Sugestão (Thiago de Mello - magnífico poema)

Antes que venham ventos e te levem
do peito o amor - este tão belo amor,
que deu grandeza e graça à tua vida -,
faze dele, agora, enquanto é tempo,
uma cidade eterna - e nela habita.

Uma cidade, sim. Edificada
nas nuvens, não - no chão por onde vais,
e alicerçada, fundo, nos teus dias,
de jeito assim que dentro dela caiba
o mundo inteiro: as árvores, as crianças,
o mar e o sol, a noite e os passarinhos,
e sobretudo caibas tu, inteiro,
o que te suja, o que te transfigura,
teus pecados mortais, tuas bravuras,
tudo afinal o que te faz viver
e mais o tudo que, vivendo, fazes.

Ventos do mundo sopram; quando sopram,
ai, vão varrendo, vão, vão carregando
e desfazendo tudo o que de humano
existe erguido e porventura grande,
mas frágil, mas finito como as dores,
porque ainda não ficando - qual bandeira
feita de sangue, sonho, barro e cântico -
no próprio coração da eternidade.
Pois de cântico e barro, sonho e sangue,
faze de teu amor uma cidade,
agora, enquanto é tempo.

Uma cidade
onde possas cantar quando o teu peito
parecer, a ti mesmo, ermo de cânticos;
onde possas brincar sempre que as praças
que percorrias, dono de inocências,
já se mostrarem murchas, de gangorras
recobertas de musgo, ou quando as relvas
da vida, outrora suaves a teus pés,
brandas e verdes já não se vergarem
à brisa das manhãs.

Uma cidade
onde possas achar, rútila e doce,
a aurora que na treva dissipaste;
onde possas andar como uma criança
indiferente a rumos: os caminhos,
gêmeos todos ali, te levarão
a uma aventura só - macia, mansa -
e hás de ser sempre um homem caminhando
ao encontro da amada, a já bem-vinda
mas, porque amada, segue a cada instante
chegando - como noiva para as bodas.

Dono do amor, és servo. Pois é dele
que o teu destino flui, doce de mando:
A menos que este amor, conquanto grande,
seja incompleto. Falte-lhe talvez
um espaço, em teu chão, para cravar
os fundos alicerces da cidade.

Ai de um amor assim, vergado ao vínculo
de tão amargo fado: o de albatroz
nascido para inaugurar caminhos
no campo azul do céu e que, entretanto,
no momento de alçar-se para a viagem,
descobre, com terror, que não tem asas.

Ai de um pássaro assim, tão malfadado
a dissipar no campo exíguo e escuro
onde residem répteis: o que trouxe
no bico e na alma - para dar ao céu.

É tempo. Faze
tua cidade eterna, e nela habita:
antes que venham ventos, e te levem
do peito o amor - este tão belo amor
que dá grandeza e graça à tua vida.

Thiago de Mello, poeta brasileiro.

Submited by

Friday, July 8, 2011 - 18:14

Poesia :

No votes yet

AjAraujo

AjAraujo's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 6 years 28 weeks ago
Joined: 10/29/2009
Posts:
Points: 15584

Add comment

Login to post comments

other contents of AjAraujo

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Meditation Quem Não Sabe De Ajuda (Bertolt Brecht) 1 5.953 01/19/2011 - 01:50 Portuguese
Poesia/Aphorism O Analfabeto Político (Bertolt Brecht) 1 911 01/19/2011 - 01:47 Portuguese
Poesia/Meditation Os Estatutos do Homem (Thiago de Mello) * 1 1.709 01/19/2011 - 01:42 Portuguese
Videos/Music Ave Maria (Sarah Brightman, Simphony Live in Vienna, 2008) 0 6.890 01/18/2011 - 17:50 English
Videos/Music Pasion (Sarah Brithman & Fernando Lima, live in Vienna) 0 8.484 01/18/2011 - 17:46 Spanish
Videos/Music Canto Della Terra (Sarah Brightman & Alessandro Safina, Live in Vienna) 0 9.705 01/18/2011 - 17:38 English
Videos/Music Pie Jesu (Sarah Brightman, Symphony Live in Vienna) 0 9.766 01/18/2011 - 17:33 English
Videos/Music Running (Sarah Brightman, live in Vienna) 0 4.986 01/18/2011 - 17:30 English
Videos/Plays Phantom of the Opera Live (Michael Crawford & Sarah Brightman) 0 11.691 01/18/2011 - 17:25 English
Videos/Plays The Music of the Night (Michael Crawford and Sarah Brightman) 0 14.498 01/18/2011 - 17:19 English
Videos/Plays All I Ask Of You - Phantom of Opera (Sarah Brightman and Michael Ball) 0 13.850 01/18/2011 - 17:15 English
Poesia/Meditation Versos são só rimas soltas ao vento 1 1.227 01/18/2011 - 12:51 Portuguese
Poesia/Haiku Rastros 1 2.207 01/18/2011 - 12:48 Portuguese
Poesia/Thoughts Tempo implacável (El tiempo implacable) 1 658 01/18/2011 - 12:44 Portuguese
Poesia/Meditation Palavras que transformam... 1 1.671 01/18/2011 - 12:42 Portuguese
Poesia/Meditation Os justos (Jorge Luis Borges) 0 2.413 01/17/2011 - 22:09 Portuguese
Poesia/Fantasy Inferno, V, 129 (Jorge Luis Borges) 0 3.046 01/17/2011 - 22:07 Portuguese
Poesia/Aphorism Um sonho (Jorge Luis Borges) 0 2.420 01/17/2011 - 22:04 Portuguese
Poesia/Fantasy Hino (Jorge Luis Borges) 0 2.264 01/17/2011 - 22:01 Portuguese
Poesia/Love Despedida (Jorge Luis Borges) 0 1.539 01/17/2011 - 21:58 Portuguese
Poesia/Disillusion Ausência (Jorge Luis Borges) 0 2.346 01/17/2011 - 21:56 Portuguese
Poesia/Intervention Caminho de beduíno 1 1.635 01/17/2011 - 11:21 Portuguese
Poesia/Thoughts A Vida (Henfil) 1 1.234 01/17/2011 - 11:17 Portuguese
Poesia/Meditation A Esperança (Augusto dos Anjos) 1 1.365 01/17/2011 - 11:13 Portuguese
Poesia/Friendship Loucos e Santos (Oscar Wilde) * 2 4.684 01/17/2011 - 11:10 Portuguese