gostava de lhe dizer que o estão a enganar, que ele se deixa ir no jogo dos importantes. Profissionais da Experiência? Pessoas que levaram a vida num torpor, meio a dormir; que se casaram precipitadamente, por impaciência, e fizeram filhos por acaso. Encontraram os outros homens nos cafés, nos casamentos, nos enterros. De vez em quando, apanhados por um remoinho, debateram-se sem compreender o que lhes sucedia. Tudo quanto se passou à roda delas começou e acabou fora da sua vista; longas formas escuras, acontecimentos que vinham de longe, roçaram por elas rapidamente e, quando elas quiseram olhar, já tudo acabara. E depois, pelos quarenta anos, baptizam as suas obstinaçõezinhas e alguns provérbios com o nome de experiência, começam a fazer de distribuidores automáticos: dois vinténs na ranhura da esquerda, e saem anedotas embrulhadas em papel de prata; dois vinténs na ranhura da direita, e recebem-se preciosos conselhos, que se pegam aos dentes como pasta de caramelo.
Mas há também os amadores. São os secretários, o empregado, o comerciante, os que ouvem os outros no café: sentem-se inchados, por altura dos quarenta anos, por uma experiência a que não podem dar saída. Felizmente, fizeram filhos, e obrigam-nos a consumi-la em casa. Gostariam de nos fazer crer que o seu passado não se perdeu, que as suas recordações se condensaram, suavemente convertidas em sabedoria. Cómodo passado! Passado de algibeira, livrinho dourado, cheio de belas máximas. «Acredite-me; digo-lhe isto por experiência própria: tudo quanto sei foi a vida que mo ensinou.» Ter-se-ia, a Vida encarregado de pensar por eles? Explicam o novo pelo antigo - e o antigo explicaram-no por acontecimento mais antigos ainda, como aqueles historiadores que fazem de Lenine um Robespierre russo e de Robespierre um Cromwei francês: no fim de contas, não perceberam nada de nada.. Por trás da sua importância adivinha-se uma preguiça tristonha: vêem desfilar as aparências, bocejam, pensam que não há nada de novo debaixo do Sol.
As ideias gerais são mais reconfortantes. Os profissionais e até os amadores acabam sempre por ter razão. A sua sabedoria recomenda que façamos o menos barulho possível, que vivamos o menos possível, que nos deixemos esquecer. As suas melhores histórias são as de imprudentes, de originais que foram castigados. Pois muito bem: é assim que se passam as coisas, e ninguém dirá o contrário.
Aparece-me a verdade bruscamente: este homem vai morrer em breve. Sabe-o com certeza; basta que se tenha visto a um espelho: todos os dias se parece um pouco mais com o cadáver que vai dar. Eis o que é a Experiência deles, eis porque eu disse para comigo, tantas vezes, que essa experiência cheira a morte: é a última defesa. O profissional (ou amador) bem queria acreditar nela, disfarçar a realidade insustentável: que está sozinho, sem aquisições, sem passado, com uma inteligência que se vai embotando, um corpo que se vai desfazendo. Por isso construiu muito bem, arrumou muito bem, estofou com cuidado a sua maniazinha das compensações: diz a si próprio que vai progredindo. Tem furos na memória? Momentos em que os pensamentos lhe remoinham sem proveito? É que o seu espírito já não tem a precipitação da mocidade. Deixou de compreender o que lê nos livros? É que vive agora tão afastado dos livros! Já não pode amar? Mas pôde antigamente. Ter amado é muito melhor que amar ainda: graças ao recuo, ajuíza-se, compara-se, reflecte-se. E aquele terrível rosto de cadáver, para poder suportar a sua imagem nos espelhos, faz o possível por acreditar que as lições da experiência se gravaram nele.
A Experiência era muito mais que uma defesa contra a morte; era um direito: o direito dos velhos.
Um direito nunca é mais que o reverso dum dever.
Como é mais simples e mais difícil fazer o nosso dever!
Uma vez que o Direito se apodera dum homem, não há exorcismo que possa expulsá-lo.
O País sofre da mais grave doença: a classe dirigente já não quer mandar. E quem mandará então, meus senhores, se aqueles que a hereditariedade, a educação, a experiência, tornaram mais aptos para o exercício do poder se afastam dele por resignação ou cansaço? Muitas vezes o disse: mandar não é um direito da elite; é o seu principal dever. Meus senhores, conjuro-vos: restauremos o princípio da autoridade!
Para mim, o passado era apenas uma entrada na reforma: era outra maneira de existir, um estado de férias e de inacção; cada acontecimento, quando findara o seu papel, se arrumava atinadamente, por si próprio, numa caixa, e se tornava acontecimento honorário: tal é a dificuldade que se tem em imaginar o nada. Agora compreendia: as coisas são inteiramente o que parecem - e por trás delas... não há nada.
Invadiu-me de súbito uma imensa repulsa, e a caneta caiu-me da mão, cuspindo tinta. Que se tinha passado? Estava com a Náusea? Não, não era isso; o quarto tinha o seu aspecto protector de todos os dias. Mal podia dizer que a mesa me parecia mais pesada, mais espessa, e a caneta mais compacta. Somente, o Sr. de Rollebon acabava de morrer pela segunda vez. Um momento antes, ainda ele ali estava, em mim, tranquilo e quente, e, de vez em quando, sentia-o mexer. Estava bem vivo (…) Tinha, sem dúvida, os seus caprichos; podia ficar vários dias sem aparecer; mas muitas vezes, quando, misteriosamente, os dias se apresentavam bonitos, punha a cabeça de fora, como o capuchinho higrométrico, e eu distinguia-lhe a cara sem cor e as bochechas azuis. E mesmo quando não se mostrava, fazia um grande peso no meu coração e eu sentia-me cheio.(…) O grande caso Rollebon acabou, como uma grande paixão.(…) O Sr. de Rollebon era o meu sócio: tinha precisão de mim para ser, e eu tinha precisão dele para não sentir o meu ser. Eu fornecia a matéria bruta, essa matéria de que tinha para dar e vender, e da qual ignorava o que havia de fazer: a existência, a minha existência. Quanto a ele, a sua contribuição consistia em representar. Punha-se em frente de mim e tinha-se apoderado da minha vida para me representar a dele. E eu já não dava porque existia, já não existia em mim mas nele; era para ele que comia, para ele que respirava; o sentido dos meus movimentos era-me exterior, estava ali, precisamente em frente de mim - nele; deixara de ver a minha mão traçar letras no papel, e até a frase que escrevera - mas, por trás, para além do papel, via o marquês que reclamara esse gesto, e cuja existência o mesmo gesto prolongava, consolidava. Eu era apenas um meio de o fazer viver, a minha razão de ser era ele: o marquês libertar-se de mim. Que hei-de fazer agora?
Sobretudo não me mexer, não me mexer...
Ah! Este movimento dos ombros não pude retê-lo...
