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Goethe - Werther
O coração do homem é incompreensível.
Os nossos desgostos não seriam tão acerbos se os homens- e só Deus sabe porque os criou assim!- em vez de suportarem o presente de ânimo sereno não obrigassem a memória a recordar os males passados.
Um simples equívoco ou uma negligência dão neste mundo origem a mais malquerenças e desordens do que a maldade mais calculadamente premeditada.
Trato o coração como se trata uma criança doente, satisfazendo-lhe todos os caprichos.
Em geral, os homens de certa posição, abstêm-se de qualquer familiaridade com gente de classe inferior pelo receio de perderem um pouco da própria dignidade; havendo também gente leviana, estouvada e de mau gosto que só se aproxima do povo para o desdenhar e motejar.
Aquele que se afasta do povo para se impor ao respeito é tão digno de censura como o poltrão que foge do adversário pelo receio de ser vencido.
Se me perguntares como é a gente daqui, responder-te-ei: como em toda a parte. A espécie humana é de uma desoladora uniformidade; a sua maioria trabalha durante a maior parte do tempo para ganhar a vida, e, se algumas horas lhe ficam, horas tão preciosas, são-lhe de tal forma pesadas que busca todos os meios para as ver passar. Triste destino o da humanidade.
(…) tornando-me maior do que era realmente, porque eu era tudo o que podia ser.
Que a vida é apenas um sonho já antes de mim outros o disseram, e é esta uma ideia que me persegue por toda a parte. Quando vejo em que estreitos limites se encerram as belas faculdades do homem; quando vejo que a sua actividade e a sua inteligência se esgotam para a simples satisfação de necessidades tendentes a prolongar a nossa pobre existência, quando considero que a sua tranquilidade, em presença de certos problemas da vida, é tão-somente uma ilusória resignação, como seria a do prisioneiro cujo cárcere tivesse as paredes revestidas de pinturas atraentes e variadas, então, concentro o espírito em recolhimento e encontro nele um mundo de pensamentos... ou antes de percepções confusas e de vagos desejos... Não são raciocínios, ainda menos projectos de acção, mas intangíveis sonhos que me flutuam ante os olhos e nos quais gostosamente me perco.
Todos os pedagogos do universo estão de acordo sobre este ponto; as crianças querem as coisas sem saber porque as querem; mas que homens feitos se arrastem, cambaleando, pelo globo, como as crianças, sem saberem, como elas, de onde vêm nem para onde vão, que não tenham mais conhecimentos dos seus actos e que igualmente se deixem governar com açoites e bolos, eis o que custa acreditar. E, não obstante, é tudo quanto há de mais verdadeiro.
Concordo de bom grado (…), que são esses os mais felizes; como as crianças, só vivem para o presente, passeando, vestindo e despindo cem vezes as suas bonecas; espreitando, com cobiça e respeito simultaneamente, a gaveta onde a mamã tem os bolos guardados; e quando, enfim, conseguem o que desejam, gritam com a boca cheia: "Mais!" Sim, são essas as mais felizes criaturas. Felizes também aqueles que, dando às suas ocupações fúteis, ou mesmo às suas loucuras, nomes pomposos, as querem fazer passar como proezas de gigante, realizadas em proveito, honra e glória da humanidade. Ditosos os que assim podem pensar! Mas quem os aprecia pelo que eles valem e aonde isso conduz; quem vê com que júbilo o modesto burguês faz do seu pequeno jardim um paraíso e com que humilde resignação o desprotegido da sorte, vergando ao peso da miséria, se arrasta pelo caminho espinhoso da vida! Quem vê que em todos é igual o desejo de contemplar um minuto mais a luz do céu, esse sim, observador calmo e livre de cuidados, arquitecta o seu mundo e é feliz, porque pensa e é homem. Por pouco inteligente que seja, basta-lhe ter no coração o sentimento consolador da sua liberdade e saber que pode sair desta prisão logo que queira.
O homem que se conduza segundo as regras nunca produzirá um trabalho ridículo ou mau, do mesmo modo, aquele que obedeça às leis e às convenções sociais não será nunca um vizinho insuportável nem um emérito malfeitor. Mas também, diga-se o que se disser, as regras atrofiam o verdadeiro sentimento e a pura expressão da natureza.
