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Imensidão

Já se passaram anos correndo atrás do caminhão barulhento, cortando a cidade e a noite em zigue-zague. Nem era ainda um adolescente quando sua própria necessidade bateu-lhe a porta, o retirando da frágil segurança de seu lar para uma rotina parecida com a de seu pai.

Quando não trabalhava – uma raridade entre seus dias - conseguia sentir o aroma que a noite tem – repleta dos cheiros quentes de plantas noturnas, suaves, delicadas – como se estas lhe dessem também a oportunidade de vagar pelo vento, sair de si, só por demonstrar seu interesse em cheirá-las – elas o presenteavam ao seu modo, segundo ele. Era um especialista em cheiros – sabia que os bons nem sempre eram bons, e os maus, todavia, não eram maus. Sua curiosidade por decifrar os odores que o cercavam era quase um vício e isso lhe deixava feliz. E guardava para si o desejo de encontrar, algum dia, algo que nunca tivesse sentido, um cheiro de que gostasse, que fosse incomum, que fosse arrebatador. Jamais havia se acostumado com os odores que eram próprios dos objetos que recolhia ou de seu caminhão. Todos eram singulares. Entre todos poderia haver um aroma que desconhecesse, um cheiro especial ao seu nariz e a seu gosto.

Seu corpo era pequeno e os músculos saltantes deformavam sua silhueta como se o tempo não lhe tivesse dado chances de crescer de maneira apropriada. Os olhos - estes permaneceram com a doçura do menino que um dia foi, num azul escuro infinito, mesmo compondo um rosto cansado e marcado pela sujeira e pelos anos. Às vezes, entre uma lixeira e outra, entre uma avenida e outra, quando parava para descansar, tirava as luvas e ficava por uns minutos apreciando suas próprias mãos, pequenas como as demais partes de seu corpo, para verificar se tinha alguma nova bolha, algum ferimento, ou simplesmente algo novo. Mas em geral, já tinha se acostumado a não sentir mais nada, a não ser os odores múltiplos que as coisas possuem.

Corria demasiadamente atrás dos sacos pretos, das grandes latas escuras, das caixas e caixotes, dos vestígios que os outros deixaram ali propositalmente para que ele cumprisse o seu ofício diário. Corria – ofegava – corria – o ar lhe faltava – corria. Poderia ir correndo a qualquer lugar, mas teve que se acomodar com a idéia de que esse seria seu lugar – ou este ou coisa nenhuma, e coisa nenhuma era uma idéia muito ruim. Então era melhor correr, ir alçando com as mãos as coisas deixadas por aqueles que agora dormem em algum lugar, correndo para não ficar para trás de seus companheiros, correndo para não ser um estorvo a ninguém. Correndo atrás dos cheiros das coisas.

Corriam também as gotas turvas de suor por seu rosto – várias delas, em contraponto com a madrugada fria do sul do país. Geralmente só percorria seu itinerário e traduzia os cheiros que lhe vinham, não falava muito. Também não se prestava a ouvir as piadas e os passatempos dos colegas de trabalho. Estes às vezes o achavam estranho, como se estivesse no mundo da lua, com algum problema mental, quem sabe. Mas ele, atrás do desgaste cotidiano, se mantinha feliz, sem esperar muito da vida – porque não tinha que esperar nada – até os desejos infantis já haviam se decomposto com o tempo: o sonho de jogar bola como carreira, de entrar para o clube, de sentir o aroma verde da grama... - não lhe doía mais não poder tocar nessas coisas. Só não tinha sonhos, mas era feliz. Tudo doía, mas era feliz, pois não criava expectativas pelas coisas que fazem a cabeça de todo mundo – a não ser a estranha busca pelos odores desconhecidos.

