FASTOS DAS METAMORPHOSES I
DE
P. OVIDIO NASÃO
TRECHOS ESCOLHIDOS, POSTOS EM VERSO PORTUGUEZ
TRÁDUCÇÃO DO LIVRO I
Desde o principio até á nova formação de todos os animaes
depois do diluvio
Entre ferros cantei, desfeito em pranto
Valha a desculpa, se não vale o canto.
(O TTRADUCTOR).
ARGUMENTO
O Cahos se reparte em quatro elementos. Zonas, ventos, creação dos
brutos, e do homem. Seguem-se as quatro edades do mundo. Nascem
homens do sangue dos gigantes. Lycaon é transfonnado em
lobo. O diluvio converte tudo em agua. As pedras se mudam em
gente. Os brutos renascem da terra.
Antes do mar, da terra, e céo qne os cobre
Não tinha mais que um rosto a Natureza:
Este era o Cáhos, massa indigesta, rude,
E consistente só n'um peso inerte.
Das cousas não bem juntas as discordes,
Priscas sementes em montão jaziam ;
O sol não dava claridade ao mundo,
Nem crescendo outra vez se reparavam
As pontas de marfim da nova lua.
Não pendias, oh terra, d'entre os ares,
Na gravidade tua equilibrada,
Nem pelas grandes margens Amphitrite
Os espumosos braços dilatava.
Ar, e pélago, e terra estavam mixtos:
As aguas eram pois innavegaveis.
Os ares negros, movediça a terra.
Fórma nenhuma em nenhum corpo havia,
E n'elles uma cousa a outra obstava,
Que em cada qual dos embriões enormes
Pugnavam frio, e quente, humido, e secco,
Molle, e duro, o que é leve, e o que é pezado.
Um Deus, outra mais alta Natureza
A' contínua discordia em fim põe termo:
A terra extráe dos céos, o mar da terra,
E ao ar fluido, e raro abstráe o espesso.
Depois que a mão divina arranca tudo
Do enredado montão, e o desenvolve,
Em logares diversos, que lhe assigna,
Liga com mutua paz os corpos todos.
Subito ao cume do convexo espaço
O fogo se remonta ardente, e leve;
A elle no logar, na ligeireza
Proximo fica o ar; mais densa que ambos
A terra puxa os elementos vastos,
Da propria gravidade é comprimida.
O salitroso humor circumfluente
A possue, a rodêa, a lambe, e aperta.
Assim depois que o Deus (qualquer que fosse)
O gran corpo dispôz, quiz dividil-o,
E membros lhe ordenou. Para que a terra
Não fosse desigual em parte alguma,
Por todas a compôz na fórma de orbe.
Ao mar então mandou que se esparzisse,
Que ao sopro inchasse dos forçosos ventos,
E orgulhoso abrangesse as louras praias;
A' mole orbicular deu fontes, lagos,
Rios cingindo com obliquas margens,
Os quaes, em parte absortos pelas terras
Varias, que vão regando, ao mar em parte
Chegam, e recebidos lá no espaço
De aguas mais livres, e extensão mais ampla,
Em vez das margens assaltêam praias.
O universal Factor tambem dissera:
«Descei, oh valles, estendei-vos, campos,
Surgi, montanhas, enramae-vos, selvas!»
Como o céo repartido á dextra parte
Tem duas zonas, á sinistra duas,
E uma no centro mais fogosa, que ellas,
Assim do Deus o próvido cuidado
Pôz eguaes divisões no térreo globo;
Elle é composto de outras tantas plagas;
Aquella que das mais está no meio
Em calores inhospitos se abraza;
Alta neve enregela, e cobre duas;
Outras duas, porém, que entre ellas ambas
O Numen situou, são moderadas,
Mixto o frio, e calor. Fica eminente
A estas o ar, que assim como é mais leve
O pezo d'agua que da terra o pezo,
Tanto mais pezo coube ao ar que ao fogo.
Deus ordenou que as nevoas, e que as nuvens
Errassem no inconstante, aéreo seio;
Que os ventos o habitassem, productores
Dos penetrantes frios, que estremecem,
E os raios, os trovões, que o mundo aterram:
Mas o supremo auctor não deu nos ares
Arbitrario poder aos duros ventos:
Bem que rebentem de encontrados climas,
Resistir-se-lhe póde á furia apenas,
Vedar que em turbilhões lacere o mundo :
Tanta é entre os irmãos a desavança !