As regras só cortam os ramos supérfluos, fixando limites razoáveis ou convenientes... Meu caro amigo, queres que te apresente um exemplo? Acontece com elas o mesmo que com o amor. Um rapaz apaixona-se por uma rapariga, junto da qual passa todo o dia, consumindo a vida na contemplação daquela a quem ama e empregando todos os bens, todas as forças, todas as faculdades para lhe provar que é inteiramente dela. Chega um simples burguês, com experiência da vida, e no gozo da consideração pública, e diz a esse jovem:
- Meu caro senhor, amar é humano, certamente, mas é necessário amar como ama um homem. Divida o tempo, dedique uma parte dele ao trabalho e dê à sua amada somente as horas que lhe sobrarem para recreio. Calcule bem as suas despesas e os seus bens e, se alguma coisa lhe sobrar, não o proíbo de lhe oferecer algum presente, contanto que não o faça frequentemente; por exemplo: no dia dos anos dela, ou no do seu nome e pouco mais.
Se esse rapaz seguir o conselho, poderá vir a ser um grande homem, e eu próprio não hesitaria em pedir a qualquer príncipe que lhe confiasse uma pasta de ministro. Mas o amor é que desaparecerá nele e, se for artista, nunca mais poderá provar que tem talento.
Oh! Meus caros amigos! Porque será que o rio do génio transborda tão raras vezes? Porque também tão raras vezes se ergue em ondas impetuosas para lhes abalar as almas timoratas? É porque nas suas duas margens foram instalar-se os homens sensatos e moderados, cujas casinhas, hortas e canteiros de tulipas poderiam ser inundados e, portanto, evitam o perigo opondo diques à torrente e cavando canais para desviarem o curso.
Quando tumultuosos pensamentos se me agitam no cérebro e me fazem ferver o sangue, não há nada que tão eficazmente me restitua o sossego como encontrar uma criatura, percorrendo com serenidade o estreito círculo da sua existência, dia a dia, suavemente, e vendo cair as folhas das árvores sem ligar ao facto outra ideia que não seja a de que é o Inverno que se aproxima.
(…) poesia. Com efeito, de que se trata? De encontrar o que é verdadeiramente belo e saber exprimi-lo: é isto em verdade, dizer muito em poucas palavras.
Tanta simplicidade em tanto espírito, tanta bondade em tanta firmeza, o remanso da alma no meio da vida real, da vida activa!
Com a alma presa àquele rosto formosíssimo, à doçura infinita daquela voz, mal tive ânimo para reprimir a comoção que me invadia.
A minha alma estava suspensa dos seus lábios , fascinava-me, atraía-me a suave frescura daquelas faces. O que ela dizia absorvia-me por completo, sentia-me preso à magnitude dos seus pensamentos, acontecendo-me, todavia, por vezes, não ouvir as frases de que ela se servia para os exprimir.
(…) como que a sonhar; e tão perdido estava no turbilhão dos meus pensamentos e no crepúsculo que nos cercava que mal ouvia os sons de música que vinham até nós da sala iluminada.
Já não era um homem... Ter aquela encantadora mulher nos braços, voar com ela, rápida como um relâmpago, ver desaparecer tudo em redor de mim!...
Não me contive. Curvei-me, e beijei-lhe as mãos a verter deliciosas lágrimas. Depois os meus olhos voltaram a procurar os dela.
Podem o sol, a lua e as estrelas fazer as suas revoluções como entenderem; já não me importa que seja dia ou noite, o mundo não existe já para mim!
Quando qualquer acidente súbito ou notícia triste nos vem surpreender em meio do prazer, recebemos naturalmente uma bem mais viva impressão do que noutro qualquer momento, , não só em razão do contraste, como porque os nossos sentidos, despertando de súbito, são mais fortemente afectados.
(…)à força de fingir coragem, para a incutir a outros, acabei por me tornar corajosa.
Tenho pensado inúmeras vezes nessa tendência do homem para se expandir livremente, para fazer constantemente novas descobertas, para se transportar a toda a parte onde não está, e, por outro lado, nessa íntima propensão que ele tem para se deixar voluntariamente prescrever limites, para seguir maquinalmente a rotina do hábito, sem se preocupar com o que se passa à sua esquerda ou à sua direita.