A coisa, que estava à espera, deu o alerta, precipitou-se sobre mim, vaza-se em mim, estou cheio dela. - Não é nada: a Coisa sou eu. A existência, liberta, despida, reflui sobre mim. Eu existo. Estou a existir. É suave, tão suave, tão lento! E leve: como algo que se mantivesse no ar em suspensão. Sinto mexer: impressões levíssimas por todo o corpo, que fundem e se desvanecem. Suavemente, suavemente. Há na minha boca uma água espumosa. Engulo-a: resvala-me pela garganta, numa carícia - e já outra me cresce na boca; tenho na boca perpetuamente uma poçazinha de água esbranquiçada - discreta - a roçar-me a língua. E essa poça também sou eu. E a língua também. E a garganta sou eu. Vejo a minha mão assente na mesa. A minha mão vive - sou eu. Abre-se, os dedos estendem-se, ficam assestados. Está de costas: mostra-me a barriga papuda. Parece um animal de pernas para o ar. Os dedos são as patas. Entretenho-me a fazê-los mexer muito depressa, como as patas dum caranguejo caído de costas. O caranguejo morreu: as patas descem-me sobre a palma da mão. Vejo as unhas o único fragmento de mim que não vive.., e mesmo assim! A minha mão volta-se, instala-se de barriga para baixo, oferece-me agora as suas costas. Um dorso prateado, um pouco brilhante - dir-se-ia um peixe, se não tivesse os pelos ruivos na base das falanges. Sinto a minha mão. Sou eu estes dois bichos que se agitam na ponta dos meus braços. A minha mão coça uma das suas patas com a unha de outra pata; sinto-a pesar sobre a mesa que não sou eu. Persiste esta impressão de peso, persiste, não passa. Não há razão para passar. Com a continuação torna-se intolerável... Retiro a mão, meto-a na algibeira. Mas sinto logo, através da fazenda, o calor da coxa. Faço saltar imediatamente a mão da algibeira; deixo-a cair paralelamente ao espaldar da cadeira. Agora sinto-lhe o peso na ponta do braço. Um puxar fraco, que mal se sente, mole, macio: é a mão a existir: Não insisto; onde quer que a ponha, continuará a existir, e eu continuarei a sentir que existe; não posso suprimi-la, nem suprimir o resto do meu corpo, o calor húmido que me enxovalha a camisa, nem toda esta banha quente que se move preguiçosamente, como se estivessem a mexê-la com uma colher, nem todas as sensações que me passeiam pelo interior do corpo, que vão e vêm, sobem da ilharga ao sovaco, ou que vegetam discretamente, de manhã à noite, no seu cantinho costumado.
Levanto-me de repelão: se ao menos pudesse parar de pensar, já não seria mau. Os pensamentos são o que há de mais enjoativo. Mais enjoativos ainda que a carne. Prolongam-se interminavelmente e deixam um gosto esquisito.
E depois há as palavras no interior dos pensamentos, as palavras incompletas, os embriões de frase que reaparecem constantemente: «Tenho de acab... Eu exis... Morr... O Sr. de Roll morreu... Não sou... Exis...» É algo que anda, anda, e nunca acaba. É pior que o resto, porque disso sinto-me responsável e cúmplice. Por exemplo, esta espécie de ruminação dolorosa: eu existo, sou eu que a alimento. Eu. O corpo vive sozinho, uma vez que começou a viver. Mas o pensamento sou eu que o continuo, que o desenrolo. Existo. Penso que existo. Oh, que comprida serpentina, este sentimento de existir e eu, muito devagarinho, a desenrolá-la... Se pudesse fazer com que não pensasse! Tento, consigo: tenho a impressão de que a cabeça se me enche de fumo... mas eis que tudo recomeça: «Fumo... não pensar... Não quero pensar... Penso que não quero pensar. Não posso pensar que não quero pensar. Porque isso mesmo é um pensamento.» Então isto nunca mais acaba?
O meu pensamento sou eu: por isso é que não posso deter-me. Existo porque penso... e não posso deixar de pensar. Neste momento preciso - é odioso -, se existo é porque tenho horror a existir. Sou eu, sou eu que me extraio do nada a que aspiro: o ódio à existência, a repulsa pela existência, são outras tantas maneiras de a cumprir, de mergulhar nela. Os pensamentos nascem por trás de mim como uma vertigem, sinto-os nascer por trás da minha cabeça... se ceder, virão pôr-se à minha frente, entre os olhos - e cedo sempre, o pensamento avoluma-se, avoluma, e fica enorme, a encher-me todo, a renovar-me a existência.
A minha saliva tem um sabor açucarado, o meu corpo está morno; sinto-me desenxabido. O meu canivete está em cima da mesa. Abro-o. Porque não? De toda a maneira, sempre seria uma mudança. Assento a mão esquerda no caderno, e mando-lhe uma boa facada à palma. Gesto muito nervoso; a lâmina escorrega, o ferimento é superficial. Está a deitar sangue. E afinal? Alguma coisa mudou? Ainda assim, olho com satisfação para aquele charcozinho de sangue no papel branco, por entre as linhas que tracei há bocado; para aquele charcozinho que deixou, enfim, de ser eu. Quatro linhas numa folha branca, uma mancha de sangue, é assim que se formam as belas recordações. Hei-de escrever por baixo: «Neste dia desisti de fazer o meu livro sobre o marquês de Rollebon.»
Trato desta mão ou não trato? Hesito. Olho para o veiozinho monótono de sangue. Lá está ele precisamente a coagular. Acabou-se. A minha pele, em volta do golpe, parece que criou ferrugem. Debaixo da pele resta apenas uma sensação ténue, semelhante às outras, talvez mais insípida ainda.
Está a dar a meia hora das cinco. Levanto-me; cola-se-me à carne a camisa fria. Saio. Porquê? Bem, porque também não tenho razão para não sair. Mesmo que fique em casa, mesmo que vá pôr-me a um canto, encolhido e calado, não me esquecerei de mim. Lá ficarei a pesar no sobrado. Eu sou.
Passo por um vendedor de jornais e compro-lhe um. Sensacional. Foi encontrado o corpo da pequena Lucienne! Um cheiro a tinta; o papel amarrota-se-me entre os dedos O ignóbil indivíduo anda a monte. A criança foi violada. Encontraram o corpo, de dedos crispados na lama. Faço o jornal numa bola, crispando os dedos nele; cheiro a tinta: santo Deus, como as coisas estão hoje a existir com força! A pequena Lucienne foi violada. Estrangulada. Existe ainda o seu corpo, a sua carne contusa. Ela já não existe. As suas mãos. Ela já não existe. As casas. Caminho entre as casas, estou entre as casas, no meio da rua, muito direito: sou. Por baixo dos meus pés a rua existe, as casas voltam a fechar-se sobre mim, como a água se fecha sobre mim, sobre o papel em montanha de cisne, sou. Sou, existo, penso logo sou, sou porque penso, porque é que penso? Não quero pensar mais, eu sou porque penso que não quero ser, penso que eu... porque... Safa! Fujo, o ignóbil indivíduo anda a monte, o corpo violado. A criança sentiu uma carne alheia a escorregar pela dela. Eu... eis que eu... Violada. Um suave desejo sangrento de estupro apanha-me pelas costas, sem ruído, por trás das orelhas, as orelhas desatam a correr atrás de mim. Os cabelos ruivos... na minha cabeça ruivos, uma erva molhada, uma erva ruiva: estes cabelos sou eu ainda?