Euro foi sibilar ao céo da aurora,
Aos reinos Nabathêos, á Persia, aos cumes
Que o raio da manhã primeiro alcança.
O Véspero, essas plagas, que se amornam
Com Phebo occidental, estão visinhas
Ao Zéphyro amoroso; o fero Bóreas
Da Scythia fera, e dos Triões se apossa ;
As regiões oppostas humedece
Austro chuvoso com assíduas nuvens.
O Numen sobrepoz aos elementos
O liquido, e sem pezo ether brilhante,
Que das terrenas fézes nada envolve.
Logo que tudo com limites certos
Foi pela eterna dextra signalado,
As estrellas, que oppressas, que abafadas
Houve em si longamente a massa escura,
A arder por todo o céo principiaram:
E porque não ficasse do universo
Alguma região deshabitada.
Astros, e deuses tem o ethereo assento,
O mar aos peixes nitidos é dado,
Aves ao ar, quadrupedes á terra.
A estes animaes faltava um ente
Dotado de mais alta intelligencia,
Ente, que a todos legislar podesse:
Eis o homem nasce, e — ou tu, suprema Origem
De melhor Natureza, e quanto ha n'ella,
Ou tu, pasmoso artifice, o formaste
Pura extracção de divinal semente,
Ou a terra ainda nova, inda de fresco
Separada dos céos, lhe tinha o germe.
Com aguas fluviaes embrandecia,
D'ella o filho de Jápeto affeiçôa,
Organisa porções, e as assimelha
Aos entes immortaes, que regem tudo.
As outras creaturas debruçadas
Olhando a terra estão; porém ao homem
O Factor conferiu sublime rosto,
Erguido, para o céo lhe deu que olhasse.
A terra, pois, tão rude, e informe d'antes,
Presentou finalmente assim mudada,
As humanas, incognitas figuras.
Foi a primeira edade a edade de ouro:
Sem nenhum vingador, sem lei nenhuma
Culto á fé, e á justiça então se dava,
Ignoravam-se então castigo e medo;
Ameaços terriveis se não liam
No bronze aberto; supplice caterva
A' face do juiz não palpitava:
Todos viviam sem juiz, sem damno.
Inda nos patrios montes decepado
Ás ondas não baixava o pinho ingente
Para depois ir vêr um mundo extranho:
De mais clima que o seu ninguem sabia.
Fossos ainda não cingiam muros,
As tubas, os clarins não resoavam,
Nem armas, nem exercitos havia:
Sem elles os mortaes de paz segura
Em ocios innocentes se gosavam.
O ferro sulcador não a rompia,
E dava tudo a voluntaria terra.
Contente do que brota sem cultura
Colhia a gente o montanhez morango,
Crespos medronhos, e as cerejas bravas,
Ás duras silvas as'amoras presas,
E as lisas producções de tenue casca,
Que da arvore de Jupiter cabiam.
Eram todas as quadras primavera.
Mansos Favonios com subtil bafejo,
Com tépidos suspiros animavam
As flôres, que sem germe então nasciam.
Viam-se enlourecer, vingar as messes
Nos campos nem roçados de adubio,
Em rios ir correndo o leito, o nectar;
E da verde azinheira estar cahindo
O flavo mel em pegajosas gotas.
Depois que foi Saturno exterminado
Ao Tártaro, e ficou a Jove o mundo,
Veiu outra edade, se inferior á de ouro,
Superior á de cobre, a edade argentea.
Jove confráe a primavera antiga,
Verões, invernos, desiguaes outonos,
Curta, e branda estação, que anime as flôres.
O anno repartem, variando os tempos.
O ar então começou a esconder-se,
E ao som dos ventos a enrijar-se a neve;
Os humanos então principiaram
A demandar guaridas, a ter lares:
Grutas, choupanas os seus lares foram.
Pela primeira vez o grão de Céres
Se esparziu, se escondeu nos longos sulcos,
E opprimidos do jugo os bois gemeram.