Acontece com a distância o mesmo que com o futuro. Cobre-nos a alma uma enorme escuridão; o pensamento mergulha nela e ilude-se como o nosso olhar: sentimos o desejo ardente de sacrificar toda a existência, para nos absorvermos, com inefável alegria, no sentimento do infinito! Mas... quando lá chegamos, quando o longínquo se aproxima de nós, tudo nos aparece no mesmo estado; conservamo-nos em igual miséria; rodeia-nos idêntica tristeza e a nossa alma sedenta suspira baldadamente o bálsamo pela aventura que acaba de lhe fugir.
Acontece com a distância o mesmo que com o futuro. Cobre-nos a alma uma enorme escuridão; o pensamento mergulha nela e ilude-se como o nosso olhar: sentimos o desejo ardente de sacrificar toda a existência, para nos absorvermos, com inefável alegria, no sentimento do infinito! Mas... quando lá chegamos, quando o longínquo se aproxima de nós, tudo nos aparece no mesmo estado; conservamo-nos em igual miséria; rodeia-nos idêntica tristeza e a nossa alma sedenta suspira baldadamente o bálsamo pela aventura que acaba de lhe fugir.
Sinto-me orgulhoso por ver que possuo um coração capaz de sentir essa inocente alegria do homem que põe sobre a mesa a couve que ele próprio semeou, e que não só goza de vê-la, como também recorda ao mesmo tempo os belos dias que passou a tratá-la, a linda manhã em que a plantou, as amenas tardes em que a regou e, finalmente, o prazer que sentiu de a ver crescer e engrossar! Ao meu querido pai.
Por ti, hei-de viver.
São as crianças o que no mundo mais me fala ao coração. Quando observo esses pequeninos entes vejo neles o germe de todas as faculdades de que tanto hão-de carecer um dia; quando vejo na sua teimosia a sua futura constância e firmeza de carácter, nas suas travessuras a alegria e o estouvamento que lhes aplanará a estrada da vida, tão cheia de perigosos precipícios; quando, finalmente, contemplo tanta pureza e tanta fraqueza, não me canso de repetir uma e mil vezes essas precisas palavras do Divino Mestre:
- Se não vos tornardes como alguma dessas crianças! E, contudo, esses entes, que são nossos semelhantes e que deveríamos tomar por modelos, tratamo-los como se fossem escravos e não lhes reconhecemos direito algum. Mas acaso não temos nós tantos? E em que consistem os nossos privilégios? Em sermos mais idosos e mais sisudos? Deus meu! Lá do alto da glória, não vês neste mundo senão crianças novas... nada mais? Dentre elas, o teu Filho fez-nos conhecer, de há muito, aquelas que preferes... Nós, porém, cremos nele e não o escutamos - é ainda uma grande verdade! - Modelamos os nossos filhos à nossa semelhança e...
Não há nada que mais me desgoste do que ver os homens atormentarem-se reciprocamente, e em especial se, sendo moços, na flor da vida, quando as suas almas mais facilmente se poderiam abrir a todos os sentimentos do prazer, perdem por estúpidas susceptibilidades os poucos dias bons de que podem gozar, compreendendo somente quanto é louco esse desperdício quando já não é tempo de reparar o mal.
- Estamos continuamente a lamentar-nos por termos tão poucos dias bons e tantos maus: mas, na minha opinião, queixamo-nos infundadamente. Se a nossa alma estivesse sempre aberta ao gozo da felicidade que Deus nos concede, teríamos depois a força necessária para suportar o mal quando se nos apresentasse.
- O pior - disse a mulher do pastor - é que não temos o coração nas mãos. Há coisas que dependem do corpo. E quando o corpo enferma a alma adoece também.
Concordei. - Mas, nesse caso - acrescentei em seguida -, devemos procurar aplicar qualquer remédio.
- Sou de igual parecer - disse Carlota. - Pelo menos, julgo que muito se pode obter por nossa iniciativa, e digo-o por experiência própria. Quando qualquer coisa me inquieta ou entristece, levanto-me de onde estou, vou a dançar até ao jardim, canto duas ou três árias... e era uma vez o desgosto!
