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Visões

I - Prodígio

Naquele instante em que vacila a mente
Do sono ao despertar, quando pejada
Vem doutros mundos de visões etéreas;
Quando sobre a manhã surge brilhante
A luz da madrugada, - eu vi!... nem sonhos
Era a minha visão, real não era;
Mas tinha d'ambos o talvez. - Quem sabe?
Foi capricho falaz da fantasia,
Ou foi certo aventar d'eras venturas?

A ira do Senhor baixou tremenda
Sobre uma vasta capital! - em pedra
Tornou-se a gente impura. Muitos homens
Às portas férreas, largas, vi sentados.
Melhor do que um pintor ou estatuário
A morte, que de súbito os colhera
No ardor, no afã da vida, conservou-lhes
A ação - partida em meio, com tal força,
Que a mente seu malgrado a completava.
Um tinha os lábios entreabertos; outro
Parecia sorrir; mais longe aquele
Derramava um segredo, baixo, a medo,
Nos ouvidos do amigo; austero o guarda
Com rosto carregado e barba hirsuta,
Nas mãos calosas sopesava a lança.
Dos mercadores na comprida rua
Passavam muitos compradores; - este
Contava montes d'oiro; - à luz aquele
Expunha a seda do Indostão, de Tiro
A púrpura brilhante, a damasquina
Custosa tela entretecida d'oiro.
Cortês sorrindo, o mercador gabava
As cores vivas, o tecido, o corpo
Do estofo que vendia. Nos serralhos
Era o Eunuco imperfeito; das Mesquitas
Bradava à prece o Muezim...
- Num largo,
Fofo e vasto divã sentado, um velho
Os versos lia do Alcorão; - só ele
Dentre tanto punir ficara ileso.

II - A Cruz

Era um templo d'arábica estrutura,
Majestoso, elegante; - além das nuvens
Se entranhava nos céus subtil a agulha;
Sobre o zimbório retumbante e vasto
Ondas e ondas de vapor cresciam.
Dentro corriam três compridas naves
Sobre dois renques de colunas, onde
Baixos-relevos da sagrada história
Da base ao capitel se emaranhavam.
Ardia a luz na alâmpada sagrada;
No sagrado instrumento o som dormia.

Junto à cruz - da fachada egrégia pompa -
Muitos homens eu vi de torvo aspecto;
Muitos outros, servis, com mão armada
Profundos golpes entalhavam nela.
Um daqueles no entanto assim falava:

"Quando esta humilde cruz rojar por terra,
"Levando a crença de Jesus consigo,
"Nós outros, da verdade Sacerdotes,
"Nós Doutores do mundo, nós Luzeiros
"Que desvendamos a impostura, o erro,
"A mentira sagaz, a crença louca,
"Entrada fácil da razão no templo
"Teremos todos, e de então no trono,
"Do néscio vulgo imparciais sob'ranos,
"Santos juízes da verdade santa,
"Pregaremos o justo, a paz, concórdia
"E os seus deveres que dimanam fáceis
"Do amor do lucro e do interesse; todos
"- Vassalos da razão, nossos vassalos -
"Um éden terreal farão do mundo."

No entanto aos crebros golpes do machado
A cruz pendia oblíqua sobre a terra.
Criando novas forças com tal vista,
Os operários mais freqüentes golpes
Repetem, vibram, continuam; - soa
Por toda a parte o eco, - o som, mais longe,
Retumba, morre - e novamente ecoa.
Nisto a cruz - geme - estrala; um grito sobe
Uníssono e geral!. . .
Como sois grande,
Senhor, Senhor meu Deus? - Eu vi, morrendo,
Os obreiros cair; e a cruz erguer-se,
Como aos raios do sol a flor mimosa
Que a raiva do tufão vergara insana.

