Era o que me faltava! - 6
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— Assim seja... — concordou finalmente o outro, olhar já enfeitiçado na contemplação gulosa do meu busto, mamilos eriçados, pomos agitados pela minha respiração ofegante. Olhar que, suspenso da minha tentadora amorosidade, lhe traiu fatalmente o jogo, naquela cartada e em mais outra e ainda outra em que eu continuei, sempre temerosa mas radiante, a servir de ficha de aposta e que por último me rendeu a mim, em alegre oferta do Henrique, a chave de um valioso todo-o-terreno acabado de estrear e ganho também àquele ingénuo e rendido jogador.
Ao sairmos da casa de jogo, clandestina, evidentemente, e para frequentadores seleccionados, o Henrique deu-me o presente que eu ainda hoje considero o mais precioso, uma pedrita de jade, claro verde musgo matizado, lisa e de contorno irregular, macia e morna, sem valor que não o estimativo, e que, como eu sabia, era o seu fetiche da boa sorte nas suas noites de glória:
— Guarda. Quando os teus dedos a acariciarem com verdadeira aflição, verás que te trará sorte.
— Dispensas-ma, meu amor!
— Tenho-te a ti... Tal como eu tinha previsto, em questão de segundos deste cabo de todo o jogo dele! Ah! Ah! Ah!
O resto dessa noite foi esfuziante. Primeiro numa discoteca da moda, depois na minha cama. Só amainamos alta madrugada. E ele dormiu no meu apartamento, o que era raro. Deixou-me manhã cedo e nunca mais o vi. Decorridos dois dias, na hora em que fui ao cabeleireiro ele passou lá em casa e juntamente com o nosso negociado contrato nupcial, significativamente rasgado em quatro bocados, deixou-me um bilhete que pôs fim à estranha premonição que entretanto me assaltara e que eu não tivera coragem para abordar em conversa com ele: “Estás livre Dorita. Aqui, os negócios não me estão a correr nada bem. Desculpa mas tenho de me ausentar para parte incerta. Foi bom enquanto durou. Amo-te.”
Viva ele agora onde viver, eu estou-lhe saudosamente agradecida.
Retiraram-me da face interior da porta da cela o toalhete de papel onde repassadamente escrevera o meu recado “Não ver Não ouvir Não falar”. Anteontem colei-o lá provisoriamente com raspas de sabão e mais tarde com duas dedadas de grude que apanhei na cozinha a pretexto de provar a papa das pataniscas do almoço. Sem dúvida que foi alguma das guardas, que aqui mais ninguém entra. Tenho pena de não ter observado qual delas foi, pois tenho o palpite de que acharia uma das pontas do fio da meada. Pelo que já vi tudo se encaminha para evitar que rebente mais um escândalo. Praticamente no curto espaço de três dias aconteceu outro óbito. Overdoses. A outra foi homicídio, eu sei, mas não me constou que a autópsia tenha sido conclusiva, o que eu já esperava. A morte ronda por cá... ainda que agora me tenha comovido e ao mesmo tempo aliviado. Esta reclusa era uma mocita, arruinada pelo vício, que passava a maior parte do tempo abúlica ou a dormitar e o restante em estado de hiperexcitação. Algumas bestas, é o termo, não tinham compaixão por ela, nem paciência, e saciavam a sua agressividade, latente revolta, enchendo-lhe o corpo com nódoas negras. Aqui não se pode fazer de Samaritana. Deve quem deve. Cada qual cuida da sua pele e quantas vezes nem nisso tem sucesso, só ganhando em deixar para as hierarquias, quais sejam, quaisquer outras inquietações.
A Berta está com o período, o que a amofina sempre. Disse-me coisas que me sobressaltaram: — Anteontem ao jantar o que é que comeste que te fez mal? De manhã estavas com cara de quem viu fantasmas. Via-se que passaste a noite em claro. Hoje estás bonita. Sabes que a cabrona da Nanda foi autorizada a fornicar com o homem dela na próxima visita? Mais uma vez... O gajo é “correio” e quando vem cá passa a vida a correr para a retrete. Muito caga aquele maricas... a largar encomendas. Um dia uma rebenta-lhe nas tripas e ele passa-se mesmo cá dentro. Já nada me espantará. Depois de amanhã se te levantares cedo, aí pelas cinco... Vem. Terei uma surpresa. A tua porta também estará destrancada e a vigia estará distraída. Custou-me uma nota preta.
Qualquer coincidência
com factos e pessoas da vida real
é precisamente coincidência.
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