- Era exactamente isso que eu queria - confirmei. - Acontece com a má disposição de espírito o mesmo que com a preguiça, visto que temos para esta tendências naturais; mas, se temos força para reagir e nos reanimamos, o amor ao trabalho vence e achamos que a actividade nos dá um grande gozo.
Quanto às forças morais, ninguém conhece até onde chegam as suas antes de as experimentar.
Não falta quem pregue contra os vícios da humanidade; mas nunca ouvi que no púlpito alguém condenasse o mau humor. (…) Um vício, sim, nada menos, se esse nome se pode dar ao que nos prejudica a nós e ao nosso próximo. Acaso não basta a impossibilidade em que nos encontramos de nos tornarmos mutuamente felizes? Será ainda necessário destruirmos uns aos outros os poucos prazeres que nos é permitido gozar? Mostre-me um homem de mau humor corajoso bastante para ocultar a sua melancolia, carregando sozinho com o peso dela, para não perturbar a alegria dos que o rodeiam; não será antes um despeito interior da nossa própria insuficiência, um descontentamento de nós mesmos, sempre aliado à inveja excitada por uma louca vaidade? Não há ninguém que possa encarar com gosto a felicidade alheia quando essa felicidade não for obra nossa.
Mal daqueles que abusam do predomínio que exercem sobre um coração puro para o privarem dos mais simples prazeres que por si gozaria! Não há dádivas nem favores que possam compensar essa felicidade, envenenada pela invejosa e cruel fantasia de um tirano!
Se, ao menos, cada um de nós pensasse todos os dias: Não tens sobre os teus amigos outro poder que não seja o de não os perturbar na sua alegria, aumentando a felicidade que partilhas com eles. Acaso sabes se, quando as suas almas forem torturadas pelo desespero ou despedaçadas pela dor, poderás dar-lhes o mais ligeiro alívio? E quando um dia, a mais terrível enfermidade, a última, atingir a infeliz criatura a que a tua mão abriu prematuramente a cova; quando nela desaparecer, o olhar sem vida cravado no céu, o suor da morte a banhar-lhe a fronte descolorida, e tu, de pé junto do seu leito como um criminoso condenado, reconheces, mas já tarde, que nada podes por maior que seja o teu poder, então despedaçado pelos remorsos, darias tudo para comunicar à pobre vítima votada à destruição um lampejo de coragem e de vida!...
Devemos proceder com as crianças como Deus procede connosco, porque tanto mais felizes nos faz quanto mais nos deixa crer em sedutoras ilusões!
Como somos crianças! Até de um olhar temos ciúmes! Como somos crianças!
Oh! Que fogo devorador me corre nas veias, quando, por acaso, um dedo meu toca nos dela, ou quando os nossos pés se encontram por debaixo da mesa! (…) E se, durante a conversa, ela pousa a sua na minha mão, ou, no interesse do diálogo, se aproxima de mim, bafejando-me o rosto com o seu delicioso hálito, parece-me que vou cair aniquilado, como que ferido por um raio... E, ... se eu ousasse... aquela celestial candura... aquela confiança... Mas não... não... este coração não está assim corrupto! Fraco, sim... bastante fraco... E essa fraqueza não é corrupção? Compreendes-me! Carlota é sagrada para mim; todos os meus desejos se calam na sua presença. Junto dela perco toda a consciência de mim próprio... é como se a minha alma se me espalhasse pelos nervos.
Que seria o mundo sem o amor? Exactamente o mesmo que uma lanterna mágica sem luz! Mas logo que se lhe põe a lâmpada, reflectem-se na alvura da parede as imagens multicolores. E, ainda mesmo que nada mais se veja do que fantasmas que desaparecem, nem assim esses fantasmas deixam de fazer a nossa felicidade, quando, pequeninos, os contemplamos, extasiando-nos ante essas maravilhas.
Será quimera, o que nos torna felizes?
Tudo neste mundo é frívolo e sem valor, e aquele que, só para se tornar agradável a outrem, e sem ser por interesse nem por gosto próprio, martirizar o corpo para ganhar dinheiro, honrarias ou coisa semelhante, é, seguramente, um louco.
(…) conselheiros sem coração, aqueles que exigem que a humanidade se resigne ante as desgraças inevitáveis.
Entre os sentimentos e o modo de proceder há tantos cambiantes como entre um nariz aquilino e um nariz achatado.