Ás duas succedeste, ahénea prole,
De genio mais feroz, mais prompto á guerra,
Mas não impio.— Eis a ultima, a de ferro.
Todo o horror, todo o mal rebentam d'ella.
Subito fogem fé, pudor, verdade,
Occupam-lhe o logar mentira, astucia,
A insultuosa força, a vil perfidia,
Da posse, e do poder o amor infando.
Velas o navegante aos ventos sólta,
Aos ventos ainda bem não conhecidos;
Longamente nas serras arraigado,
O lenho já commette ignotas vagas;
A terra, que atéli de todos fôra,
Como os ares, e o sol, por cauto dono
Já se abalisa com limite extenso.
Não se lhe pedem só devidos fructos,
Uteis searas, vae-se-lhe ás entranhas,
Cavam-lbe o que sumiu na estygia sombra,
Cavam riquezas, incentivo a males.
Já se desencantára o ferro infenso,
E o ouro inda peior: eis surge a Guerra,
Que, de ambos ajudada, espalha horrores,
Vibrando as armas na sanguinea dextra.
Fervem os roubos: o hospede seguro
Do hospede não está, do genro o sogro;
A concordia entre irmãos tambem é rara.
Tentam morte reciproca os esposos,
As madrastas crueis dispõem venenos,
Conta os dias paternos filho avaro,
Jaz vencida a piedade, e sáe do mundo,
Do mundo ensanguentado a pura Astréa,
Depois que os outros deuses o abandonam.
Para não ser mais livre o céo que a terra,
E' fama que gigantes o assaltaram,
A etherea monarchia ambicionando,
Pondo até ás estrellas monte em monte.
O padre omnipotente, o summo Jove
N'isto com raios esbroando o Olympo,
Partindo o Pélio sotoposto ao Ossa,
Sobre o tropel sacrilego os derruba.
Esmagados c'o pezo os feros corpos,
Diz-se que a terra, a mãe, no muito sangue
Dos filhos ensopada o fez vivente;
Homens d'elle creou, porque a memoria
Da progenie feroz permanecesse.
A nova geração tambem foi dura,
Dos numes foi tambem desprezadora,
Amiga da violencia, e da matança,
Denotando que o sangue o ser lhe dera.
Saturnio viu dos céos estas maldades,
Gemeu, e recordando um impio caso,
Inda não divulgado, inda recente,
O atroz festim da Lycaónia meza,
Iras concebe o deus dignas de Jove,
E o conselho immortal convoca á pressa,
Que á pressa congregado acode ao mando.
Ha nos céos um caminho alto, e patente,
(A nímia candidez o faz notavel)
Lácteo se chama; vão por elle os numes,
Os graves cortezãos do grau Tonante
A' morada real. D'um lado e d'outro
Dos deuses principaes os lares brilham,
Abertas as fulgentes, grandes portas.
Deuses menores outro espaço habitam,
E os potentes celícolas supremos
A' frente os seus Penates collocaram.
Este, a caber na voz audacia tanta,
O palacio dos céos appellidára.
Em marmoreo salão juntos os deuses,
Todos depois de Jupiter se assentam,
Que em logar sobranceiro, e sobreposta
A fulminante mão no eburneo sceptro,
Por tres, e quatro vezes meneando
Espantosas melenas, com que abala
A terra, o mar, e os céos, taes vozes sólta
Com fera indignação: «Maior cuidado
O mundo me não deu n'aquella edade
Em que a turba de anguipedes gigantes
Queria o céo romper com braços cento;
Que ainda que era multidão terrivel,
Hoste feroz, com tudo d'um só corpo,
E de uma origem só pendia a guerra.
Eis-rne n'um tempo agora em que é forçoso
Fazer tremenda, universal justiça,
Perder a humana estirpe em tudo, em tudo
Quanto abraça Nerêo circumsonante.
Subterraneas, tristissimas correntes,
Correntes que lambeis o estygio bosque,
Até juro por vós que ao mal infando
Mil remedios em vão tentei primeiro !
Mas incuravel chaga exige o ferro,
Cortada cumpre ser porque não lavre,
Porque não fique o são tambem corrupto.