E o jornal também sou eu? Segurar no jornal, existência contra existência... As coisas existem encostadas umas às outras; largo o jornal. Aparece-me uma casa, como um jacto, a casa existe; na minha frente... vou andando ao rés do muro, existo ao longo do muro longo, em frente do muro, um passo, o muro existe na minha frente, um, dois, por trás de mim, um dedo a roçar-me nas cuecas, roça, raspa e tira o dedo da criança maculado de lama, a lama no meu dedo que saía do regato lodoso e volta a cair, lentamente, lentamente, amolecia, roçava com menos força que os dedos da criança ao ser estrangulada, ignóbil indivíduo, raspavam a lama, a terra com menos força, o dedo desliza suavemente, cai de cabeça para baixo e acaricia-me rolo quente encostado à coxa; a existência é mole e rola e anda aos bordos, eu ando aos bordos entre as casas, sou, existo, penso logo ando aos bordos, sou, a existência é uma queda caída, não cairá, cairá, à janela o dedo roça, a existência é uma imperfeição. Um senhor. O bonito senhor existe. O senhor sabe que existe. Não, o bonito senhor que ali vai, altivo e manso como uma corriola, não sente que existe. Expandir-me; dói-me a mão golpeada, existe, existe, existe. O bonito senhor existe Legião de Honra, existe bigode, mais nada; como se deve ser feliz de se ser apenas uma Legião de Honra e um bigode, e o resto ninguém vê, o senhor vê as duas pontas aguçadas do bigode, uma de cada lado do nariz; não penso logo sou um bigode. O seu corpo magro, os seus pés grandes, não os vê; vasculhando-se, bem no fundo das calças, sempre se encontraria um par de borrachinhas cinzentas. Tem a Legião de Honra, os Safados têm o direito de existir: «existo porque tenho esse direito.» Tenho o direito de existir, logo tenho o direito de não pensar: ergue-se o dedo. E se eu fosse...? afagar no desdobramento dos lençóis brancos a carne branca em flor que cai doce, tocar nas lenturas floridas das axilas, nos elixires e nos licores e nas florescências de carne, entrar na existência de outrem, nas mucosas vermelhas do pesado, doce, doce cheiro a existência, sentir-me existir entre os doces lábios molhados, os lábios vermelhos de sangue pálido, lábios palpitantes que bocejam todos molhados de existência, todos molhados dum pus claro, entre esses lábios molhados açucarados que lagrimejam como olhos? O meu corpo de carne que vive, a carne que fervilha e mexe devagarinho licores, fica creme, mexe, mexe, mexe, a água doce e açucarada da minha carne, o sangue da minha mão, dói-me, enfada a minha carne contusa, que mexe, anda, vou a andar, a fugir, sou um ignóbil indivíduo de carne contusa, contusa de existir contra estas paredes. Tenho frio, dou um passo, tenho frio, mais um passo, viro à esquerda, vira à esquerda, pensa que vira à esquerda, doido, estarei doido? Ele disse que tem medo de estar doido, a existência, vês a existência com vista curta, pára, o corpo pára, pensa que pára, donde vem? Que está a fazer? Lá vai outra vez, tem medo, muito medo, ignóbil indivíduo, o desejo como uma névoa, o desejo, o fartum, diz que está farto de existir, está farto? Cansado de farto de existir. Corre. Porque espera ele? Corre para fugir a si próprio, para se deitar à doca? Corre, o coração, o coração a bater, é uma festa. O coração existe, as pernas existem, a respiração existe, existem a correr, a assoprar, a bater molemente, lentamente perde o fôlego, perco o fôlego, diz que perde o fôlego; a existência agarra-me os pensamentos pelas costas, e lentamente desenvolve-os pelas costas; agarram-me pelas costas, obrigam-me por trás de mim a pensar, portanto a ser qualquer coisa, por trás de mim que ofegando formo bolas leves de existência, ele é bola de bruma de desejo, que pálido que fica no espelho, pálido como um morto, Rollebon morreu,, Antoine Roquentin não morreu, desmaiar; diz que queria desmaiar, vai a correr os cavalos a correr (pelas costas) pelas costas pelas costas, a pequena Lucile atacada pelas costas, violada pela existência pelas costas, ele pede misericórdia, tem vergonha de pedir misericórdia, piedade, ó da guarda ó da guarda logo existo, entra no Bar da Marinha, os espelhinhos do bordelzinho que pálido que fica nos espelhinhos do bordelzinho o ruivo alto mole que se deixa cair no assento, o pick-up está a tocar, existe, tudo gira, existe o pick-up, o coração bate: girai, girai, humores da vida, girai gelados, xaropes da minha carne, doces sucos... o pick-up.
When the low moon begins to beam Every night I dream a litlle dream.
A voz, grave e roufenha, aparece bruscamente e o mundo evapora-se, o mundo das existências. Uma mulher de carne e osso teve esta voz, cantou diante dum disco, com o vestido melhor que tinha, e iam-lhe gravando a voz. A mulher: ora! Ela existia como eu, como Rolleboii, não tenho vontade de a conhecer. Mas há esta coisa. Não se pode dizer que exista. Existe o disco que gira, o ar, ferido pela voz, que vibra, existe, a voz que impressionou o disco existiu. Eu que ouço existo. Tudo está cheio: existência por todos os lados, densa e pesada e suave. Mas, para além de toda esta suavidade, inacessível, tão próximo, tão longe infelizmente, jovem, impiedoso e sereno, há este... este rigor.
TERÇA-FEIRA.
Nada. Existi.
Há um círculo de sol sobre a toalha de papel. Dentro do círculo arrasta-se uma mosca, entorpecida, aquecendo-se e esfregando uma na outra as patas da frente. Vou fazer-lhe o favor de a esborrachar. A mosca não vê surgir este indicador gigante, cujos pelos dourados brilham ao sol. «Não a mate!», grita o Autodidacta. A mosca rebenta, saem-lhe da barriga as tripazinhas brancas; desembaracei-a da existência. Digo secamente ao Autodidacta: «Era um favor a prestar-lhe.»
Os namorados (…) alimentam no coração o mesmo sonho, tão doce, tão débil! Estão à vontade, olham com confiança para as paredes amarelas, para as pessoas, acham que o mundo está bem como é, exactamente como é, e cada um deles colhe provisoriamente, na do outro, o sentido da sua vida. Dentro em pouco, reunidos ambos, constituirão apenas uma só vida, uma vida lenta e morna que deixará de ter qualquer sentido - mas disso não se aperceberão eles.
(…) Pensa que a velhice é atilada, que a mocidade é bela, meneia a cabeça com certa tafularia: sabe muito bem que ainda é belo, que está admiravelmente conservado, que, com a sua tez morena e o seu corpo esbelto, ainda pode seduzir. Representa o papel dos sentimentos paternais.