III - Passamento

Era um quarto espaçoso; - ali se viam
Rojar no pavimento, há pouco, as sedas,
Ricos tapetes multicor bordados,
E franjas complicadas dum céu d'oiro
Pendentes, - vastos rases narradores
De lenda pia ou de briosos feitos.
Mas de tanto luzir, de tanto ornato
Ora por mãos avaras depredado
O vasto d'área revelava aos olhos,
Tendo num canto escuro um leito apenas.
Do leito alguém rasgara o cortinado.
E da curva armação polida e bela
Aqui, ali, pendia a seda em fios,
Bem como tranças de mulher formosa
Por sobre o seio nu. - Ali no leito
Jazia um moribundo; em torno os olhos
Cheios de pasmo e de terror volvia,
Bebendo pelos sôfregos ouvidos
Mal sentido rumor doutro aposento.
Confusas vozes, altercar ruidoso,
E o tinir de metal ouvia apenas!
Então por vezes três no leito aflito
Erguer-se maquinou de raiva insano!
Por três vezes caiu, gemendo, sobre
O leito que da queda se sentia.

Da morte o cru torpor nos membros frios
Pouco e pouco s'espalha; mas teimoso
Da vida o amor debate-se nas ânsias
Desse passo fatal. . .
- Eis nisto à porta
Um Padre assoma, - dentre as mãos erguidas
Da hóstia santa resplendor luzia;

E palavras de paz, de amor, divinas,
Que nos lábios do justo Deus entorna,
Abundantes soltava. Longos anos
De piedoso sofrer o corpo enfermo
Alquebraram por fim: as cãs nevadas
Raras tremiam sobre a testa, como
Tremia na garganta a voz cansada.

Dizia o bom do velho: - "Irmão, nas ânsias,
"No extremo agonizar da morte amiga
"Ergue os olhos ao céu; - do céu te venha
"Esse divino amor, que só lá morri,
"Que filtra por nossa alma, que nos deixa
"Mais celeste prazer, mais doce arroubo,
"Do que a terra sói dar...
"Infames, tredos,
"Bufarinheiros de palavras, corvos
"De negro, feio agoiro, que esvoaçam
"Com grito grasnador por sobre o campo,
"Onde a peleja de reinar começa;
"Dizes-me tu - a mim! a mim que ao foro
"Caminho inda hoje entre alas de clientes,
"Que só me visto de veludo e d'oiro,
"Enquanto vives de burel coberto,
"Co'os lábios sobre o pó mordendo a terra!
"Dizes-me tu a mim!..."
Ergueu-se, o corpo
Caiu de fraco sobre o leito; o velho
No entanto humilde orava, que alma santa
Do mal cabido insulto não se ofende.

Jeová, que entre miríades
Vives de estrelas formosas,
Que das flores melindrosas
Da terra - os anjos formaste;
Jeová, que pela água
Lustrar quiseste o Messias,
Que ao beato, ao santo Elias
Nas chamas purificaste;
Jeová, que a mente apuras
No fogo do sofrimento,
Que divino alto portento
Deste fazer à Moisés,
Quando a negra rocha dura
Tocando co'a tênue vara,
Rebentou a linfa clara.
Lambendo-lhe mansa os pés:

Jeová, que eterno existes,
Cujo ser em si se encerra,
Que formaste o céu e a terra,
Que te chamas - o que é,
- Faz, Senhor d'altos prodígios,
Com que a mente empedernida
Não se aparte desta vida
Sem sentir a santa fé.

E tu, Cristo, que sofreste
Martírios por nosso amor,
Tu que foste o Salvador,
Salva-o, Senhor, por quem és.
Dá que em palavras piedosas
Se derrame contristado,
Como o rochedo tocado
Pela vara de Moisés.

E o confuso rumor do outro aposento
Crescia mais e mais. - Do moribundo
Os cúpidos herdeiros dividiam
Por si a vasta herança; os torvos olhos
Iam de rosto a rosto, fuzilando
Ameaças de morte.

No entanto o velho exânime e sem forças
Curtia amargos transes, que avarento,
E tendo a vida inútil presa a terra
Com toda a força d'alma, - agora em ânsias
Sentia o hálito vital fugir-lhe,
E a terra abandoná-lo.

