CONCURSOS:

Edite o seu Livro! A corpos editora edita todos os géneros literários. Clique aqui.
Quer editar o seu livro de Poesia?  Clique aqui.
Procuram-se modelos para as nossas capas! Clique aqui.
Procuram-se atores e atrizes! Clique aqui.

 

A Dama do Pé-de-Cabra - Trova Terceira

Trova Terceira

Capítulo 1

Mensageiros após mensageiros, cartas sobre cartas são vindas de Toledo a Inigo Guerra. El-rei de Leão resgatava todos os dias cavaleiros seus por cavaleiros mouros, mas não tinha wali ou kayid cativo, que pudesse dar em troca por tão nobre senhor como o senhor de Biscaia.

E muitos dos redimidos eram das bandas das serras; e estes, trazendo as mensagens, contavam ainda mais lástimas do velho D. Diogo Lopes, do que, se é possível, essas de que rezavam as cartas.

"A porta do aguião, em Toledo — diziam eles — tem a mourisma um grande campo, todo mui bem apalancado. Aqui fazem grandes festas, guinolas e touros nos dias dos seus perros santos, segundo lá lhos pregam e determinam khatibs e ul-máis.

"Gaiolas de bestas-feras muitas há aí, coisa mui de ver e pasmar: os tigres e leões não as rompem; rompê-las mãos de homens, fora pequice tão somente imaginá-lo.

"Numa destas prisões, quase nu, com adovas de pés e mãos, está o ilustre rico-homem, que já foi capitão de grandes e lustrosas mesnadas.

"Corteses costumam ser mouros com seus cativos fidalgos. Fazem esta perraria a D. Diogo Lopes, porque já são passados três anos, e não há ver seu resgate."

E os peregrinos que vinham do cativeiro e relatavam tais coisas, bem ceados e agasalhados no castelo, iam-se no outro dia com Deus, levando provida a escarcela, e em boa e santa paz.

Quem não ficava em paz era D. migo: "Por que não vais tu à serra"' — dizia-lhe uma voz ao ouvido. — "Por que não ides procurar vossa mãe?" — repetia-lhe o pagem Brearte.

Que lhe havia de fazer? Uma noite inteira levou em claro a pensar nisso. Pela manhã, a Deus e à sorte, ei-lo que, enfim, se resolve a tentar a aventura, bem que de seu mau grado.

Benzeu-se vinte vezes, para não ter lá de persignar-se. Rezou o Pater, a Ave e o Credo; porque não sabia se em breve essas orações seriam coisa de recordar-se.

E, seguido de um mastim seu predilecto, a pé e com uma ascuma na mão, foi-se através das brenhas, por uma vereda que dizia para os píncaros tristes e ermos onde era tradição que a linda dama tinha aparecido a seu pai.

Capítulo 2

Trinam os rouxinóis nos balseiros; murmuram ao longe as águas dos regatos; ramalha a folhagem brandamente com a viração da manhã: vai uma linda madrugada.

E Inigo Guerra galga, manso e manso, os carris empinados, trepa de barrocal em barrocal e, apesar de seu muito esforço, sente bater-lhe o coração com ânsia desacostumada.

Onde as matas faziam alguma clareira ou as penhas alguma chapada, D. Inigo parava um pouco, tomando fôlego e pondo-se a escutar.

Muito havia que andava embrenhado: o sol ia alto, e o dia calmoso: ao canto do rouxinol seguira o rechinar da cigarra.

E encontrou uma fonte que rebentava de rochedo negro e, saltando de aresta em aresta, vinha cair em almácega tosca, onde o sol parecia dançar no bulir das ondazinhas que fazia o despenho da cascata.

D. Inigo assentou-se à sombra da rocha e, tirando a sua monteira, matou a sede que trazia, e pôs-se a lavar o rosto e a cabeça do suor e pó, que não lhe faltava.

O mastim, depois de beber, deitou-se ao pé dele e, com a língua pendente, arquejava de cansado.

De repente, o cão pôs-se em pé e arremeteu, com um grande ladro.