Vão dormir juntos. Sabem-no muito bem. Cada um deles sabe que o outro também sabe. Mas, como são novos, castos e decentes, como cada um quer conservar a sua estima por si próprio e a estima do outro, como o amor é uma grande coisa poética que é preciso não amedrontar, vão juntos, várias vezes por semana, aos bailes e aos restaurantes oferecer o espectáculo das suas dançazinhas rituais e mecânicas... No fim de contas, é preciso matar o tempo. São os dois jovens e de boa compleição: ainda têm diante deles uns trinta anos. Por isso não se apressam, saboreiam o seu vagar, e não deixam de ter razão. Quando tiverem dormido juntos, precisarão de encontrar outra coisa para encobrir o enorme absurdo da sua existência. Embora... Será absolutamente necessário mentirmos a nós próprios?
Percorro a sala com os olhos. É uma farsa! Todas estas pessoas estão sentadas com uns modos sérios. A comer. Não, não estão a comer: estão a recobrar forças para levar a bom termo a tarefa que lhes incumbe. Cada um tem a sua porfiazinha pessoal que o impede de se aperceber de que existe; não há nenhum que não se julgue indispensável a alguém ou a alguma coisa. (…)
Ninguém diria, mas sei que existo e que os outros existem. Gostava de parar, mas não posso: rio até às lágrimas. «O senhor está alegre», diz-me o Autodidacta com muita circunspecção.
«É de pensar», digo-lhe a rir, «que estamos aqui, tantas pessoas, a comer e a beber para conservar a nossa preciosa existência, e que não há nada, nada, nenhuma razão para existir.»
O Autodidacta repete lentamente: «Nenhuma razão para existir... O senhor quer dizer, sem dúvida, que a vida não tem finalidade? Não é a essa opinião que se chama o pessimismo?» Reflecte um momento mais; depois diz, com doçura: «Aqui há uns anos, li um livro dum autor americano... chamava-se A Vida Vale a Pena Ser Vivida? Não é a mesma pergunta que o senhor faz?»
É claro que não, não é a pergunta que faço. Mas não quero explicar nada.
«O autor concluía», informa-me o Autodidacta num tom de consolação, «optando por um optimismo voluntário. A vida tem sentido, desde que lho queiramos dar. É preciso, antes de mais nada, agir, deitarmos braços a uma empresa. Se em seguida se reflecte, a sorte está lançada, estamos comprometidos. Não sei o que o senhor pensa da questão...»
«Nada», digo eu. Ou, antes, penso que é exactamente essa a espécie de mentira que andam perpetuamente a pregar a si próprios o caixeiro-viajante, os dois namorados o o senhor de cabelos brancos…
O Autodidata sorri com alguma malícia e muita solenidade: «Também não sou dessa opinião. Acho que não temos de ir buscar tão longe o sentido da vida.»
«Hem?»
«Há uma finalidade, meu caro senhor, há uma finalidade... há os homens.»
É verdade: já me esquecia de que ele é humanista.
«Há os homens.»
Este homem sensível acaba de pintar um auto-retrato perfeito. - Sim, mas não sabe dizer bem a sua frase. Tem os olhos a trasbordar de alma, é indiscutível, mas a alma não basta.
«Há os homens, meu amigo, há os homens», dando a este «há» uma espécie de força canhestra, como se o seu amor pela humanidade, perpetuamente novo e admirado, se enredasse nas próprias asas gigantescas.(…) o seu amor pela humanidade é ingénuo e bárbaro: um humanista da província.
«Os homens», digo-lhe eu, «os homens... em todo o caso, o senhor não parece preocupar-se muito com eles: está sempre sozinho, sempre às voltas com os livros.»
O Autodidacta bate palmas, põe-se a rir maliciosamente : «Engana-se. Ah, dê-me licença que lhe diga: o senhor está muito enganado!» (…) diz o Autodidacta; «já há muito tempo que lhe devia ter dito... Não é todos os dias que se encontra um homem como o senhor, em quem a largueza de vistas se reúne à penetração da inteligência. Há meses que ando com vontade de lhe explicar, explicar-lhe o que fui, no que me tornei...»
«Falei-lhe de ter estado prisioneiro na Alemanha. Foi lá que tudo começou. Antes da guerra estava sozinho e não sabia que estava; vivia com os meus pais, que eram umas santas pessoas, mas não me entendia com eles. Quando penso nesses anos... Mas como pude eu viver assim? Estava morto, meu caro senhor, e não dava por isso: tinha uma colecção de selos.»
«Veio a guerra e alistei-me, sem saber porquê. Fiquei dois anos sem compreender, porque a vida da frente deixava pouco tempo para reflectir, e depois os soldados eram muito ordinários. No fim de 1917 fui feito prisioneiro. Disseram--me mais tarde que muitos soldados têm recobrado, no cativeiro, a fé da sua infância. «Eu», disse o Autodidacta baixando as pálpebras sobre as pupilas inflamadas, «não creio em Deus; a sua existência é desmentida pela Ciência. Mas no campo de concentração, aprendi a crer nos homens.»
«Via-os suportar com coragem a sua sorte?» «Sim», disse ele dum modo vago, «também havia isso. De resto, éramos bem tratados. Mas queria-lhe falar doutra coisa; nos últimos meses de guerra, já pouco trabalho nos davam. Quando estava a chover, mandavam-nos entrar para um grande barracão de madeira, onde. apertando-nos, cabíamos quase duzentos. Fechavam a porta, e deixavam-nos ali, comprimidos uns contra os outros, numa escuridão quase total.»
«Não sei explicar. Todos aqueles homens estavam ali, mal se viam, mas eu sentia-os contra o corpo, ouvia-lhes o ruído da respiração... Uma das primeiras vezes que noa fecharam no barracão, o aperto era tal que ao princípio julguei que ia sufocar; depois, subitamente, uma poderosa alegria ergueu-se dentro de mim, quase desfaleci: então senti que amava aqueles homens como irmãos, tive vontade de os beijar a todos. A partir desse momento, cada vez que lá voltava sentia a mesma alegria.»
«Esse barracão tinha revestido, a meus olhos, um carácter sagrado. Algumas vezes consegui iludir a vigilância dos guardas e penetrei lá sozinho. Nesse lugar, na escuridão, à lembrança das alegrias que ali conhecera, caía numa espécie de êxtase. As horas passavam sem eu dar por isso. Cheguei às vezes a soluçar.»
«Ia à missa todos os domingos. Nunca fui crente. Mas não se poderia dizer que o verdadeiro mistério da missa é a comunhão entre os homens? Um capelão francês, que perdera um braço, celebrava o ofício. Tínhamos um harmónio. Ouvíamos em pé, de cabeça descoberta, e, enquanto os sons do órgão me transportavam, eu sentia que formava um todo com os homens que me cercavam. Ah, meu caro senhor, o que eu gostava daquelas missas! Ainda hoje, para recordar, vou às vezes à igreja, ao domingo de manhã. Temos, em Santa Cecília, um organista notável.»
«Com certeza que teve muitas vezes saudades dessa vida?»