Ai! Como é verdade ser do nosso coração que depende a nossa felicidade!
A desgraça que nos fere não é nunca aquela que previmos, visto que o perigo não se dá a conhecer.
Vós outros, homens, não podeis nunca falar de coisa alguma sem dizerdes primeiro: isto é louco, isto é sensato, ou isto é bom, isto é mau. Que significa tudo isto? Acaso examinais os motivos secretos de qualquer acção? Sabeis definir com exactidão as razões porque o facto sucedeu, ou porque era forçoso que sucedesse? Se tivésseis primeiro esse cuidado seríeis menos precipitados nos vossos juízos.
(…) o desgraçado que, para não morrer de fome, ele e os seus, se decide a roubar, é digno de piedade ou de castigo? Quem ousará atirar a primeira pedra ao marido ultrajado que, no arrebatamento da sua justa cólera, matar a mulher infiel e o seu infame sedutor? Quem se atreverá a apedrejar a donzela que, num momento de delírio voluptuoso, se perdeu em ardentes transportes de amor?
Tenho-me embriagado por mais de uma vez e as minhas paixões têm atingido a loucura; mas não me lamento por isso, porque compreendi que todo o homem extraordinário que pratique qualquer acção notável ou aparentemente impossível é logo repelido pela multidão e proclamado como ébrio ou como louco. Mas também na vida comum não é menos insuportável, quando alguém realiza uma empresa arrojada e generosa, ouvir em seguida dizer: "Este homem ou está bêbedo, ou é doido!" Envergonhai-vos, ó vós que não sois doidos nem bêbedos?
O suicídio só pode ser considerado como uma cobardia, sendo, como é certo, que é mais fácil morrer do que suportar com coragem uma vida cheia de tormentos.
- Chamas então a isso uma cobardia? Mas aconselho-te a que te não deixes iludir pelas aparências. Podes acaso chamar covarde a um povo que, gemendo sob o jugo insuportável de um tirano, um dia se levanta e quebra altivo as algemas? Um homem vê a sua casa devorada por um incêndio; aterrorizado, as forças multiplicam-se-lhe e carrega facilmente com pesos que no seu estado normal não conseguiria sequer mover, na fúria de uma injúria recebida, aquele outro faz frente a seis adversários de uma vez e a todos vence. Diz, pois, pode-se chamar covarde a estes homens?
Alberto fitou-me demoradamente e disse: - Hás-de-me permitir que classifique os exemplos que acabas de citar como inaplicáveis à questão.
- É possível - respondi. - Já não é a primeira vez que me censuram por ser a minha lógica um tanto disparatada. Vejamos, pois, se poderemos representar de forma mais clara o que se passa no espírito do homem quando se decide a alijar o peso da vida, esse fardo tão agradável para outros. Ora nós não temos, realmente, o direito de julgar de uma coisa senão quando a podemos compreender bem. A natureza humana tem os seus limites, pode suportar, até um certo grau, a alegria, a dor e a tristeza; quando, porém, se ultrapassa esse grau, a natureza sucumbe. Pouco importa saber se um homem é fraco ou forte, mas apenas se é capaz de suportar os seus sofrimentos, quer físicos quer morais; e, na minha opinião, é tão desassisado qualificar de covarde o homem que se suicida como chamá-lo ao que morre de uma febre maligna.
- Estranho paradoxo, esse! - exclamou Alberto.
- Não tanto como te parece - retorqui. - Concordas certamente em que se chama doença mortal àquilo que ataca o corpo com tão grande violência que as forças vitais, esgotadas ou enfraquecidas, não podem operar nenhuma feliz revolução que restabeleça o equilíbrio de que depende o curso regular da vida. Pois bem, meu amigo, apliquemos a mesma observação ao espírito. Vê esse homem na sua humilde pequenez; notemos como nele actuam certas impressões, como certas ideias se lhe fixam no espírito, até que, por fim, uma paixão sempre crescente aniquila todas as suas forças e acaba por prostrá-lo. É debalde que as pessoas sensatas e de sangue-frio, vendo a situação do infeliz, tentam aconselhá-lo e incutir-lhe coragem; ser-lhe-ão tão úteis quanto o seria um homem de boa saúde a um enfermo a quem quisesse insuflar uma pequenina parcela das próprias forças.