Ha, porém, semideuses entre os homens,
Campestres numes ha, Faunos, e Nymphas,
Satyros, e os monticolas Sylvanos:
Todos são attendiveis, todos nossos.
Se ainda honral-os no céo não nos approuve,
Nas dadas terras é dever que habitem.
Mas podereis pensar que estão seguros,
Oh deuses, quando a mim, que empunho o raio
Á mim, que vos dou leis, tramou ciladas
Lycaon, o afamado em tyrannia?»
N'esta interrogação freme o congresso:
Querem todos o réo da enorme audacia,
Em vinganças fervendo o pedem todos.
Assim quando ímpia mão queria extincto
De Roma o nome no Cesáreo sangue,
Pelo terror da subita mina
Atonita ficou a especie humana,
Todo o mundo tremeu de horrorisado.
Augusto, então dos teus não menos grata
A ternura te foi, que a Jove aquella.
Depois que ao gran susurro impoz silencio
Co'a mão, e a voz, emmudeceram todos.
Suffocado o furor no acatamento,
O monarcha dos céos assim prosegue:
«Cuidado vos não dê a acção nefanda,
O sacrilego auctor já foi punido:
Direi primeiro o crime, e logo a pena.
Do corrompido seculo as infamias
Subiram-me á noticia: desejoso
De achar falso o que ouvi, baixei do Olympo,
E a terra discorri com face humana.
Relevára occupar moroso espaço
Na feia narração do que hei sabido,
De horrores, que encontrei por toda a parte:
Era a verdade em fim maior que a fama.
Passado havendo o Ménalo abundoso
De horrorosos covís, que alojam feras,
O Cylenio de rochas carregado,
E o frigido Lycêo, que os pinhos c'roam,
Do Arcadico tyranno os lares busco,
Entro os paços inhospitos já quando
Negrejava o crepúsculo da noute.
Dou mostras de que um deus era chegado,
E votos pios me dirige o povo.
Das preces Lycaon se ri primeiro,
Depois diz: — Saberei com prova inteira
Se é deus, ou se é mortal.— Dispõe matar-me
Quando os olhos tiver de somno oppressos:
Da verdade lhe agrada esta exp'riencia;
E inda não pago d'isto, a espada infame
Vibra contra a cerviz de um desgraçado
Que dos Molossos em refens houvera.
Aos semivivos, palpitantes membros
Parte amollecem as ferventes aguas,
As sotopostas brazas torram parte.
Já nas mezas se impõe, mas de repente
Co'a dextra vingadora o raio agito,
Sóbre o cruel senhor derrubo os tectos,
Os tectos, e os Penates, dignos d'elle.
Para o silencio agreste, agrestes sombras
Foge rapidamente, espavorido,
E querendo fallar, uiva o perverso:
Colhem do coração braveza os dentes,
C 'o matador costume os volve aos gados:
Inda sangue lhe apraz, com sangue folga.
A veste em pello, as mãos em pés se mudam,
E' lobo, e do que foi signaes conserva:
As mesmas cãs, a mesma catadura,
E os mesmos olhos a luzir de raiva.
Já uma habitação caíu por terra,
Mas digna de caír não é só uma.
Erinnys senhoreia o mundo todo:
Parece que os humanos protestaram
Não ter mais exercicio que o do crime !
A pena que merecem todos sintam;
Está dada a sentença.» E fica mudo.
O decreto de Jove alguns approvam,
E á ira horrenda estimulos aggregam;
Outros lhe prestam simplesmente assenso.
Dóe a todos, porém, o immenso estrago,
Da triste humanidade o fim lhes custa:
Perguntam qual será da terra a face,
Qual fórma a sua, dos mortaes vazia ?
Quem ha de ás aras ministrar o incenso?
Será talvez o mundo entregue ás feras ?
O que dos homens foi será dos brutos ?
Dest'arte os deuses o vindouro inquirem.
«Não temais (lhe responde o rei superno)
Esse cuidado é meu, dispuz já tudo:.»
E melhor geração do que a primeira
Com portentosa origem lhes promette.
Ia já desparzir por toda a terra
O numen vingador milhões de raios,
Eis teme que a voraz, terrivel chamma
Com impeto crescida, e levantada
Nos céos em fim se atêe, os céos abraze.