«Tive... em 1919 foi o ano em que me puseram em liberdade. Passei uns meses muito difíceis. Não sabia o que havia de fazer, ia definhando. Em toda a parte onde via homens reunidos intrometia-me no grupo. Cheguei a acompanhar», acrescenta ele a sorrir, «o enterro dum desconhecido. Um dia, desesperado, deitei ao fogo a minha colecção de selos... Mas encontrei o meu caminho.»
«Ah, sim?»
«Alguém me aconselhou... O senhor... bem sei que posso contar com a sua discrição. Sou... talvez as suas ideias não sejam as mesmas, mas o senhor tem uma tal largueza de espírito -sou socialista.»
Baixou os olhos e as suas longas pestanas palpitam: «Desde o mês de Setembro de 1921 que estou inscrito no partido socialista S. F. I. O. É isto que lhe queria dizer.»
O Autodidacta está radiante de orgulho. Fita-me, de cabeça deitada para trás, de olhos semicerrados, de boca entreaberta: tem um ar de mártir.
Antes de tomar essa decisão, sentia-me numa solidão tão horrível que pensei no suicídio. O que me reteve foi a ideia de que ninguém, absolutamente ninguém, se comoveria com a minha morte, que ficaria mais sozinho ainda na morte que na vida.» Endireita-se, enchem-se-lhe as bochechas. «Nunca mais estarei sozinho, meu caro senhor, nunca mais.»
«Ah, conhece então muita gente?», digo eu.
Ele sorri, e imediatamente me apercebo da minha ingenuidade: «Quero dizer que deixei de me sentir sozinho. Mas é claro, meu caro senhor, que não é necessário, para isso, estar acompanhado.»
«Entretanto», digo eu, «na secção socialista...»
«Ah! Conheço lá toda a gente. Mas a maior parte só de nome. Ouça», diz ele com esperteza, «seremos obrigados a escolher os nossos companheiros de maneira tão estreita? Os meus amigos são todos os homens. Quando vou para o escritório, de manhã, há, diante de mim, atrás de mim, outros homens que vão para o seu trabalho. Vejo-os; se ousasse, sorriria para eles. Penso que sou socialistas, que são eles todos a finalidade da minha vida dos meus esforços, e que não o sabem ainda. É uma festa para mim.»
Que lhe hei-de dizer? Será culpa minha se, em tudo quanto ele disse, reconheço incidentalmente as ideias dos outros, as citações? Se vejo reaparecer, enquanto ele fala, todos os humanistas que conheci? Ah, conheci tantos! O humanista radical é amigo especialmente dos funcionários. O humanista dito «da esquerda» tem como preocupação principal a de conservar os valores humanos; não adere a nenhum partido para não trair o humano, mas as suas simpatias vão para os humildes; é aos humildes que consagra a sua bela cultura clássica. Em geral é viúvo e tem uns bonitos olhos sempre húmidos de lágrimas: nos aniversários chora. Gosta também dos gatos, dos cães e de todos os mamíferos superiores. O escritor comunista gosta dos homens desde o segundo plano quinquenal: castiga porque ama. Púdico, como todos os fortes, sabe esconder os seus sentimentos, mas sabe também, com um olhar, com uma inflexão da voz, fazer pressentir por trás das suas rudes palavras de justiceiro uma paixão ríspida e doce pelos seus irmãos. O humanista católico, o que chegou atrasado, o benjamim, fala dos homens com um ar maravilhado. «Que belo conto de fadas», diz ele, «que é a vida mais humilde, a dum estivador londrino, a duma operária que passa a vida a pespontar calçado!» Escolheu o humanismo dos anjos; escreve, para edificação dos anjos, longos romances tristes e belos, que obtêm frequentemente o prémio Fémina. São estes os papéis grandes, os principais. Mas há outros, uma quantidade de outros: o filósofo humanista, que olha pelos seus irmãos como um irmão mais velho e que tem o sentido das responsabilidades: o humanista que ama os homens tais-quais são; o que os ama tais como deviam ser; o que quer salvá-los com o seu consentimento, e o que decide salvá-los mesmo contra vontade deles; o que tenta criar mitos novos, e o que se contenta com os antigos; o que, no homem, ama a sua morte; o que, no homem, ama a sua vida; o humanista alegre que traz sempre uma graça engatilhada; o humanista sombrio, que se encontra sobretudo em velas a mortos. Odeiam-se todos uns aos outros: como indivíduos, evidentemente - não como homens. Mas o Autodidacta não sabe: fechou-os em si próprio, como gatos num saco de cabedal, e os humanistas vão-se dilacerando mutuamente, sem ele dar por isso. Já está a olhar para mim com menos confiança.
«O senhor não partilha os meus sentimentos?» «Eu sei: o senhor tem as suas pesquisas, os seus livros... Serve a mesma causa doutra maneira.»
Os meus livros, as minhas pesquisas... Que imbecil! Não podia ter dito uma inépcia maior. «Não é esse o motivo por que escrevo.»
No mesmo instante, a cara do Autodidacta transforma-se: dir-se-ia que farejou o inimigo. Nunca lhe tinha visto esta expressão. Qualquer coisa acaba de morrer entre nós.
Fingindo-se surpreendido, pergunta: «Mas... se não sou indiscreto, então porque é que escreve?»
«Bem... não sei: por nada, por escrever.»
«O senhor escreveria se estivesse numa ilha deserta? Não é sempre para ser lido que se escreve?» «Que me respondam: escrevo para certa categoria social, para um grupo de amigos. Muito bem. Talvez o senhor escreva para a posteridade... Mas, queira ou não queira, para alguém escreve.»
Espera uma resposta. Como ela não vem, sorri discretamente. «Talvez o senhor seja um misantropo?» Eu sei o que este falacioso esforço de conciliação dissimula. É pouco, afinal, o que me pedem: simplesmente que aceite um rótulo. Mas é uma cilada: se consinto, o Autodidacta triunfa, e sou imediatamente contornado, reivindicado, ultrapassado, porque o humanismo toma à sua conta, e funde na mesma massa, todas as atitudes humanas. Se nos opomos a ele de frente, caímos no seu jogo; ele tira forças do que lhe é adverso. Existe uma raça de pessoas teimosas e curtas de vista, de salteadores, que perde com ele, a cada jogada: o humanismo digere todas as violências, os piores excessos dessa gente, fá-los numa linfa branca e espumosa. Digeriu o anti-intelectualismo, o maniqueísmo, o misticismo, o pessimismo, o anarquismo, o egotismo; correntes que já só aparecem como etapas, como pensamentos incompletos que só nele encontram a sua justificação. A misantropia tem também o seu lugar neste concerto: não passa duma dissonância necessária à harmonia do conjunto. O misantropo é homem: logo, é preciso que o humanista seja, em certa medida, misantropo. Mas é um misantropo científico, que soube dosear o seu ódio, que, se começa por odiar os homens, é apenas para, mais tarde, poder amá-los melhor. Não quero que me integrem, nem que o meu belo sangue vermelho vá engordar esse animal linfático: não vou cometer a tolice de me declarar «anti-humanista». Não sou humanista, eis tudo. «Acho», digo eu ao Autodidacta, «que é tão impossível odiar os homens como amá-los.»
