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SÓ SILVA
“Será blitz ou acidente”, se perguntou José, em pé, dentro do ônibus lotado, a caminho de uma entrevista de emprego. Esticou-se para ver, preocupado com o horário. Era uma blitz. Seu ônibus encostou, o policial entrou e o escolheu. Teve que descer.
- Meu chefe, estou atrasado pra uma entrevista de emprego! - O policial desconsiderou e iniciou uma minuciosa revista. O pessoal do ônibus pressionou e o policial mandou seguir sem José.
- E agora? Tô duro! - desesperou-se.
- Calma, te coloco no próximo quando terminar - tranquilizou o policial.
Finda a revista, José lembrou que seu ônibus só passava de uma em uma hora, considerou a lentidão do trânsito e resolveu seguir a pé o resto da viagem.
Faltavam 5 quarteirões. Consolou-se com o fato de ter se livrado daquele ônibus lotado em pleno verão carioca. Foi a passos rápidos, entrou em uma rua para cortar caminho e deparou-se com uma grande aglomeração de pessoas, imprensa, viaturas, e aquela faixa amarela interditando a rua.
- O que foi isso? - Perguntou a um curioso que se espichava para ver por cima da multidão.
- Mataram alguém dentro do carro, no meio da rua - respondeu o estranho.
José notou uma viatura da perícia. “Perícia em local de crime? Só pra figurões” pensou. Ficou curioso. Se espichou também e viu o carro onde estava o defunto: um Mercedes conversível zero. Observou um homem dando entrevista. Parecia o delegado. De repente, chegou um rabecão fazendo alarde com a sirene.
- Se fosse um Silva qualquer, ia mofar! - Resmungou um anônimo expectador. José concordou. Silvas defuntos não tem a honra de serem visitados por delegados e não andam de Mercedes conversível, a não ser como motoristas profissionais. Logo descartou a hipótese do Silva motorista quando lembrou da perícia. Onde que Silvas tem perícia? Mas, havia a imprensa. Às vezes, devido à inconveniente presença da imprensa, as autoridades são obrigadas a enviar perícia para Silvas.
-Isso foi agora? - perguntou José a um policial que isolava a área.
- Há uma hora, mais ou menos - respondeu o agente. José não tinha mais dúvidas: rabecões, em geral, só aparecem para Silvas quando seus parentes estão enxotando varejeiras e urubus. O defunto era mesmo um “figurão”.
“Seria alguém famoso?” indagou-se.
- Foi assalto? - perguntou novamente ao mesmo policial.
- Não sei "meu'rmão", mas parece que não! Um carro encostou do lado e fuzilou - respondeu em tom grosseiro o agente da lei, sem olhar para ele. José entendeu o recado e decidiu não lhe perguntar quem seria o figurão. Sendo execução, descartou o meio artístico. Não que fosse impossível, mas improvável. “Era bandido, político ou empresário. Provavelmente estava envolvido em parada errada”, pensou. Ficou mais um pouco no tumulto até lembrar que estava a caminho de uma entrevista de emprego.
- Caramba! - Olhou assustado para o relógio. Viu que faltava meia hora para o horário marcado, mas resolveu perguntar a alguém. Não confiava no relógio de camelô. A situação era muito difícil. Casado, pai de três filhos, morava de aluguel na comunidade e estava há oito meses desempregado, vivendo de cada vez mais raros bicos. Certificou-se da hora e continuou andando rápido. A possibilidade de chegar atrasado o deixou aflitíssimo. Tinha sido indicado por uma amigo que o advertiu a chegar na hora marcada, senão ficava do lado de fora.
Nessa época de difícil emprego, só indicação. A geladeira estava vazia, a mulher doente não podia trabalhar, e os filhos eram pequenos, em escadinha , 3, 5 e 7 anos. Não aguentava mais recorrer ao tráfico para comprar gás, remédios para esposa e mesmo comida, sem contar os quatro meses de aluguel atrasado. Era um homem de bem, honesto, e lutava, como tantos, para não permitir que a extrema necessidade o corrompesse por inteiro. Estranhamente lembrou do defunto. “Quem me dera fosse como ele, tanto na vida como na morte.” Na vida regalada, segundo indicava o Mercedes conversível zero, ou na morte em que cessariam as necessidades e aflições que elas acarretavam. “Seja homem, pára de palhaçada! Sua família precisa de você!” , socorreu-lhe o firme aparte da consciência. Tomou ânimo na lembrança de sua amada e guerreira esposa, dos seus “bichinhos”, e foi correndo. Ao atravessar um cruzamento, com sinal aberto para ele, foi pego em cheio por um carro de luxo, em alta velocidade, que nem sequer diminuiu para ver o que havia feito.
Lá estava, no meio fio, o corpo sem vida de José. Ali findavam suas aflições, e se agravavam as de sua família. Seu efêmero desejo surgido da enorme carga que suportava, de ser igual ao figurão ao menos na morte, tinha se realizado. Só que nem tanto! José não teve a dignidade do figurão. Não veio delegado, imprensa, nem perícia. Uma viatura do Corpo de Bombeiros chegou uma hora depois e constatou, formalmente, o óbito. Oito horas mais tarde chegou o rabecão, após muita insistência de comerciantes e da impaciente dupla de PMs que já estavam de “saco de cheio” de velar o corpo. Um dos funcionários do rabecão perguntou aos PMs:
-Tem identificação?
- Tem, disse um deles: - O nome dele é José, José Silva - concluiu, ao que requisitou o funcionário:
- José Silva? Só isso?
- É - respondeu o policial - Só Silva.
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