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O estocástico

O abajur é a única luz do escritor,
O único álibi da sua existência.

O olhar atravessa o vidro da janela,
Os prédios cercam o desejo de liberdade
Pessoas vivem em caixinhas de surpresas.

O fragor dos trovões blasfema mais uma vez
Numa voz engasgada.
O céu pisca deixando à mostra os seus cabelos cinza
De nuvens umbrosas.

O ser humano é triste e solitário
Na minha perspectiva aqui de cima,
Num desequilíbrio do meu estado compenetrado
Das vidas em movimento vistas daqui de dentro.
Sou uma migalha tentando não desaparecer.

Os edifícios são rostos malévolos.
Onde deixei a bagagem dos meus sentimentos?
Onde esqueci minha esposa?
Será que a perdi em alguma gaveta?
Onde estão meus irmãos, minhas irmãs, meus pais...?
Tento lembrar das palavras, das conversas,
Mas de nada vale.
Ainda corro sem olhar para trás,
Escalo a maré na mutante enfermidade da “memória”.

Acho que não estou perdido
Acho que meu coração é quem se esqueceu de mim.
Às vezes aprendemos a falar
E, de repente a fala se esquece que foi aprendida.

Minhas mãos rabiscam entropias de textos estocásticos.
Os tijolos dos meus “ontem” são entulhos.

Esvai, esvai, esvai até o dia chorar,
Não posso tentar ser eu,
Porque o “eu” não passa da individualidade do ser humano.

Não sou humano,
Nem sei o que significa ser humano.

Se sou técnico,
Sou mecânico
Sou eletricidade,
Hidráulica
Pneumática.
Troco o amor pelo calor da máquina
Troco a carne pelo aço, êmbolos, hastes, gaxetas...
Meu pulmão é ar comprimido
Meu sangue é óleo
Meu cérebro é um logic program.
Penso metrologicamente.
Choro a pressão adiabática.

Minha vida é a vida útil.
Se “paro” para morrer preventivamente
É porque minha vida foi fria
E deixei-me levar pelas coisas sendo as coisas,
Sendo que as coisas eram para serem apenas “coisas”.
Eu tinha que ser o sentido do sentimento contido dentro da carne,
Só que me fizeram de lata e não de carne.

Na natureza confusa desta época
Suplico que me deixem em paz,
Pois estou orgulhoso por ser nada...
Apenas nada.

******************************************************

Ilusão tudo! Querer um sono eterno,
Um descanso, uma paz, não é senão
O último anseio desesperado e vão.
Perdido, resta o derradeiro inferno
Do tédio intérmino, esse de já não
Nem aspirar a ter aspiração.
(Fernando Pessoa)

Submited by

quinta-feira, dezembro 3, 2009 - 23:26

Poesia :

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FranciscoEspurio

imagem de FranciscoEspurio
Offline
Título: Membro
Última vez online: há 14 anos 3 dias
Membro desde: 11/08/2009
Conteúdos:
Pontos: 450

Comentários

imagem de jopeman

Re: O estocástico

O drama da existência desumana, que surge e urge da aleatoriedade da vida e se torna ao nada.

Brutal

Abraço

imagem de MarneDulinski

Re: O estocástico

LINDO SEU POEMA, GOSTEI!
MESMO TENDO DE PROCURAR ESCLARECIMENTOS, PARA OS TERMOS DE TERMODINÂMICA USADOS!
Meus parabéns,
md

imagem de RobertoEstevesdaFonseca

Re: O estocástico

Parabéns pelo belo poema.

Gostei.

Um abraço,
REF

imagem de Gisa

Re: O estocástico

Estás sendo por demais duro consigo mesmo...Não penso que és nada, e sim, tudo! Abraços

imagem de gladysgimenez

Re: O estocástico

Francisco, teu poema é viceral, triste mas carregado de realidade. Gostei!! Abrassssssssssss

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