Compreendi neste momento que, na opinião de Alberto, eu generalizava muito a minha ideia. Lembrei-lhe a morte de uma menina que se afogara e contei-lhe essa dolorosa história. - Era uma criança simples e bondosa, vivendo no estreito círculo das suas ocupações domésticas, trabalhando durante toda a semana e sem conhecer outros prazeres além do de sair ao domingo a passear pela cidade com as companheiras, com o modesto vestido que tanto lhe custara a ganhar; e uma ou outra vez, em dia de festa, dançar com algum rapaz conhecido e, quando muito, tagarelar com alguma vizinha sobre qualquer rixa ou maledicência. Pouco a pouco esses primeiros prazeres tornaram-se-lhe insípidos até que, um dia, encontra um homem para quem um sentimento desconhecido a atrai com força irresistível. Nele depõe todas as esperanças, esquece tudo o que a rodeia, já não vê, já não ouve, não busca senão esse homem, só para ele vive e respira. Como não está corrompida pela vã satisfação de uma vaidade inconstante, todos os seus desejos visam um fim: ser dele, achar nessa união toda a felicidade que lhe falta, realizando desse modo o constante sonho da sua vida. Mais promessas, constantemente renovadas, transformaram-lhe a esperança em certeza; ternas carícias avivam-lhe o fogo do coração e apoderam-se-lhe da alma inteira; mergulha, por assim dizer, na prelibação de todos os prazeres, perde a cabeça, afunda-se no oceano de felicidades cuja miragem a atrai, estende os braços para neles receber o objecto dos seus desejos... e é nesse momento que o seu amado a abandona!... Aterrada, gelada de espanto, inconsciente, encontra-se à beira de um abismo... rodeiam-na trevas profundas, nenhuma esperança, nem um conforto, o futuro negro... Tudo Lhe fez perder aquele que era a sua vida inteira, completa. Não vê o vasto universo que tem ante seus olhos, nem os homens que poderiam reparar-lhe a perda; sente-se isolada... e cega, só, desprezada por todos, martirizada pela dor intensa que lhe dilacera o coração, atira-se ao precipício, refúgio supremo de todos os sofrimentos e agonias.
-Tens neste quadro, a história de muitas criaturas. E diz-me agora se a paixão não segue aqui a mesma marcha da doença. A natureza - bem vês - não pode encontrar meio de sair do labirinto que as forças destruidoras, em toda a pujança, lhe traçaram em volta e a enferma tem de morrer. Mal daquele que, vendo isto, pudesse dizer: - Idiota porque não esperou mais algum tempo? Deixasse aquietar o espírito e com certeza haveria de encontrar quem o confortasse! O mesmo seria dizer: - Imbecil! Deixa-se morrer de febre! Se tivesse esperado que as forças se lhe restaurassem, que o sangue lhe arrefecesse, tudo ficaria remediado e estaria vivo e são!
Alberto, a quem não pareceu muito concludente a comparação, objectou-me várias causas, entre as quais a seguinte: que eu apenas lhe falara de uma menina ingénua e ignorante. Mas o que ele não podia conceber era que um homem de tino, circunspecto, sensato, se servisse desses argumentos e podendo dispor de inúmeras distracções se deixasse levar a tal desespero.
- Amigo! - exclamei eu. - O homem é sempre homem! E o pouco juízo que um possa ter a mais do que outro, nada pesa na balança quando as paixões se desencadeiam, ou quando são ultrapassados os limites prescritos à condição humana. Mais ainda: é que... Mas falaremos disso noutro dia... E agarrei no chapéu. Como o meu coração estava cheio! E assim nos separámos, sem nos termos entendido... Que difícil é, neste mundo, entendermo-nos uns aos outros!
É uma verdade incontestável: não há no mundo nada mais necessário ao homem do que a afeição.
Aprendi, que um autor, quando altera a sua obra na segunda edição, prejudica-a forçosamente, ainda que esses retoques a melhorem poeticamente. A primeira impressão encontra-nos sempre em disposição favorável: um homem é de tal modo feito que se lhe pode fazer aceitar as coisas mais fantásticas e inverosímeis; e, uma vez aceites, ai de quem lhas alterar ou pretender apagar-lhas do espírito!