D. Inigo volveu os olhos: um jumento silvestre pascia na orla da clareira junto de um frondoso carvalho.

"Tárik! — gritou o mancebo. — Tárik!" — Mas Tárik ia avante e não escutava.

"Ai, deixa-o correr, meu filho! Não é para o teu mastim levar a melhor desse onagro."

Isto dizia uma voz que, lá em cima no alto da penha, começou de soar.

Olhou: linda mulher estava aí assentada e, com gesto amoroso e sorriso d'anjo, para ele se inclinava.

"Minha mãe! minha mãe! — bradou migo Guerra, alevantando-se: e lá consigo dizia: — Vade retro! Santo Hermenegildo me valha!"

E como molhara a cabeça, sentiu que os cabelos se lhe iam alçando de arrepiados.

"Filho, na boca palavras doces; no coração palavras danadas. Mas que importa, se és meu filho? Dize o que queres de mim, que será tudo feito a teu talento e vontade."

O moço cavaleiro nem acertava a falar com medo. Já a este tempo Tárik gemia uivando debaixo dos pés do onagro.

"Cativo está de mouros há anos meu pai D. Diogo Lopes — disse por fim titubeando. — Quisera me ensinásseis, senhora, o modo como hei-de salvá-lo."

"Seu mal, tão bem como tu, eu sei. Se pudesse, ter-lhe-ia acorrido, sem que viesses requerê-lo: mas o velho tirano do céu quer que ele pene tantos anos quantos viveu com a... com a que sandeus chamam Dama Pé-de-Cabra."

"Não bíasfemeis contra Deus, minha mãe, que é enorme culpa" — interrompeu o mancebo, cada vez mais horrorizado.

"Culpa?! Não há para mim inocência nem culpa" — replicou a dama, rindo às gargalhadas.

Era um rir de dormente, triste e medonho. Se o diabo ri, como aquele deve ser o rir do diabo.

O cavaleiro não pôde dizer mais palavra. "Inigo! — prosseguiu ela — falta um ano para cumprir-se o cativeiro do nobre senhor de Biscaia. Um ano passa depressa: mais depressa eu to farei passar. Vês tu aquele valente onagro? Quando uma noite, acordando, o achares ao pé de ti, manso como cordeiro, cavalga nele sem susto, que te levará a Toledo, onde livrarás teu pai. — E bradando acrescentou: — Estás por isto, Pardalo?"

O onagro fitou as orelhas e, em sinal de aprovação, começou a azurrar; começou por onde, às vezes, academias acabam <1>.

Depois, a dama pôs-se a cantar uma cantiga de bruxas, acompanhando-se de um saltério, de que tirava mui estranhas toadas:

Pelo cabo da vassoura,
Pela corda da polé,
Pela víbora que vê,
Pela Sura, e pela Toura;

Pela vara do condão,
Pelo pano da peneira,
Pela velha feiticeira,
Do finado pela mão;

Pelo bode, rei da festa,
Pelo sapo inteiriçado,
Pelo infante dessangrado
Que a bruxa chupou à sesta;

Pelo crânio alvo e lustroso
Em que sangue se libou,
E do irmão que irmão matou,
Pelo arranco doloroso;

Pelo nome de mistério
Que em palavras se não diz,
Vinde lã precitos vis;
Vinde ouvir o meu saltério!

E dançai-me, aqui na terra,
Uma dança doudejante,
Que entonteça dum instante O
meu filho Inigo Guerra.

Que ele durma um ano inteiro,
Como em sono de uma hora,
Junto à fonte que ali chora,
Sobre a relva deste outeiro.

Enquanto a dama cantava estas cantigas, o mancebo sentia um quebrantamento nos membros que crescia cada vez mais e que o obrigou a assentar-se.

E logo, logo, ouviu-se um ruído abafado, como de trovões e de ventanias engolfando-se em covoadas: depois o céu começou de toldar-se, e cada vez era mais cris, até que, enfim, apenas uma luz de crepúsculo o alumiava.

E a mansa almácega refervia, e os penedos rachavam, e as árvores torciam-se, e os ares sibilavam.

E das bolhas da água da fonte, e das fendas dos rochedos, e d'entre as ramas dos robles, e da vastidão do ar via-se descer, subir, romper, saltar... o quê? — Coisa muito espantável.