Estua-lhe a dor no peito aflito!. . .
Só não chorava, que do pranto a fonte
Jazia extinta; mas pensava triste:
- Não tinha alguém que lhe cerrasse os olhos
Nem quem chorando lhe abrandasse o amargo
Do extremo agonizar

E a mente, já medrosa, em feio quadro
lhe pintava os seus feitos: - A vingança,
Que tão grande prazer lhe tinha sido,
Ora em martírios se tornava; a chusma
Dos homicídios seus crescia torva,
E no leito o cercava.

Crença infantil! dizia; loucos, cegos
Prejuízos do vulgo; - assim dizendo
Os vãos fantasmas repelir buscava.
Mas a crença infantil, os prejuízos
Do néscio vulgo, ríspidos tornavam,
Como inseto importuno.

Debalde por não ver cerrava os olhos.
Sobre os olhos debalde as mãos cruzava,
Que as sombras nos ouvidos lhe falavam,
E mais distintas se pintavam n'alma
- Tão bem molesta, qual se pinta o corpo
Do espelho no polido.

E do seu passamento o caso infando
Narrava uma após outra, sobre o peito
Mostrando o golpe fúnebre e cruento;
Sorvendo o fel da taça amarga o enfermo
Parecia sorrir!... era qual louco
Que sofre e um riso finge.

E das visões indo a fugir se arroja
De sobre o leito delirante; as sombras
Voam sobre ele, e em círculo se ordenam.
O moribundo a esta, a aquela, a todas
Volve o pávido rosto, no mover-se
Progressivo, incessante.

E preso ao duro embate da vertigem,
As mestas sombras ao redor com ele
Fugir sentia; o pavimento, a casa
Rápido rodava; a terra e tudo,
Como aos soluços dum vulcão tremendo,
As forças lhe tolhiam.

E o orgulhoso que feliz vivera,
Movendo a seu bom grado mil escravos,
Querendo a terra dominar co'um gesto,
Ora mesquinho, solitário e louco,
Face a face, lutando com seus crimes,
Morria impenitente.

IV

Era o vulto de um homem morto que afastando o sudário se ia

erguer do túmulo para revelar alguns dos temerosos mistérios,
que encerra a aparente quietação dos sepulcros.
-- O Presbítero

O negrume da noite avulta; e cresce
Mais feia a escuridão
À luz da sacra pira que derrama
Frouxo e tíbio clarão.

Calou-se o canto, a prece, - é mudo o templo;
Apenas fraco soa
Da torre o bronze, que a noturna brisa
De rumores povoa.

Mas eis que de um sepulcro a pedra fria
S'ergue e sobre outras cai.
Não se escuta rumor! - da campa livre
Medroso espectro sai.

O rosto ossificado em tomo volve,
Volve a suja caveira;
Do liso crânio os longos dedos varrem
A fúnebre poeira.

Mas inda inteiro o coração se via
Do peito nas cavernas,
Inda sangrento lágrimas chorava
Do negro sangue eternas.

E caminhando, qual se move a sombra,
Ao órgão se assentou!
Já não dormem os sons, não dormem ecos...
- O triste assim cantou:

"Onde estás, meu amor, meus encantos,
Por quem só me pesava morrer,
Doce encanto que a vida me prendes,
Que inda em morto me fazes sofrer?

"Doce amor, minha vida no mundo,
Desse mundo em que parte serás;
Em que cismas, que pensas, que fazes,
Onde estás, meu amor, onde estás?

Ah! debalde na campa gelada,
Fria morte me pôde deitar!
Foi debalde, - que eu sinto, que eu ardo;
Foi debalde, - que eu amo a penar.

"Ah! se eu triste no mundo pudesse
Como outrora viver, respirar. . .
Não soubera dizer-te os ardores
Que o sepulcro não pode apagar.

"Onde estás? - Já da morte o bafejo
Por teu rosto divino roçou;
Já na campa descansas finada,
Que o teu corpo sem vida tragou?