Correndo por muitas ruas, havia decorado o movimento das árvores incrustadas nas calçadas da cidade à sua margem. Todas as árvores tinham seus cheiros próprios, uma identidade olfativa para ele, que só ele conhecia. Mesmo aquelas que não tinham flores. Expeliam um buquê de novas e velhas sensações que, misturadas com as gotículas microscópicas de orvalho, impregnavam todas as coisas. Corria com os olhos fechados e tudo isso tomava conta de si.

Mas tinha também o cheiro dos dejetos humanos, da comida que não mais servia, das coisas gastas – acre, azedo, disforme - tudo o que havia dentro do caminhão deixava seus cabelos lisos e negros cheios de um vestígio que não saia lavando, que permanecia com ele, como se ele próprio se fundisse àquelas coisas – ele não gostava, pois já tinha uma identidade e não precisava parecer-se com isso. Os restos do caminhão não tinham um cheiro agradável – não que ele o concebesse como podridão, mas eram tantos os odores, tantos de uma vez só, que não era algo sempre apreciável. Era o cheiro de sempre, sem ser o cheiro de sempre e estava farto, pois queria que seu ofício lhe possibilitasse algo novo, não convencional.

Continuava correndo noite a dentro e quanto mais corria, mais o ar lhe faltava e não conseguia respirar. E continuava correndo. Até sua respiração voltar de súbito, entorpecendo suas narinas com todos os odores do mundo de uma vez só – cheiro tão ácido que ardia suas vias nasais, amortecendo seus pensamentos. Há muito tempo passava por esse movimento de correr e de arfar, de perder rapidamente seus sentidos e de continuar correndo.

Mas nesta noite, quase no fim de sua jornada diária, sentiu que o ar não conseguiu retornar ao seu corpo. Sentiu um estranhamento e mil coisas lhe passando na cabeça, mas não identificou nenhuma ligação com as sensações externas, com as coisas de fora de si.
Sentiu um grito pungente vindo de seu peito, a dor mais profunda que jamais sentira. Queimava-lhe o corpo, as entranhas e a mente, retorcendo todos os seus músculos de uma só vez. Não sentia os cheiros, não ouvia as solas grossas de seus sapatos sobre o chão molhado cor de piche. Ouvia o caminhão e seus companheiros se distanciando e driblando as horas do serviço braçal com piadas e brincadeiras, como sempre faziam. E mais distantes ficavam as vozes.

E caiu na rua fria, sem conseguir gritar, segurando o coração como se o pudesse fazer. Achou que estivesse se diluindo no chão molhado, penetrando-o, tornando-se tão frio quanto à própria rua.

_ Pára, pára! Pára o caminhão! – gritou um de seus camaradas ao motorista, vendo o que não podia entender direito.

Ele nada mais ouvia, só queimava lentamente, até seu corpo permitir respirar mais uma vez. E ao invés do cheiro que não concebia ainda, mas que sempre almejou sentir – um novo aroma que o elevasse até onde nunca fora, que jogasse seus sentidos em uma amplidão sem fim – o único odor que captava em seu último respirar e que lhe tomava posse as entranhas era o azedo das coisas mundanas, deixados como uma trilha pelo caminhão de lixo.

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quinta-feira, fevereiro 25, 2010 - 18:31

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Daisy_Lee82

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Comentários

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Re: Imensidão

Prosa bem contruida, delineada com rasgos de imaginação.
Uma construção madura, viciante e inquietante,
Um forma de escrever, das melhores que já li,

Quem és tu?

Que sublime essencia de desvandar, o enredo, aos poucos.

por favor, vive a escrever assim

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Re: Imensidão

ohhh nem sei o que dizer!

quanta gentileza!

espero que em troca, tenha te inspirado de alguma forma!

bjões, Mefistus

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Re: Imensidão

Um bom conto, cheio de imagens reais, de uma leitura atenta!!!

:-)

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Re: Imensidão

Obrigada!

Esperava essa reação das pessoas: se pôr no lugar do personagem, sentir o que ele sente...

Obrigada por comentar!

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