A' memoria lhe vem que leu nos Fados
Que inda a terra, inda o mar, inda as estrellas
Seriam de alto incendio accommettidos,
E a machína do mundo arruinada.
Depondo as armas, que os Cyclopes forjam,
D'outra pena se apraz, com outros males
Quer punir os mortaes, quer suffocal-os
Co'as soltas aguas, derretendo as nuvens
Por todo o pólo em rapidos chuveiros.
Na gruta Eolia subito aferrolha
Aquilão rugidor, e os mais que espancam
Atras procellas, grávidos vapores.
O Noto desencerra, e vôa o Noto,
Longas as pennas mádidas, envolta
Em densa escuridão a atroz carranca.
Pezam-lhe as barbas com pejadas nuvens,
Goteja-lhe a melena encanecida,
Pousam-lhe as nevoas na cabeça horrenda,
Co'as azas, e c'o peito orvalha os ares.
Tanto que espreme as procellosas sombras
Um rispido fragor no céo retumba,
E o céo rebenta em horrida torrente.
Iris, a nuncia da Saturnia Juno,
Trajando roupas de matiz lustroso,
Embebe as aguas, e alimenta as nuvens.
Morrem nas louras, trémulas searas
Ao cultor lacrimoso as esperanças,
Um momento destroe d'um anno a lida.
Para o furor de Jove os céos não bastam;
O azul irmão co'as ondas o auxilia:
Este os rios convoca, e mal que os paços
Entram do iroso, undivago tyranno:
«Não careço (lhes diz) pura comvosco
De longa exhortação, fieis ministros.
Ide, inchae, derramae-vos pelas terras,
Vasem-se de repente as urnas vossas,
Rompa-se o dique ás profugas correntes,
Solte-se o freio ás aguas. Assim cumpre.»
Ordena, partem, correm, vão-se ás fontes,
E as bocas donde sáem lhe desapertam:
Volvem depois ao mar desenfreados.
Neptuno vibra o cérulo tridente,
Fere a terra com elle, e treme a terra,
E ás aguas c'o tremor franquêa o seio.
Em brava rapidez correndo os rios,
Já dos campos se apossam, já derrubam,
Já comsigo arrebatam, plantas, gados,
Gentes, habitações, e os Lares sanctos.
Se ha por dita edifício que não cáia,
Se algum resiste ao pavoroso estrago,
A torrente voraz lhe cobre os tectos;
Tremendo as torres, ameaçam quéda,
Rotas, cavadas pelo embate undoso.
Já se confunde o pélago co'a terra,
Já tudo é mar, ao mar já faltam praias.
Qual sóbe, resfolgando, alpestre outeiro,
Qual vaguêa medroso em curvo barco,
E onde lavraram bois trabalham remos.
Sobre as perdidas, afogadas messes
Vae navegando aquelle, ou sobre o cimo
Das submersas aldêas, este encontra
Na copa de alto ulmeiro o peixo mudo.
Feiram-se acaso as ancoras ganchosas
Nos murchos prados, que viçosos foram:
De Baccho a planta, ás onda sotoposta,
Jaz mordida, tambem dos férreos dentes;
Na relva,, que os rebanhos tosquiaram
Pousa do equoreo vate o gado informe;
Assombram-se as Nereidas de avistarem
Debaixo d'agua bosques, edificios:
Por entre as selvas os delphins voltêam,
Co'as negras trombas pelos troncos batem,
E o carvalho a vergar no encontro empurram.
O lobo vae nadando entre as ovelhas,
Em meio da torrente impetuosa
Boiam fulvos leões, manchados tigres.
Não vale aos javalis a força enorme,
A summa rapidez não vale aos cervos.
Buscada longamente, e em vão buscada
Pelas aéreas aves sendo a terra,
Onde repousem do continuo vôo,
Cançam-se em fim, despenham-se nas aguas.
Eis em soberbos torreões de espuma
Tenta, o pégo arrogante as arduas serras:
Fervem-lhe em torno dos fragosos picos
As ondas, que jámais ali ferveram.