"Mas a morte não pode impiedosa
Crua foice vibrar contra til
Ah! tu vives, que eu sinto, que eu sofro
Crus ardores quais sempre sofri.

"E eu não posso o teu nome à noitinha
Entre as folhas saudoso cantar,
Nem seguir-te nas asas da brisa,
Nem teu sono de sonhos doirar.

"Nem lembrar-te os queridos instantes
Que a teu lado arroubado passei,
Sem cuidados de incerto futuro,
Só ruidoso da vida que amei.

"Não te lembras da noite homicida
Em que um ferro meu peito varou,
Quando a fácil conversa de amores
Teu marido cioso quebrou?!

"Desde então hei penado sozinho,
Verte sangue meu peito - de então;
Pode a morte acabar-me a existência,
Mas delir-me não pode a paixão!

"Nosso adúltero afeto no mundo
Não se acaba; - assim quis o Senhor!
Não se acaba... - qu'importa? - hei gozado
Teus encantos gentis, teu amor.

"Por te amar outras fráguas sofrera,
Outros transes e dor e penar;
Oh! poder que eu podesse outra vida
E outro inferno sofrer por te amar!"

Mas da aurora já raiava
Macio e brando clarão;
Macia e branda a canção
Do negro espectro soava.

E medroso se colava
Ao órgão seu negro véu,
Que imiga não se ajuntava
Ao seu vulto a luz do céu.

Pouco a pouco se perdia
O negro espectro; a canção
Pouco a pouco enfraquecia:
Do dia ao tênue clarão,

Era o cantar um soído
Fraco, incerto e duvidoso;
Era o vulto pavoroso
Duma sombra vão tremido.

V - A Morte

Dans sa doiileur elle se trouvail

malheurese d'être immortelle.
-- Fénélon

Da aurora vinha nascendo
O grato e belo clarão;
Eu sonhava! já mais brandos
Eram meus sonhos então.

Condensou-se o ar num ponto,
Cresceu o subtil vapor;
Vi formada uma beleza,
Cheia de encantos, de amor.

Mas na candura do rosto
Não se pintava o carmim;
Tinha um quê de cera junto '
À nitidez do marfim.

- "Quem és tu, visão celeste, '
Belo Arcanjo do Senhor?"
Respondeu-me: - "Sou a Morte,
Cru fantasma de terror?"

- Ah lhe tornei: És a morte,
Tão formosa e tão cruel!
- Correndo o mundo sozinha
No meu pálido corcel, -

Assim dizia - "Tu julgas
Que não tenho coração,
Que executo os meus deveres
Sem pesar, sem aflição?

- Que inda em flor da vida arranco
Ao jovem, sem compaixão,
A donzela pudibunda
Ou ao longevo ancião?

- Oh! não, que eu sofro martírios
Do que faço ao mais sofrer,
Sofro dor de que outros morrem,
De que eu não posso morrer;

- Mas em parte a dor me cura
Um pensamento, que é meu, -
Lembro aos humanos que a terra
É só passagem p'ra o céu.

- Faço ao triste erguer os olhos
Para a celeste mansão;
Em lábios que nunca oraram
Derramo pia oração.

- É meu poder quem apura
Os vícios que a mente encerra,
Ao fogo da minha dor;
Sou quem prendo aos céus a terra,

Sou quem ligo a criatura
Ao ser do seu Criador.
- Mas qu'importa? Sem descanso
É-me forçoso marchar,

Abater ímpias frontes,
Régias frontes decepar.
- Passar ao través dos homens,
Como um vento abrasador;

Como entre o feno maduro
A foice do segador.
- E prostrar uma após outra
Geração e geração,

Como peste que só reina
Em meio da solidão." -
Desponta o sol radioso
Entre nuvens de carmim:

Cessa o canto pesaroso,
Como corda áurea de Lira,
Que se parte, que suspira
Dando um gemido sem fim.

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segunda-feira, abril 27, 2009 - 02:50

Poesia Consagrada :

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AntonioGoncalvesDias

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