Será pois de absoluta necessidade que tudo o que faz a felicidade do homem tenha de ser também a origem dos seus males?
Essa ardente sensibilidade da minha alma, que se espalha sobre a natureza viva e de que tantas delícias me inunda, que todo o espaço que o meu olhar abrange se me afigura um paraíso, transformou-se para mim num cruel instrumento de suplício, como que num espírito malfazejo, que não me deixa um momento de repouso!
(…) Levantou-se como que essa cortina frente à minha alma e o espectáculo da vida infinita converte-se-me num túmulo eternamente aberto.
O homem vai então abrigar-se numa casinha humilde e, na sua imaginação, supõe que domina o vasto universo! Pobre louco! Vês tudo pequeno e mesquinho, porque tu próprio és mesquinho e pequeno!
Ah! O que me comove e me rói a alma não são esses raros tremores de terra que tragam as nossas cidades. Não. O que me mina o coração é essa força imensa de destruição que a natureza contém em si própria, que nada edifica sem que destrua o que lhe está próximo, ou a si se não destrua.
(…) e me lembro da fábula do cavalo - que, impaciente da liberdade que tem, deixa que lhe ponham o selim e o freio, para o montarem até o estourarem.
(…) como me prodigalizam atenções e amabilidades, bem mais preciosas do que esses presentes magníficos, com que muitas vezes nos humilha a vaidade do oferente.
As flores da vida são simples e rápidas ilusões! Quantas delas desaparecem sem deixar o menor vestígio! Quão poucas as que dão fruto, e dessas mesmas quão raras aquelas cujo fruto amadurece! Contudo ainda há algumas... Oh!... E podemos nós ver ao abandono esses frutos maduros, sem os gozarmos, deixando-os apodrecer?!
Coragem! Com sossego de espírito tudo se suporta. Sossego de espírito! Estas palavras escritas por mim fazem-me rir! Se eu tivesse mais um bocadinho desse sossego de espírito seria o homem mais feliz do universo!
Visto que somos assim feitos de modo que tudo comparamos connosco e nós a tudo nos comparamos, é evidente que, para nós, a felicidade ou a desgraça residem nos contrastes que vemos ou que julgamos ver. É por isso que não há nada mais perigoso do que a solidão. A nossa imaginação, naturalmente inclinada a exaltar-se pela poesia, cria em si uma série de entes, de que nós ficamos sendo os últimos: tudo o que está fora de nós nos parece magnífico; para o mundo dos nossos sonhos afigura-se-nos muito mais perfeito do que é realmente. E isto é muito simples: como sentimos que nos falta qualquer coisa, quaisquer qualidades, supomo-las existentes nos outros, aos quais, ainda por cima, atribuímos as que nós próprios possuímos e mais um certo estoicismo ideal. Deste modo, esses entes completamente felizes e perfeitos não são mais do que uma criação nossa que nos desanima e desalenta se estabelecermos a comparação. Mas se, pelo contrário, satisfeitos da nossa fraqueza e imperfeição, continuamos atentamente o nosso trabalho, reparamos muitas vezes que avançámos muito mais bordejando do que os outros a toda a força de remos e velas...
E... já é ter consciência do próprio valor caminhar alguém a par dos seus adversários, ou mesmo passar-lhes adiante.
Não há no mundo prazer mais verdadeiro do que ver uma grande alma abrir-se franca e lealmente.
E a pomposa miséria que eu vejo por aqui? O ar aborrecido que há em toda esta gente, condenada a incomodar-se mutuamente? E esta mania das hierarquias, este ciúme das etiquetas, que os faz andar à espreita, para passarem adiante uns dos outros, ainda que não seja senão um passo? Paixões tão desgraçadas como dignas de lágrimas, manifestando-se com rara imprudência!
(…) não posso compreender o género humano, cujas orgulhosas pretensões acabam sempre na prática de baixezas.
(…) dia para dia vou reparando melhor em quanto é absurdo julgar os outros por si.
O que mais me indigna são estas miseráveis distinções de classes. Compreendo muito bem que a desigualdade de condições é necessária à sociedade. Tem vantagens, de que eu próprio me aproveito; o que eu não queria era que ela me impedisse de gozar alguma alegria e de encontrar neste mundo, ao menos, uma sombra de felicidade.
