O Bispo Negro - Capítulo II

Aproximava-se o meiado do duodecimo seculo. O principe de Portugal Affonso Henriques depois de uma revolução feliz, tinha arrancado o poder das mãos de sua mãe. Se a historia se contenta com o triste espectaculo de um filho condemnando ao exilio aquella que o gerou, a tradição carrega as tinctas do quadro, pintando-nos a desditosa viuva do conde Henrique arrastando grilhões no fundo de um calabouço. A historia conta-nos o facto; a tradição os costumes. A historia é verdadeira, a tradição verosimil; e o verosimil é o que importa ao que busca as lendas da patria.

Em uma das torres do velho alcacer de Coimbra, encostado entre duas ameias, a horas que o sol fugia do horisonte, o principe conversava com Lourenço Viegas o Espadeiro, e com elle dispunha meios e apurava traças para guerrear a mourisma.

E lançou casualmente os olhos para o caminho que guiava ao alcacer, e viu o bispo D. Bernardo, que, montado em sua nedia mula, cavalgava apressado pela encosta acima.

"Vêdes vós — disse elle ao Espadeiro — o nosso leal D. Bernardo, que para cá se encaminha? Negocio grave por certo o faz sair a taes deshoras da crasta da sua sé. Desçamos á sala d'armas e vejamos o que elle quer." — E desceram.

Grandes lampadarios ardiam já na sala d'armas do alcacer de Coimbra, pendurados de cadeias de ferro chumbadas nos fechos dos arcos de volta de ferradura, que sustentavam os tectos de grossa cantaria. Pelos feixes de columnas delgadas, entre si separadas, mas ligadas nos fustes por uma base commum, pendiam corpos de armas, que reverberavam a luz das lampadas, e pareciam cavalleiros armados, que em silencio guardavam aquelle amplo aposento. Alguns homens de mesnada faziam retumbar as abobadas, passeando de um para outro lado.

Uma portinha, que ficava em um angulo da quadra, abriu-se, e d'ella saíram o principe e Lourenço Viegas, que desciam da torre: quasi ao mesmo tempo assomou no grande portal de entrada o vulto veneravel e solemne do bispo D. Bernardo.

"Guarde-vos Deus, bispo de Coimbra! Que mui urgente negocio vos traz aqui esta noite? — disse o principe a D. Bernardo.

"Más novas, senhor. Trazem-me aqui a mim letras do papa, que ora recebi."

"E que quer de vós o papa?"

"Que de sua parte vos ordene solteis vossa mãe..."

"Nem pelo papa, nem por ninguem o farei."

"E manda-me que vos declare excommungado, se não quizerdes cumprir seu mandado."

"E vós que intentaes fazer?"

"Obedecer ao successor de S. Pedro."

"Quê? D. Bernardo amaldiçoaria aquelle a quem deve o bago pontifical; aquelle que o alevantou do nada? Vós, bispo de Coimbra, excommungarieis o vosso principe, porque elle não quer pôr a risco a liberdade desta terra remida das oppressões do senhor de Trava, e do jugo do rei de Leão; desta terra que é só minha e dos cavalleiros portuguezes?"

"Tudo vos devo, senhor, — atalhou o bispo — salvo minha alma que pertence a Deus, minha fé que devo a Christo, e a minha obediencia que guardarei ao papa."

"D. Bernardo! D. Bernardo! — disse o principe suffocado em colera — lembrae-vos de que affronta que se me fizesse, nunca ficou sem paga!"

"Quereis, senhor infante, soltar vossa mãe?"

"Não! Mil vezes não!"

"Guardae-vos!"

E o bispo saíu sem dizer mais palavra. Affonso Henriques ficou pensativo por algum tempo; depois falou em voz baixa com Lourenço Viegas o Espadeiro, e encaminhou-se para a sua camara. D'ahi a pouco o alcacer de Coimbra jazia, como o resto da cidade, no mais profundo silencio.

*Conto Popular Português de Autor Desconhecido, compilado por Alexandre Herculano

Submited by

Sábado, Abril 11, 2009 - 20:28

Poesia Consagrada :

Sin votos aún

AlexandreHerculano

Imagen de AlexandreHerculano
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 13 años 26 semanas
Integró: 04/11/2009
Posts:
Points: 282

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of AlexandreHerculano

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia Consagrada/Cuento A Morte do Lidador - Capítulo VI 0 660 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento A Morte do Lidador - Capítulo VII 0 641 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento A Morte do Lidador - Capítulo VIII 0 600 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento A Morte do Lidador - Capítulo IX 0 686 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento O Parocho da Aldeia - Prologo 0 526 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento O Parocho da Aldeia - Capítulo I: A Aldeia e o Presbyterio 0 537 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento O Parocho da Aldeia - Capítulo II: Noitadas Parochiaes 0 498 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento A Dama do Pé-de-Cabra - Trova Primeira 0 758 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento A Dama do Pé-de-Cabra - Trova Segunda 0 591 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento A Dama do Pé-de-Cabra - Trova Terceira 0 583 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento O Bispo Negro - Capítulo I 0 623 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento O Bispo Negro - Capítulo II 0 619 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento O Bispo Negro - Capítulo III 0 572 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento O Bispo Negro - Capítulo IV 0 493 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento O Bispo Negro - Capítulo V 0 519 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Aforismo O Bispo Negro - Capítulo VI 0 728 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento O Bispo Negro - Capítulo VII 0 635 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento O Bispo Negro - Capítulo VIII 0 554 11/19/2010 - 16:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento O Bispo Negro - Nota 0 566 11/19/2010 - 16:52 Portuguese