Eram mil e mil braços sem corpos, negros como carvão, tendo nos cotos uma asa, e na mão cada um uma espécie de facho.

Como a palha que o tufão alevanta na eira, aquela multidão de candeias cruzava-se, revolvia-se, unia-se, separava-se, remoinhava, mas sempre com certa cadência, como que dançando a compasso.

A D. Inigo andava a cabeça à roda: as luzes pareciam-lhe azuis, verdes e vermelhas: mas corria-lhe pelos membros uma languidez tão suave, que não teve ânimo para fazer o sinal da cruz e afugentar aquele bando de Satanases.

E sentia-se esvaecer e, pouco a pouco, adormecia e, dali a pouco, roncava.

Entretanto, no castelo tinham dado pela sua falta. Esperaram-no até à noite; esperaram-no uma semana, um mês, um ano, e não o viam voltar. O pobre Brearte correu por muito tempo a serra; mas o sítio onde o cavaleiro jazia, isso é que não havia lá chegar.

Capítulo 3

Inigo acordou alta noite: tinha dormido algumas horas: ao menos, ele assim o cria. Olhou para o céu, viu estrelas: apalpou ao redor, achou terra: escutou, ouviu ramalhar as árvores.

Pouco a pouco é que se foi recordando do que passara com sua mal-aventurada mãe; porque, a princípio, não se lembrava de nada.

Pareceu-lhe então ouvir respirar ali perto: afirmou a vista: era o onagro Pardalo.

"Já agora meio enfeitiçado estou eu pensou ele: — corramos o resto da aventura, a ver se posso salvar meu pai."

E pondo-se em pé, encaminhou-se para o valente animal, que já estava enfreado e selado: cujos eram os arreios, isso sabia-o o diabo.

Hesitou, todavia, um momento: tinha seus escrúpulos — a boas horas vinham eles — de cavalgar naquele corredor infernal.

Então ouviu nos ares uma voz vibrada, que cantava muito entoado. Era a voz da terrível Dama Pé-de-Cabra:

Cavalga, meu cavaleiro,
No alentado corredor;
Vai salvar o bom senhor;
Vai quebrar seu cativeiro.

Pardalo, não comerás
Nem cevada nem aveia,
Não terás jantar nem ceia,
Rijo e leve voltarás.

Nem açoite, nem espora
Requer ele, oh cavaleiro!
Corre, corre bem ligeiro,
Noite e dia, a toda a hora.

Freio ou sela não lhe tires,
Não lhe fales, não o ferres,
Na carreira não te aterres,
Para trás nunca te vires.

Upa! firme! — avante, avante!
Breve, breve, a bom correr!
Um minuto não perder,
Bem que o galo ainda não cante.

"Vá!" — gritou Inigo Guerra, com uma espécie de frenesi que nele produzira aquele cantar estranho; e de um pulo cavalgou no quedo onagro.

Mas apenas se firmou na sela, pst! — ei-lo que parte!

Capítulo 4

Posto que em paz com os cristãos, os mouros de Toledo têm pelas torres, cubelos e adarves seus atalaias e vigias, e nos montes que dizem para a fronteira de Leão seus fachos e almenaras.

Mas se o rei leonês soubesse como descuidosa jaz Toledo; como, ao anoitecer, se deixam dormir vigias, se deixam de acender fachos, quebraria seus juramentos, e faria contra aquelas partes um repentino fossado.

Salvo ter de ir depois ao seu confessor dizer confiteor Deo, e peceavi; porque o quebrar o juramento, ainda que seja a cães descridos, dizem ser feio pecado.

Era a hora do lusco-fusco: ao sol posto os de Toledo, mirando para a banda do Norte, viram, lá muito ao longe, vir correndo uma nuvem negra, ondeando e fazendo voltas no céu, como a estrada as fazia na terra por entre os montes: dir-se-ia que vinha embriagada.

Era primeiro um pontinho; depois crescera e crescera: quando anoiteceu, estava já perto e cobria um grande espaço.