A minha raiva fervia à superfície, e, durante um momento, tive a impressão desagradável de ser um bloco de gelo enrodilhado em fogo, um lago quieto sob uma toalha de petróleo a arder.
Quem poderá esgotar um homem? Conhecer-lhe todos os recursos?
Para suportar a condição humana, precisa, como toda a gente, de muita coragem. O instante que vai chegar pode ser o da sua morte; o senhor sabe-o, e pode sorrir: vejamos! Não é admirável? Na mais insignificante das suas acções há um heroísmo imenso.
Os homens. Tenho de amar os homens. Os homens são admiráveis. Sinto vontade de vomitar - e, bruscamente, ela chega. Cá está ela: a Náusea.
(…)É então isto a Náusea, esta ofuscante evidência? As voltas que dei à cabeça. Tanto que escrevi acerca dela! Agora sei: existo - o mundo existe - e sei que o mundo existe. É tudo. Mas é-me indiferente. É estranho que tudo me seja indiferente: mete-me medo que assim seja.
Fiquei sem respiração. Nunca, antes destes últimos dias eu tinha pressentido o que queria dizer «existir». Era como os outros, como os que passeiam à beira-mar nos seus trajos de Primavera. Dizia, como eles: «O mar é verde: aquele ponto branco, acolá, é uma gaivota»; mas não sentia que essas coisas existiam, que a gaivota era uma «gaivota existente»; geralmente a existência esconde-se. Está presente à nossa volta, em nós, somos nós; não se podem dizer duas palavras sem falar dela, e afinal não lhe tocamos. Quando eu julgava pensar nela, é de crer que não pensava em nada, tinha a cabeça vazia, ou quando muito uma palavra na cabeça, a palavra «ser». Ou então pensava... como dizer? Pensava na filiação; dizia para comigo que o mar pertencia à classe dos objectos verdes, ou que o verde fazia parte das qualidades do mar. Mesmo quando olhava para as coisas, estava a cem léguas de sonhar que elas existiam: as coisas apareciam-me como um cenário. Pegava nelas, elas serviam-me de utensílios, previa-lhes a resistência. Mas tudo isso se passava à superfície. Se me tivessem perguntado o que era a existência, teria respondido de boa fé que não era nada, que era apenas uma forma vazia que vinha juntar-se às coisas por fora, sem lhes modificar em nada a natureza. E depois sucedeu aquilo: de repente, ali estava, ali estava, era claro como a água: a existência dera-se subitamente a conhecer. Perdera o seu aspecto inofensivo de categoria abstracta: era a própria massa das coisas; a diversidade das coisas, a sua individualidade, já não era mais que uma aparência, um verniz. Esse verniz derretera-se; restavam massas monstruosas e moles, em desordem - nuas, duma medonha e obscena nudez.
Todas as coisas, suave, ternamente, se entregavam à existência como essas mulheres cansadas que se abandonam ao riso, dizendo com uma voz molhada: «Rir faz bem»; exibiam-se umas em frente das outras, faziam umas à outras a confidência abjecta da sua existência. Percebi que não havia meio termo entre a inexistência e aquela abundância extática. A existir-se, era necessário existir até àquele ponto, até ao bolor, à tumidez, à obscenidade. Num outro mundo, os círculos, as melodias, conservam as suas linhas puras e rígidas. Mas a existência é um aviltamento.
Pensava vagamente em suprimir-me, para aniquilar ao menos uma daquelas existências supérfluas. Mas até a minha morte teria sido de mais. De mais, o meu cadáver, o meu sangue tingindo aquelas pedras, ao fundo daquele jardim risonho. E a carne roída teria sido de mais no seio da terra que a tivesse recebido, e os meus ossos, enfim, destacados, descarnados, limpos e polidos como dentes, ainda teriam sido de mais: continuarei eternamente a ser de mais.
Um gesto, um acontecimento no pequeno mundo colorido dos homens nunca é absurdo senão relativamente: em relação às circunstâncias que o acompanham. As palavras dum doido, por exemplo, são absurdas em relação à situação em que ele se encontra, mas não em relação ao seu delírio.
O mundo das explicações e das razões não é o da existência. Um círculo não é absurdo; explica-se muito bem pela rotação dum segmento de recta em torno de uma das suas extremidades. Mas também um círculo não existe. “Aquela” raiz, pelo contrário, existia na medida em que eu não podia explicá-la. Nodosa, inerte, sem nome, fascinava-me, enchia-me os olhos, chamava-me constantemente a atenção para a sua própria existência. Por mais que eu repetisse: «É uma raiz» - o artifício não surtia efeito. Eu via bem que não se podia passar da sua função de raiz, de bomba aspirante, àquilo, àquela pele dura e compacta de foca, àquele aspecto oleoso, caloso, pertinaz. A função não explicava nada: permitia que se soubesse por alto o que era uma raiz, mas não aquela raiz. Aquela, com a sua cor, a sua forma, o seu movimento petrificado, estava... abaixo de qualquer explicação.(…) Raspei com o calcanhar aquela garra preta: tinha vontade de a esfolar um poucochinho. Por nada, por desafio, para fazer surgir no couro curtido o cor-de-rosa absurdo duma escoriação. Para brincar com o absurdo do mundo. Mas quando afastei o pé vi que a casca tinha permanecido preta. Preta? Senti a palavra esvaziar-se, despojar-se do seu sentido com uma rapidez extraordinária. Preta? A raiz não era preta, não era a cor preta que havia sobre aquele pedaço de madeira - era... outra coisa: o preto, como o círculo, não existia.
O essencial é a contingência. Quero dizer que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é estar presente, simplesmente; os existentes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca se podem deduzir. Há pessoas, creio eu, que perceberam isto. Somente, tentaram dominar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si próprio. Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão de óptica, uma aparência que se possa dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuitidade perfeita. Tudo é gratuito, este jardim, esta cidade e eu mesmo. É o sentimento disso, quando acontece que ele entra em nós, que nos dá volta ao estômago, e então começa tudo a andar à roda: aí está a Náusea.
A mentira é pobre: ninguém existe por direito; os burgueses de… são inteiramente gratuitos, como os outros homens; não conseguem deixar de se sentir de mais. E, no seu íntimo, em segredo, transbordam do que são, existem exageradamente, isto é, duma maneira amorfa e vaga; tristes.
A existência não é qualquer coisa que se deixe conceber de longe: é preciso que o sentimento dela nos invada repentinamente, se detenha em cima de nós, nos ponha um peso intenso no coração, como um grande animal imóvel - porque, a não ser assim, nunca se saberá o que ela é.
Os movimentos nunca existem completamente, são passagens, intermédios entre duas existências, tempos fracos.
(…) a existência não tem memória; não conserva nada dos desaparecidos - nem sequer uma saudade. Em toda a parte existência, até ao infinito, de mais, sempre e em toda a parte; existência - nunca limitada senão pela existência.