Assaltando os miserrimos viventes
No vão refugio, quasi tudo absorvem,
E aquelles, que da furia, se lhe esquivam,
Em comprido jejum ralados morrem.
A Phócida, que os Ácticos separa
Dos afamados campos da Beócia,
E terra pingue foi, quando foi terra,
E' já d'aguas envoltas lago immenso.
Ali de cumes dous montanha ingente,
Tendo a ramosa fronte além das nuvens,
E arremettendo aos céos, se diz Parnaso.
N'ella Deucalion (porque dos mares
Jazia tudo o mais em fim coberto)
N'eila Deucalion tinha aportado
Em pequeno baixel co'a terna esposa,
Forçados pelos ímpetos das aguas.
Desembarcando os dous, off'recem logo
Interno culto aos numes da montanha,
As nymphas de Corycio, a Thémis sacra,
De quem ali o oraculo se ouvia.
Nenhum dos homens excedêra aquelle
No amor ao justo, no temor aos deuses:
Luzíam na consorte egnaes virtudes.
Jove, que o mundo vê todo inundado,
Vivos de tantos mil só um, só uma,
Ambos tão pios, tão amaveis ambos,
Cos soltos Aquilões sacode as nuvens,
As pezadas carrancas dos chuveiros,
E a terra mostra aos céos, e os céos á terra.
Nem do pélago a furia permanece:
Co ferro de tres pontas mal que o toca
As ondas lhe amacia o deus das ondas,
E chamando Tritão, que levantado
Sobre a agua está (cobertos de brilhante
Purpura natural seus rijos hombros)
O buzio roncador lhe diz que assopre,
Que no usado signal ordene aos rios,
E ao transbordado mar que retrocedam.
Da sonorosa, e concava buzina
Lança mão de repente o gran mancebo,
Da buzina, que em circulos, em roscas
Da ponta para cima se dilata,
Que tanto que no seio acolhe os ares
D'um e d'outro hemispherio atrôa as praias;
Eis aos labios a concha o deus applica
Por entre negras barbas orvalhosas
* Incham-lhe as faces ao robusto assôpro,
Toca, e rios, e mar, que o som lhe escutam,
Subito a seu pezar vem recuando.
Este já praias tem, tem leito aquelles,
E murmuram pacificos, e tardos:
Os outeiros assomam, surge a terra,
Os campos crescem, decrescendo as ondas.
Depois de longo espaço os arvoredos,
Os arvoredos nus se vão mostrando:
Dos despojados troncos pendem limos.
Em fim renasce o mundo, e vendo o triste,
O bom Deucalion vasia a terra,
E.alto silencio derramado em tudo,
A Pyrrha diz chorando: «Oh dôce esposa,
Oh tu, que és só, que és unica de tantas
Habitantes do mundo, e que ligada
Pelo amor, pelo sangue estás comigo,
Agora ainda mais pelo infortunio !
Do nascente ao poente, em toda a terra
Só habitamos nós, só nós vivemos:
Tudo o mais pelas ondas foi tragado,
E cuido que não tens inda segura
Tua existencia tu, nem eu a minha:
Estas nuvens, que observo, inda me aterram.
Ali triste! Que farias se arrancada
Ao fado universal sem mim te visses !
Onde, fria de susto, onde leváras
A planta vacillante e quem seria
Tua consolação na dôr, no pranto ?
Crê, minha amada, que se o mar sanhudo
Te escondesse nas sôfregas entranhas,
Te houvera de seguir o afflicto esposo,
Socio te fôra em vida. e socio em morte.
Oxalá que eu com a paterna industria
Podesse reparar a humanidade,
Alma infundindo na formada terra !
Todo o genero humano em nós se inclue,
(Isto aos fados apraz, apraz aos deuses)
Ficámos para exemplo de que o mundo
Morada de homens foi.» Disse, e choravam.
Depois, tornando em si, resolvem ambos
Recorrer aos oraculos sagrados,
Da deusa Thémis invocar o auxilio.
Não tardam: vão-se do Cephyso ás aguas .
Que ainda não bem liquidas caminham,
E apenas pelas frontes, pelas vestes
Os gostados liquores desparziram,
Para o templo da deusa os passos torcem.