O almuadem, subindo à torre da mesquita, chamava os crentes de Mafamede para a oração da tarde.

Mas com a sua voz esganiçada misturou-se o estrondear dos trovões: era como um tiple e um baixo.

E passou um tufão de vento, que, embrenhando-se e remoinhando nas barbas longas e brancas do almuadem, lhe fustigou com elas a cara.

Começou então a cair uma corda de chuva, que nem moços nem velhos se lembravam de ter visto coisa semelhante em nenhuma parte.

Aqui veríeis os esculcas a aninharem-se nas guaritas das torres; os roldas e sobre-roldas a fugirem pelos adarves; os facheiros a sumirem-se debaixo das almenaras; os hajibes a acolherem-se às mesquitas molhados até os ossos; as velhas, que tinham saído ao vozear do almuadem, levadas pelas torrentes das ruas tortuosas e estreitas, bradando por Mafoma e por Allah. E a água caindo cada vez mais!

Dois únicos movimentos fazem então os moradores de Toledo: uns fogem, outros agacham-se. E a água caindo cada vez mais!

O pavor quebra todos os ânimos: os cacizes esconjuram a procela: os faquires penitentes gritam que se acaba o mundo, e que lhes deixe os seus haveres aquele que quiser salvar-se. E a água caindo cada vez mais!

A salvação de Toledo foi não se terem fechado suas portas: se assim não sucedesse, dentro do recinto dos muros morria toda a mourisma afogada.

Na prisão estava D. Diogo encostado às grades de ferro. O pobre velho entretinha-se a ouvir aquele medonho chover; porque a noite era comprida, e ele não tinha que fazer mais nada.

Mas, como o terreiro ante a sua gaiola de feras era rodeado de muros, a chuva não podia escoar-se toda, e vinha crescendo de modo que já elo sentia os pés molhados.

E também começou a ter medo de morrer, apesar da sua miséria. Bem sabia D. Diogo que a morte é a maior delas todas; que não era o senhor de Biscaia ateu, filósofo, nem parvo.

Mas lá divisa um vulto alvacento que salvou por cima do palanque, e sente ao mesmo tempo no meio do terreiro — plash! —

E ouviu uma voz que dizia — "Nobre senhor D. Diogo, onde é que vós vos achais?" —

—"Que vejo e ouço ! — exclamou o velho. — Um trajo que não alveja não é trajo d'ismaelita; uma voz que não fala algaravia não é d'infiel; um salto de tal altura não é de cavaleiro do mundo. Por vossa fé dizei-me, sois anjo ou sois Santiago."

"Meu pai, meu pai! acudiu o cavaleiro — já não conheceis a fala de Inigo? Sou eu, que venho salvar-vos."

E D. migo descavalgou e, travando das grossas reixas, tentava aluí-las: a água dava-lhe já pelos artelhos, e ele não fazia nada.

Cheio de aflição, o mancebo quis invocar o nome de Jesus; mas lembrou-se de como ali viera, e o bento nome expirou-lhe nos lábios.

Todavia, Pardalo pareceu adivinhar o seu íntimo pensamento; porque soltou um gemido agudo e pronto, como se lhe houvessem tocado com um ferro em brasa.

E, empurrando com a cabeça D. Inigo, voltou a anca para a grade.

Pau! — foi o som que se ouviu. Com um só couce a reixa estava no chão, e as ombreiras de pedra tinham voado em mil rachas. Quer mo creiam, quer não, di-lo a história: eu com isto não perco nem ganho.

D. Diogo, esse ficou-o crendo: porque uma lasca de pedra bateu-lhe nos dois últimos dentes que tinha e meteu-lhos pela goela abaixo. Por isso, ele, com a dor, não podia dizer palavra.

Seu filho fê-lo cavalgar ante si, e, cavalgando após ele, bradou: — "Meu pai, estais salvo!"

E Pardalo de um pulo galgou de novo o palanque. Pois tinha bons quinze palmos!

Pela manhã não havia sinal de chuva; o ar estava limpo e sereno, e quando os mouros foram ver o que sucedera a D. Diogo Lopes, não lhe acharam sequer o rasto.

