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Era o que me faltava! - 2

.

 

2

(continuação)

 

— Boas noites! — apeteceu-me responder àquela cara de fuinha que abriu o postigo e percorrendo-me o vulto com o foco da lanterna observou num relance o meu simulado dormitar. Mas fiquei em silêncio, olhos cerrados, respiração solta. Se as gotas de suor do meu rosto não rebrilharam é provável que ela acredite que eu já estarei a dormir, o que quase todas as noites até é verdadeiro. Prefiro acordar muito cedo e aproveitar então para escrever. Hoje, porém, preciso de ratificar comigo mesma uma decisão que é melhor não adiar. E antes de mais, espetar num papel, em maiúsculas gordas e negras, aquela regra básica “Não ver Não ouvir Não falar...” para amanhã arranjar maneira de a colar na porta, servindo-me a mim de constante alerta e, ainda mais importante, de recado que rapidamente será transmitido ao conhecimento geral da penitenciária, reclusas e guardas, e se calhar até ao Director, e logo, portanto, a quem se arrogue o meu silêncio sobre o que eu não deveria ter visto. Talvez levante suspeitas... Vi ou não vi? “Calma, rapariga! Não resolveste já, voltares a ser mulher? Estás a tremer porquê?!” Porque tenho de engendrar uma forma também segura de continuar a manter secretas as páginas denunciadoras das minhas memórias, sem estar sujeita ao tráfico de favores sensuais com a analfabeta cozinheira-chefe, a Berta, que me franqueia a dispensa, possivelmente o sítio mais perigoso de toda a penitenciária, onde se pode ser calada para sempre sem burburinho sob o golpe de uma faca ou outro utensílio rapinado nas caixas de talheres sobresselentes, mas que também é um lugar de muitos escaninhos para arrecadar miudezas pessoais de quem lá tem acesso, como os meus escritos. “Talvez invocando as tuas habilitações e oferecendo-te para auxiliares na Biblioteca...”

Isto era o que me faltava... Esta relação espúria, amarga e doce, que é sexo e não o é, para mim, que gosto é de amor de homem.

Bem insistiu o meu pai para que eu emigrasse para junto dele, quando a minha mãe fugiu de casa, por que razão não faz ao caso, mas eu era sossegada, atinada e estudiosa e estava longe de ambos. Dezassete anos e quase a entrar na Faculdade. Eu teria ido talvez, se o meu viver não fosse já tão independente. “Não interessam os ses, que o que não sucedeu não sucedeu”. O meu pai mandava-me suficiente mesada. Ir ter com ele implicava mudar de vida, radicalmente. E a minha mãe pouca falta me fazia. Antes sozinha e livre.

Tal como era previsível, o meu pai não demorou muito a arranjar outra mulher, e depois mais um filho. E quando este nasceu, teimou que eu deveria ir para ao pé dele na Venezuela, que a vida estava má e a família crescera tornando-se-lhe oneroso estar a sustentar-me “como uma princesa” podendo eu estar a ajudá-lo. Queixumes da minha madrasta, por certo. Resisti. Dois meses depois cortou-me a mensalidade, sem sequer aviso.

Estava eu então com vinte e um anos e entrara de férias, depois de ter concluído o segundo ano de Direito em Coimbra. Não tinha economias nenhumas, que enquanto as minhas colegas se divertiam eu gastava em livros tudo o que podia, e nem era muito, mas gastava e não poupava. Durante um mês passei alguma fome, porque tinha vergonha de pedir dinheiro emprestado. Preferi desfazer-me do que não me era indispensável. Procurei trabalho. Má altura. Só encontrei lugares de vendedora à comissão, porta a porta, livros, time sharing, produtos de beleza, publicidade, e isso, conhecia eu casos de algumas colegas, era uma exploração, e nem eu tinha atitude e conversa para exercer como profissão.

Por fim apareceu-me um anúncio para colaboradora, melhor dizendo, secretária, escriturária, telefonista, recepcionista, enfim, faz-tudo, no cartório de um advogado. Menos que o ordenado mínimo, mas agarrei a oportunidade com ambas as mãos e cheia de humildade.

O Dr. Osório era jovem, esperto, e a clientela, escassa embora, era variada e pouco escrupulosa mas exigente. Desisti de estudar, que o dinheiro só me dava para viver com bastante modéstia e o trabalho absorvia-me todo o tempo e disposição. Quase todos os processos que surgiam lá no escritório davam mais que fazer do que honorários; questões de reles dívidas, divórcios de gente modesta, partilhas litigiosas de pequenas heranças, acções de despejo, e coisas assim, contractos de negócios de lana-caprina, mas ao fim de dois anos eu interiorizara a noção de que estava a ajudar o Dr. Osório a fazer nome, o que é demorado, e de algum modo sentia-me compensada com a diversidade prática do meu indirecto contacto com a carreira forense. Talvez para obviar a reivindicações salariais — ele nunca me confessou isso — a cada passo tinha agrados para comigo. Umas flores, um perfume carote, um jantar agradável antes de um dos serões a que me via obrigada em ocasiões de mais movimento.

 

(continua)

Qualquer coincidência
com factos e pessoas da vida real
é precisamente coincidência.

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

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terça-feira, abril 16, 2013 - 11:49

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Nuno Lago

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