Manchava torpe musgo a frente, os tectos
Da estancia, veneravel, e jaziam
Sem ministro, sem luz, sem culto as aras.
Como os sacros degraus tocado houvessem,
Sobre a mádida terra os dous se prostram,
E dão nas pedras osculo medroso:
Oram depois assim: «Se justas preces
Tornam benignos os frados numes,
Se a cholera dos céos com ais se adoça,
Dize-nos, deusa, dize-nos de que arte
Podemos instaurar a especie humana,
E soccorre piedosa o triste mundo.»
Movendo-se a deidade, assim lhes falla:
«Do meu templo saí; cobrindo as frontes,
Soltae as vestiduras, que vos cingem,
E para traz depois lançae os ossos
De vossa grande mãe.» Tendo ficado
Atonitos os dous espaço grande,
Pyrrha primeiro em fim rompe o silencio,
Da divindade as leis cumprir não ousa,
E com trémula voz perdão lhe roga,
Porque teme, espalhando os ossos frios,
Aos manes maternaes fazer injuria.
Depois d'isto repetem, pezam, notam
As palavras do oraculo sombrio;
Té que Deucalion, que o venerando
Filho de Promethêo com brandas vozes
Serena a cara esposa, e diz: «Se acaso
Não revolvo illusões no pensamento,
O oraculo da deusa é justo, é pio,
Não nos ordena o mal, não quer um crime.
A grande mãe, que ouviste, a mãe de todos
E' a terra; a meu vêr são os seus ossos
As pedras, e essas diz, que ao chão lancemos.»
Bem que esta intelligencia agrade a Pyrrha,
Esperanças com duvidas se envolvem,
E ambos das ordens sanctas desconfiam;
Mas n'lsso que lhes vae se as effeituam ?
As aras deixam, as cabeças cobrem,
Soltam as roçagantes vestiduras,
E logo para traz as pedras lançam.
Eis (quem te déra credito, oh portento,
Se annosa tradição não te abonasse !)
Eis que subitamente ellas começam
A despir-se do frio, e da rijeza,
E despindo a rijeza, a transformar-se.
Crescendo vão, mais branda natureza
As tóca, as amacia, as amollece,
E n'ellas se perfeito o vulto humano
Logo ali se não vê, se vê comtudo
Em grosseiros signaes a similhança;
Qual na estatua, no marmore, a que apenas
Deu talbe a mão de artifice elegante.
Partes, que eram terrenas, e succosas
Nas carnes, e no sangue se convertem;
O que tem solidez, o que não dobra
Muda-se em ossos, e o que d'antes n'ellas
Veia se nomeou conserva o nome.
N'um breve espaço em fim (mercê dos deuses)
As que arroja o varão varões se tornam,
E as que sólta a mulher mulheres ficam.
Por isto somos fortes, somos duros,
Aptos a emprezas, proprios a trabalhos,
E em nosso esforço, na constancia nossa
Claramente se vê que origem temos.
Os outros animaes nas fórmas varios
A terra os produziu, sendo escaldado
Pelos raios do sol o humor antigo;
Os encharcados, os lodosos campos
Com o activo calor se entumeceram,
E das cousas a próvida semente
Qual no materno claustro ali cerrada,
Nutriu-se, e de vagar cresceu, formou-se.
D'est'arte, havendo em fim retrocedido
A seu amplo deposito profundo
0 gran Nilo, que sáe de bocas sete,
Co'a etherea flamma se afoguêa o lodo,
E por entre os terrões, quando os revolve,
De animaes o cultor acha milhares,
Uns a nascer, e em parte já formados,
Em parte os membros seus inda imperfeitos;
E vê-se muitas vezes que de um corpo
Metade vive já, metade é terra.
Humidade, e calor dão vida a tudo,
Se mutuamente se temperam ambos.
Bem que d'agua contrario o fogo seja,
Sáe do humido vapor quanto é gerado;
A discorde união fermenta, e cria.
Portanto a fertil mãe, a extensa terra
Do recente diluvio repassada,
E pelo aereo lume escandecida,
Innumeras especies foi brotando:
Deu ser a algumas com a fórma antiga,
N'outras em fim creou não vistos monstros.
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Poesia Consagrada :
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