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Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Terceiro:Durande e Déruchette - Capítulo III : Rantaine

Quarenta anos antes da época em que se passam os fatos que narramos, havia em um arrabalde de Paris, entre a Fosse-aux- Loups e a Tombe Issoire, um albergue suspeito. Era uma casinha isolada e baixa. Morava ai, com a mulher e o filho, uma espécie de burguês bandido, antigo escrevente de tabelião no Châtelet, e ao depois ladrão descarado. Já havia figurado no tribunal criminal. O apelido da família era Rantaine. No referido pardieiro, em cima de uma cômoda de mogno, viam-se duas xícaras de porcelana pintada: em uma delas lia-se em letras douradas o seguinte dístico: Lembrança de Amizade na outra: Sinal de Estima A criança vivia ali na lama de parceria com o crime. Como o pai e a mãe pertenciam à burguesia mediana, o menino aprendia a ler: educavam-no. A mãe, pálida, quase esfarrapada, dava maquinalmente educação a seu filho: ensinava-o a soletrar; e interrompia o trabalho, ora para ajudar o marido em alguma emboscada, ora para entregar-se ao primeiro viandante. Durante esse tempo a Cruz de Jesus, aberta no lugar em que a deixavam, ficava sobre a mesa, e ao pé do livro o menino pensativo.

O pai e a mãe, presos em algum flagrante delito, desapareceram na noite penal. A criança desapareceu também. Lethierry, em suas excursões, encontrou um aventureiro como ele, livrou-o, não se sabe de que aperto, prestou-lhe serviços, afeiçoou-se-lhe, chamou-o a si, levou-o para Guernesey, achou-o inteligente para a navegação costeira, e deu-lhe sociedade. Era o pequeno Rantaine feito homem.

Rantaine, como Lethierry, tinha uma cabeça robusta, espáduas largas e possantes e quadris de Hércules Farnese. Lethierry e ele tinham o mesmo ar e a mesma aparência; Rantaine era mais alto.

Quem os via, pelas costas, passear ao lado um do outro, dizia: lá estão os dois irmãos. De frente, o caso era diverso. Havia tanto de franco em Lethierry, como de reservado em Rantaine. Rantaine era circunspecto. Rantaine era esgrimista, tocava harmônica, espevitava uma vela com uma bala a vinte passos. dava um soco magnífico, recitava versos da Hemíada, e adivinhava sonhos. Sabia de cor os Êmulos de São Denis, por Treneuil; dizia ter tido amizade com o sultão de Calicut a quem os portugueses chamam Camorim. Se pudesse folhear a carteira de lembranças que andava sempre no bolso dele, ter-se-iam encontrado, entre outras notas, algumas do gênero desta: Em Lião, numa das frestas da parede do calabouço de São José, há uma lima escondida. Falava com uma lentidão discreta. Dizia-se filho de um cavalheiro de São Luís.

A sua roupa era toda misturada e marcada com iniciais diferentes.

Ninguém mais suscetível em coisas de honra. Batia-se e matava.

A força servindo de invólucro à astúcia, tal era Rantaine.

A beleza de um soco aplicado por ele numa feira, sobre uma cabeça de moro, conquistara-lhe outrora a simpatia de Lethierry.

Suas aventuras eram completamente ignoradas em Guernesey. Variavam muito. Se os destinos tem um traje, o destino de Rantaine vestia a moda de arlequim. Tinha visto o mundo: tinha trabalhado muito. Era um circunavegador. Teve inumeráveis ofícios. Foi cozinheiro em Madagascar, criador de pássaros em Sumatra, general em Honolulu, jornalista religioso nas ilhas de Galápagos, poeta em Oomrawuttee e pedreiro-livre no Haiti. Neste último emprego pronunciara no Grande Goave uma oração fúnebre de que os jornais locais conservaram este fragmento: Adeus, pois, bela alma! na abóbada azulada dos céus onde agora desferes o vôo, encontrar ás sem dúvida o bom Padre Leandro Crameau do Pequeno Goave.

Dize-lhe que, graças a dez anos de esforços gloriosos, terminasse a Igreja de Anse-à-Veau. Adeus! gênio transcendente, modelo! A máscara de pedreiro-livre não lhe impedia, como se vê, trazer o nariz católico. A primeira conciliava-o com os homens do progresso; o segundo com os homens da ordem. Apregoava-se branco de raça pura, odiava os negros: apesar disso teria admirado a Soluque.

Em Bordeaux, em 1815, foi ele verdete. Naquela época a fumaça de seu realismo saía-lhe pela cabeça fora, na forma de um imenso penacho branco. Passava a vida a fazer eclipses, aparecendo, desaparecendo e tornando a aparecer. Era um velhaco a girar como uma rodinha de fogo. Sabia o turco: em vez de guilhotinado, dizia neboissé. Fora escravo em Trípoli, na casa de um thaleb, e aí aprendera o turco à força de bengaladas; tinha por obrigação ir à noite à porta das mesquitas ler em alta voz diante dos fiéis o Alcorão, escrito em pranchas de madeira ou em omoplatas de camelo. Provavelmente era renegado.

Era capaz de tudo e mais alguma coisa.

Ria a gargalhadas e enrugava as sobrancelhas, a um tempo. Dizia: Em política, só estimo as pessoas inacessíveis às influências.

Dizia: Sou pelos costumes. Dizia: É preciso repor a pirâmide na base. Era mais alegre e cordial que outra coisa. A forma da boca desmentia-lhe o sentido das palavras. As suas narinas eram antes ventas de animal. Tinha no canto dos olhos uma encruzilhada de rugas onde toda a sorte de pensamentos obscuros davam entrevista.

Aí é que se podia decifrar o segredo da fisionomia dele.

Assemelhavam-se as tais rugas a uma garra de abutre. O crânio era chato em cima e largo nas têmporas. A orelha disforme e embrenhada de cabelos parecia dizer: Não fales ao animal que está aqui neste antro.

Rantaine desapareceu um dia de Guernesey.

O sócio de Lethierry raspou-se, deixando vazia a caixa da sociedade.

Havia dinheiro dele na caixa, é certo; mas havia também 50 000 francos de Lethierry.

Lethierry ganhara uns 100 000 francos em quarenta anos de indústria e de probidade, no seu oficio de navegador costeiro e carpinteiro de navio; Rantaine levou-lhe metade.

Lethierry, meio arruinado, não cedeu, e tratou imediatamente de levantar-se. Aos homens de boa têmpera arruina-se a fortuna, não a coragem. Começava-se então a falar do vapor. Lethierry teve a idéia de tentar a máquina de Fulton, tão contestada, e ligar por meio de um vapor o arquipélago normando à França. Jogou tudo nessa idéia. Aplicou-lhe os restos da fortuna. Seis meses depois da fuga de Rantaine a gente de Saint-Sampson viu estupefata sair daquele porto um navio deitando fumo, e produzindo o efeito de um incêndio no mar: foi o primeiro vapor que sulcou as águas da Mancha.

Aquele navio, alcunhado Galeota de Lethierry, pelo desdém e ódio de todos, foi anunciado para fazer a carreira de Guernesey a Saint-Malo.

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domingo, maio 24, 2009 - 16:09

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