Cansados e velhos, continuavam, porém, a existir, de má vontade só porque eram demasiado fracos para morrer, porque a morte não podia dar neles senão vindo do exterior: só as melodias é que podem trazer consigo, orgulhosamente, a sua própria morte, como uma necessidade interna; também as melodias não existem. Todo o existente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por encontro imprevisto.
A existência é uma plenitude que o homem não pode abandonar.
Nessa altura gritei e dei por mim de olhos arregalados. Terá sido em sonho que vi aquela enorme presença? Ela estava ali, pousada no jardim, caída sobre as árvores, muito mole, lambuzando tudo, pastosa: uma compota. E eu não estava dentro dela, eu e todo o jardim? Tinha medo, mas estava, sobretudo, irritado; achava aquilo tão estúpido, tão despropositado! Sentia ódio por aquela ignóbil geleia. Havia tanta, tanta! Chegava ao céu, alastrava por todos os lados, enchia tudo com o seu abandono gelatinoso, e eu via-a em profundidade, em profundidade, ultrapassando os limites do jardim e as casas de Bouville; já não era em Bouville que eu estava, nem em parte nenhuma: ia boiando. Não estava surpreendido, bem sabia que aquilo era o Mundo, o Mundo que, de repente, se mostrava todo nu; e sufocava-me a cólera contra esse ser largo e absurdo. Nem ao menos se podia perguntar donde é que aquilo saía, tudo aquilo, nem por que diabo havia um mundo, em vez de coisa nenhuma. Interrogações sem sentido: o mundo estava presente em toda a parte, à frente, atrás. Não houvera nada antes dele. Nada. Não houvera momento em que ele tivesse podido não existir. Era isso mesmo que me irritava: decerto não havia razão nenhuma para existir essa larva pegajosa. Mas que não existisse não era possível... Era impensável: para imaginar o nada era preciso estar já ali, em pleno mundo, vivo, e de olhos bem abertos; o nada era apenas uma ideia na minha cabeça, uma ideia existente, boiando naquela imensidão: o nada não surgira antes da existência, era uma existência como outra qualquer, e que aparecera depois de muitas outras. Gritei: «Que porcaria, que porcaria!» e sacudi-me para me libertar dessa porcaria peganhenta, mas ela resistia, e era tanta! Toneladas e toneladas de existência, indefinidamente: no fundo desse tédio imenso, eu abafava. E então, de repente, o jardim esvaziou-se como por um grande buraco, o mundo desapareceu da mesma maneira que surgira, ou então fui eu que despertei - em todo o caso, não o vi mais; restava, em minha volta, uma terra amarela, da qual saíamos ramos mortos apontando para o ar. Levantei-me, saí. Ao chegar à cancela, voltei-me. O jardim, então, sorriu para mim. Encostei-me à grade e olhei para ele longamente. O sorriso das árvores, do tufo de loureiros, queria dizer alguma coisa; era isso o verdadeiro segredo da existência.(…) Era a mim que se dirigia? Sentia, com aborrecimento, que não tinha meio nenhum de compreender. Meio nenhum. Todavia, esse jeito estava ali, à espera, parecia um olhar(…) As coisas, dir-se-iam pensamentos que paravam no caminho, esquecidos, esquecidos do que tinham querido pensar, e que assim ficavam, a baloiçar, com um sentidozinho pândego que os ultrapassava. Sentidozinho que me irritava: não poderia compreendê-lo, mesmo que ficasse cento e sete anos encostado à grade; tinha sabido da existência tudo quanto podia saber.
Sei que nunca mais encontrarei coisa nenhuma nem ninguém que me inspire paixão. Sabes? Pôr-se uma pessoa a amar alguém não é tarefa fácil. É preciso ter uma energia, uma generosidade... É preciso uma cegueira... Há até um momento, logo ao princípio, em que se tem de saltar por cima dum precipício: quem reflecte não salta. E eu sei que nunca mais saltarei.
(…) Os momentos perfeitos chegam posteriormente. Há primeiro sinais que os anunciam. Depois a situação privilegiada entra lenta, majestosamente, na vida das pessoas. É então que se põe a questão de saber se se quer ou não transformá-la num momento perfeito. (…)Em cada situação privilegiada há certos actos que é preciso fazer, certas atitudes que é preciso tomar, palavras que é preciso dizer - e são estritamente proibidas outras atitudes, outras palavras. (…) era preciso, primeiro, estar mergulhado em qualquer coisa de excepcional e sentir que a punham em ordem. Se todas essas condições tivessem sido realizadas, o momento teria sido perfeito.
Era uma vez um rei que tinha perdido uma batalha e sido aprisionado. Vivia a um canto, nos acampamentos do vencedor. Um dia vê passar, agrilhoados, o seu filho e a sua filha. Não chorou, não disse nada. Em seguida vê passar, agrilhoado também, um servo seu. Então pôs-se a gemer e a arrancar os cabelos.
«Outras vezes é preciso ser mais que estoico. Não te lembras da primeira vez que te beijei?» «Lembro-me muito bem», respondo eu triunfante, «foi nos jardins de Kiew, à beira do Tamisa.» «Mas o que nunca soubeste foi que eu me tinha sentado num tufo de ortigas: o vestido tinha-se-me levantado, as minhas coxas estavam cobertas de picadas, e, ao menor movimento, recebia picadas novas. Pois bem, nesse caso o estoicismo não teria bastado. Não me perturbavas nada, não sentia nenhum desejo particular dos teus lábios; o beijo que ia dar-te era duma importância muito maior, era um compromisso, um pacto. Aquela dor era impertinente, mas não me era permitido pensar nas minhas coxas em semelhante momento. Não bastava não dar sinais de sofrimento: era preciso não sofrer.»
«Durante mais de vinte minutos, todo o tempo que lutaste para conseguir esse beijo, e eu estava bem decidida a dar-to, todo o tempo em que me fiz rogada - porque era preciso dar-to nas devidas formas -, consegui anestesiar-me completamente. Sabe Deus, porém, como é sensível a minha pele; pois não senti nada, até nos termos levantado.»
(…) «Que não há situações privilegiadas?» «Pois não. Eu julgava que o ódio, o amor ou a morte desciam sobre nós como as línguas de fogo da Sexta-Feira Santa. Julgava que se podia resplandecer de ódio ou de morte. Que engano! É verdade, sim, pensava que isso existia - 'o Ódio' -, que vinha pousar nas pessoas e elevá-las acima de si próprias. Afinal, sou eu apenas, eu a odiar, eu a amar. E essa coisa - eu - é sempre a mesma coisa, uma pasta a estirar-se, a estirar-se... sempre tão semelhante a si mesma que admira como é que as pessoas tiveram a ideia de inventar nomes, de fazer distinções.»
«E então, já que pensaste nisso tudo, que nos resta agora fazer?» Baixo a cabeça. «Vou... vou sobrevivendo a mim própria», repete ela, pesadamente. Que poderei dizer-lhe? Conheço eu algumas razões para viver? Não estou, como ela, desesperado, porque nunca tinha esperado grande coisa. Estou é... espantado diante desta vida que me é dada... dada para nada.