Quantos reis são governados pelos seus ministros! Quantos ministros são governados pelos seus secretários! E, assim, qual deles é o primeiro? Na minha opinião, é aquele cujo espírito domina o dos outros e que possui bastante engenho ou astúcia para dirigir as faculdades e as paixões deles, de maneira a servirem o bom êxito dos planos que concebeu.
Há já uma semana que o tempo está péssimo, mas tem-me feito bem, porque desde que aqui estou não houve ainda um único dia de sol que não tivesse aparecido qualquer pessoa a estragá-lo e a tornar-mo aborrecido.
O sossego da alma, meu amigo, é uma coisa excelente, assim como a satisfação é uma jóia tão frágil como preciosa e rara.
Diga-se o que se quiser da moderação e da prudência; eu sempre queria ver quem sofreria em silêncio que uns imbecis se entretivessem a cortar-lhe na pele, e isto estando eles de cima.
Conta-se que há uma raça de cavalos que, quando perseguidos, abrem por instinto a si próprios uma veia com os dentes, para poderem respirar mais livremente. Era também isso que eu queria: romper uma veia para alcançar a liberdade eterna!
Sim, não há dúvida; eu sou apenas um viajante, um peregrino no mundo. Mas vós? Sereis acaso mais do que isso?
Rio-me do meu pobre coração... E faço-lhe a vontade!
(…) classe de gente que chamamos rude e sem educação e a quem desprezamos, nós, gente civilizada, ou antes, gente estragada.
Que celeste mimo é a imaginação!
O homem é tão efémero que até nos lugares onde ele tem a absoluta certeza da sua existência, onde grava a única marca verdadeira da sua presença na memória e na alma dos seus amigos, aí mesmo se extingue e desaparece... E quão depressa!
O instinto natural da humanidade é colher. Não agarram as crianças tudo o que lhes chama a atenção?
Oh! Porque não sou eu um hipocondríaco, para poder culpar o tempo, qualquer pessoa, um plano frustrado? Então, o fardo insuportável da minha desolação não me oprimia senão por metade.
Respeito a religião, bem o sabes; para aquele que cai de fadiga é um apoio; para o que morre de sede é um bálsamo vivificante. Mas pode ela, ou deve ser forçosamente o mesmo para todas as desventuras? Quantos milhões de homens vivem neste vasto universo para os quais a religião nunca existiu e quantos outros para os quais, bem ou mal pregada, ela nunca existirá? E poderá ela salvar-me? Não foi o próprio filho de Deus que disse: Aqueles que meu Pai me der serão meus! E se eu lhe não fui dado? Se o Pai me quer guardar para si, como o coração mo diz?
Que é o destino do homem senão sofrer a sua medida de tormentos e esgotar o cálice?
Será então destino do homem só ser feliz antes de possuir o uso da razão e depois de o perder? Pobre louco! Quanto invejo a tua loucura, a tua perturbação dos sentidos! Vais cheio de esperança, em busca de flores para a tua rainha em pleno Inverno... e afliges-te por não as encontrares, sem compreenderes porque não as encontras. E eu?... Eu... caminho sem esperança, sem rumo, e regresso a casa como dela saí. (…) Feliz criatura, que assim podes atribuir a um obstáculo terreno a tua desdita! Não sentes nada! Não sentes que é na desordem do teu espírito, na ruína do teu cérebro que está a tua miséria... miséria de que nem os mais poderosos reis da terra te podem libertar!
O mundo é por toda a parte o mesmo; depois do trabalho e da fadiga, as recompensas e as alegrias. Mas isso que me importa?
O que é então o homem, esse semideus tão afamado? Acaso não lhe faltam as forças justamente no momento em que mais precisas lhe são? E, se nada em júbilo, ou se verga ao peso do sofrimento, não é então que ele se detém num destes dois extremos e é chamado à consciência da sua fraqueza e da sua miséria, ele que suspirava por se perder na amplidão do infinito?
É próprio do nosso espírito supor confusão e trevas onde não se sabe o que se tem a esperar.
-No seu talento, no seu espírito, no seu saber está a fonte de prazeres íntimos.
-É a impossibilidade de me possuir o que mais exalta essa paixão...
O homem é tão ignorante que, apesar do que vê, não tem uma ideia nítida do começo e do fim da sua existência.
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