Capítulo 5

D. Inigo e seu pai, o velho senhor de Biscala, passam as portas de Toledo com a rapidez da frecha: num abrir e fechar d'olhos ficam-lhes para trás muros, torres, barbacãs e atalaias. A bátega vai diminuindo: rasgam-se as nuvens, e vêem-se já reluzir algumas estrelas, que parecem outros tantos olhos com que o céu espreita através do negrume o que se passa cá em baixo.

A estrada, pelas descidas e subidas dos recostos, converteu-se em leito de torrente, nos plainos converteu-se em lago.

Mas, quer pelos lagos, quer pelas torrentes, o valente onagro rompia avante, bufando como um danado.

Não subiram bem um monte, já descem pelo outro recosto abaixo; ainda bem não chegaram a uma clareira, já sentem em profunda floresta gotejarem-lhes em cima os ramos agitados das árvores.

Pouco mais é de meia-noite, e os topos nevados do Vindio recortam o chão estrelado do céu já limpo, semelhantes aos dentes de uma serra gigante capaz de dividir cérceo o hemisfério austral do hemisfério boreal.

E Pardalo investe, sempre em galope desfeito, com as montanhas disformes, e desce aos vales temerosos, e, cada vez mais ligeiro, como o seu nome o indica, parece menos quadrúpede que pássaro.

Mas que ruído é esse que sobreleva o do vento? Que é isso que, lá ao longe, ora alveja, ora reluz nas trevas, como uma alcateia de lobos envoltos em sudários brancos, com os olhos só descobertos, e despregando em fio pelo fundo do vale abaixo?

É um rio caudal e furioso, com o seu manto de escuma, e com as escamas angulosas de seu dorso eriçado, onde batem e chispam os raios das estrelas em mil reflexos quebrados.

Negreja sobre o rio uma ponte, ao meio desta um vulto esguio. — "Será um marco, uma estátua? — pensaram os cavaleiros. Pinheiro não pode ser; não consta que em pontes nasçam."

Pardalo ria-se de rios; pontes, fazia tanto cabedal delas como de um retraço de palha. Todavia, bem que pudesse de um pulo saltar vinte ribeiras como aquela, foi-se direito à ponte; porque não era animal que fizesse áfricas escusadas.

Semelhante a relâmpago, se arrojou o onagro àquele passo estreito... Mas, tá.... Ei-lo que de repente pára.

E tremia como varas verdes, e arquejava com violência: os dois cavaleiros olharam.

O vulto esguio era um cruzeiro de pedra alevantado a meia ponte: por isso Pardalo emperrava.

Então, dentre uns altos choupos, que da margem dalém se meneavam, um pouco mais abaixo daquele sítio, ouviu-se uma voz fadigosa e trêmula que cantava:

Para trás, para trás, a galgar.
Já!
De redor, de redor, vem passar
Cá!
Que não há nada aqui que te empeça.
Bus,
Nem palavra, vós dois! Fugi dessa
Cruz!

"Santo Nome de Cristo!" — exclamou D. Diogo, benzendo-se ao escutar aquela voz que bem conhecia, mas que, depois de tantos anos, não esperava ali ouvir, porque seu filho não lhe dissera que meio achara para o salvar.

Apenas o grito do velho soou, assim ele como D. Inigo foram bater contra o poial do cruzeiro, onde ficaram de bruços, envoltos em lodo. O onagro, ao sacudi-los de si, soltara um rugido de besta-fera. Sentiram então um cheiro intolerável de enxofre e de carvão de pedra inglês, que logo se percebia ser coisa de Satanás.

E ouviram como um trovão subterrâneo; e a ponte balouçava, como se as entranhas da terra se despedaçassem.

Apesar do seu grande terror, e de chamar pela Virgem Santíssima, D. Inigo abriu um cantinho do olho para ver o que se passava.

Nós os homens costumamos dizer que as mulheres são curiosas. Nós é que o somos. Mentimos como uns desalmados.

Que veria o cavaleiro? Um fojo aberto, bem próximo deles sobre a ponte, e que depois rompia pela água.