Vivo no passado. Agarro em tudo quanto me sucedeu, e componho-o. De longe, assim, as lembranças não nos doem e por um pouco não nos deixamos enganar. A nossa história é toda bastante bela. Dou-lhe uns jeitinhos. E pronto! fica uma sequência de momentos perfeitos. Nessa altura fecho os olhos e tento imaginar que estou a viver ainda dentro deles. Disponho também doutras personagens. É preciso sabermos concentrar-nos.
Tenho medo das cidades. Mas não posso abandoná-las. Se nos aventuramos a ir muito longe, encontramos o círculo da Vegetação. A Vegetação tem rastejado quilómetros e quilómetros em direcção às cidades. Está à espera. Quando a cidade tiver morrido, a Vegetação vai invadi-la, trepar-lhe pelas pedras, encerrá-las, esquadrinhá-la, fazê-las estalar com as suas longas pinças negras; obstruir os buracos, fazer pender, de toda a parte, patas verdes. É de ficar nas cidades, enquanto estão vivas; e nunca penetrar sozinho por aquela grande cabeleira que está às suas portas: deixemo-la ondular e estralejar sem testemunhas. Nas cidades, quem souber fazer as coisas, escolher as horas em que os bichos digerem ou dormem, nas suas tocas, por trás dos amontoados de detritos orgânicos, quase só encontra minerais, os menos pavorosos dos existentes.
Sou livre: já não me resta nenhuma razão para viver.
É gente sossegada, um pouco taciturna; pensa no dia de amanhã, isto é, simplesmente num novo hoje; as cidades só dispõem de um único dia que volta igualzinho todas as manhãs. Aos domingos é que o enfeitam um pouco mais. Que imbecis! Repugna-me pensar que vou voltar a ver-lhes as caras espessas e aquietadas. Pessoas que legislam, que escrevem romances populistas, que se casam, que cometem a extrema tolice de fazer filhos. Entretanto, a grande natureza penetrou-lhes sub-repticiamente na cidade, infiltrou-se em toda a parte, na casa deles, nos escritórios, nelas próprias. Não se mexe, deixa-se estar quieta, e as pessoas estão todas metidas nela, respiram-na e não a vêem, imaginam que ela está lá fora, a vinte léguas da cidade. Eu vejo-a, essa natureza, eu então vejo-a... Sei que a sua submissão é preguiça, sei que ela não tem leis: o que as pessoas tomam pela sua constância... Ela também tem apenas hábitos, e pode mudar de hábitos amanhã.
Se acontecesse alguma coisa? Se bruscamente ela se pusesse a palpitar? As pessoas dariam então porque ela está presente e julgariam que lhes fosse estalar o coração. Para que lhes serviriam então os seus diques e as suas muralhas e as suas centrais eléctricas e os seus altos fornos e os seus martelos-pilões? E isso pode suceder em qualquer altura, talvez já.
Pois muito bem! Que isto mude um pouco, só para ver; não peço outra coisa. Quantos se verão, então, mergulhados bruscamente na solidão! Homens sós, absolutamente sós, com horríveis monstruosidades, correrão pelas ruas, passarão pesadamente diante de mim, de olhos fixos, fugindo aos seus males e levando-os consigo, de boca aberta, com a sua língua-insecto a bater as asas. Então é que eu rebentarei a rir, mesmo se o meu corpo estiver coberto de nojentas crostas suspeitas que se abram, como flores de carne, em violetas, em ranúnculos. Encostar-me-ei a uma parede e, ao vê-los passar, gritar-lhes-ei: «Que é feito da vossa ciência? Que é feito do vosso humanismo? Onde está a vossa dignidade de cana pensante?» Não terei medo - ou, pelo menos, não terei mais medo do que neste momento. Não será tudo isso existência, sempre existência, variações sobre a existência? Todos esses olhos que comerão lentamente um rosto serão de mais, sem dúvida, mas não mais que os dois primeiros. É da existência que tenho medo.
Tudo quanto resta de real em mim é existência que se sente existir.
Aos trinta anos! Tenho piedade de mim. Há momentos em que pergunto a mim mesmo se não faria melhor em gastar num ano os trezentos mil francos que me restam - e depois... Mas que é que isso me daria? Fatos novos? Mulheres? Viagens? Tudo isso eu tive, e agora acabou-se, já nada me causa inveja: pelo que ficaria disso tudo!... Daí a um ano encontrar-me-ia novamente tão vazio como hoje, sem uma recordação sequer, e cobarde diante da morte.
Não sou, porém, um velho! Dêem-me qualquer coisa para fazer, um trabalho qualquer... Valia mais pensar noutra coisa, porque, neste momento, estou a representar para mim próprio. Sei muito bem que não quero fazer nada: fazer seja o que for é criar existência - e, sem isso, já há existência que chegue
Pensar que há imbecis que tiram consolações das belas-artes! Como a minha tia Bigeois: «Por morte do teu tio, coitado, os Prelúdios de Chopin foram para mim um bálsamo tão poderoso !» E as salas de concerto estão cheias de humilhados, de ofendidos que, de olhos fechados, procuram transformar as suas pálidas caras em antenas receptoras. Imaginam que os sons captados circulam neles, suaves e nutritivos, e que os seus sofrimentos se fazem música, como os do jovem Werther; julgam que a beleza é compassiva para com eles. Estupores!
Gostava que me dissessem se acham compassiva esta música que estou a ouvir.
Quatro notas de saxofone. Notas que vão e vêm, que parece que dizem: «É preciso fazer como nós, sofrer a compasso.» Pois muito bem! É claro que eu gostava imenso de sofrer dessa maneira, a compasso, sem condescendência, sem piedade de mim mesmo, com uma pureza árida.
E eu também quis ser. Não quis mesmo outra coisa; eis a última palavra sobre a minha vida: no fundo de todas aquelas tentativas que pareciam desligadas encontro sempre o mesmo desejo: expulsar a existência para fora de mim, esvaziar os instantes da sua banha, torcê-los, secá-los, purificar-me, endurecer, para produzir, enfim, o som nítido e preciso duma nota de saxofone. Teria aqui, até, matéria para um apólogo: era uma vez um pobre diabo que se tinha enganado de mundo. Existia, como as outras pessoas, no mundo dos jardins públicos, dos cafés, das cidades comerciais, e queria persuadir-se de que vivia noutro sítio, por trás da tela dos quadros, com os doges de Tintoreto, com os bons florentinos de Gozzoli, por trás das páginas dos livros, com Fabrice dei Dongo e Julien Sorel, por trás dos discos de gramofone, com as longas queixas secas dos conjuntos de jazz. E um dia, depois de ter feito muito tempo de imbecil, percebeu, abriu os olhos, viu que as cartas estavam mal dadas: estava precisamente num café, diante de um copo de cerveja morna. Ficou prostrado, no assento; pensou: «Sou um imbecil.» E, nesse momento preciso, do outro lado da existência, nesse outro mundo que se pode ver de longe, mas sem nunca lá chegarmos, uma melodiazinha pôs-se a dançar e a cantar: «É como eu que se deve ser; é preciso sofrer a compasso.»
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