E depois pelo leito do rio; e depois pela terra dentro, dentro; e depois pelo tecto do inferno, que outra coisa. não podia ser um fogo muito vermelho que reverberava daquela profundidade.

Tanto era assim, que ainda lá viu passar de relance um demônio com um desconforme espeto nas mãos em que levava um judeu empalado.

E Pardalo descia remoinhando por esse boqueirão, como uma pena caindo em dia sereno do alto de uma torre abaixo.

Aquela vista fez perder os sentidos a D. Inigo, que, indo também a chamar por Jesus, achou que não podia proferir este nome sagrado.

De terror, tanto o velho como o moço ficaram ali em desmaio.

Quando tornaram a si, com o romper do sol claro, conheceram o sítio em que se achavam. Era a ponte próxima à aldeia de Nustúrio, no alto da qual campeava o castelo construído por D. From, o saxónio, avoengo de D. Diogo Lopes e primeiro senhor de Biscaia.

Nenhum vestígio restava do que ali se passara; os dois, moídos e cheios de lodo e pisaduras, foram-se arrastando como puderam até encontrar alguns vilãos, a quem se deram a conhecer, e que os levaram a casa.

Festas que em Nustúrio se fizeram por sua vinda, coisa é que vos não direi; porque não tarda a hora de cear, rezar e deitar.

Capítulo 6

D. Diogo pouco tempo viveu: todos os dias ouvia missa; todas as semanas se confessava. D. Inigo, porém, nunca mais entrou na igreja, nunca mais rezou, e não fazia senão ir à serra caçar.

Quando tinha de partir para as guerras de Leão, viam-no subir à montanha armado de todas as peças e voltar de lá montado num agigantado onagro.

E o seu nome retumbou em toda a Espanha; porque não houve batalha em que entrasse que se perdesse, e nunca em nenhum recontro foi ferido nem derribado.

Diziam à boca pequena em Nustúrio que o ilustre barão tinha pacto com Belzebu. Olhem que era grande milagre!

Meio precito era ele por sua mãe; não tinha que vender senão a outra metade da alma.

Por oitenta por cento de lucro no recibo de um egresso, a dá aí inteiro ao demo qualquer onzeneiro, e crê ter feito uma limpa veniaga.

Fosse como fosse, Inigo Guerra morreu velho: o que a história não conta é o que então se passou no castelo. Como não quero improvisar mentiras, por isso não direi mais nada.

Mas a misericórdia de Deus é grande. A cautela rezem por ele um Pater e um Ave. Se não lhe aproveitar, seja por mim. Amém.

*Autor Desconhecido, compilado por Alexandre Herculano

Submited by

sábado, abril 11, 2009 - 19:24

Poesia Consagrada :

No votes yet

AlexandreHerculano

imagem de AlexandreHerculano
Offline
Título: Membro
Última vez online: há 13 anos 19 semanas
Membro desde: 04/11/2009
Conteúdos:
Pontos: 282

Add comment

Se logue para poder enviar comentários

other contents of AlexandreHerculano

Tópico Título Respostas Views Last Postícone de ordenação Língua
Fotos/ - Alexandre Herculano 0 998 11/23/2010 - 23:37 Português
Poesia Consagrada/Geral A Tempestade 0 840 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Geral O Soldado 0 961 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Geral D. Pedro 0 631 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Geral A Vitória e a Piedade 0 951 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Geral A Cruz Mutilada 0 1.148 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Geral A Voz 0 612 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Geral A Arrábida 0 892 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Geral Mocidade e Morte 0 626 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Geral Deus 0 636 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - A Noite do Amir 0 1.198 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - Ao Luar 0 747 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - O Castro Romano 0 557 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - A Aurora da Redenção 0 897 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - Impossível! 0 806 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - Conclusão 0 816 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Geral A Semana Santa 0 707 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - Recordações 0 845 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - A Meditação 0 599 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - Saudade 0 760 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - A Visão 0 673 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - O Desembarque 0 809 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - Junto de Crissus 0 1.024 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - Traição 0 685 11/19/2010 - 15:52 Português
Poesia Consagrada/Conto Eurico, o Presbítero - Dies Irae 0 724 11/19/2010 - 15:52 Português